100.000 vidas roubadas pela covid-19, um retrato da pandemia no Brasil à prova de negacionistas

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Por Beatriz jucá e Jorge Galindo, compartilhado de El País – 

Mapa e ondas de mortes pelo coronavírus no país exaltam desigualdades históricas. Indígenas, negros e pessoas com baixa escolaridade estão entre os mais vulneráveis

Familiares se despedem de uma vítima da covid-19, em São Paulo.
Familiares se despedem de uma vítima da covid-19, em São Paulo.AMANDA PEROBELLI / REUTERS

Com 100.000 vidas perdidas para a covid-19, o Brasil vê a pandemia do novo coronavírus desenhar no seu território um retrato doloroso. É cerca de uma morte a cada dois minutos durante quase cinco meses, se considerarmos o intervalo entre a confirmação do primeiro óbito ― em março ― e esta sexta-feira (7). Um resultado que não pode ser descolado de um cenário em que a polarização e o negacionismo de autoridades minaram políticas de controle da epidemia. O vírus chegou primeiro em grandes capitais, depois começou a avançar pelo interior, onde agora ganha corpo. Em um território tão grande e tão diverso como o brasileiro, ganhou velocidades distintas em cada região. Exaltou desigualdades históricas ― especialmente as de acesso ao sistema de saúde, levando ao colapso regiões menos estruturadas, como Manaus e Fortaleza. A incidência das mortes, considerando a densidade populacional, também é forte em Belém, Recife e Rio de Janeiro. Já tem mais de cinco meses que o vírus avança pelo país ― e não há nada de concreto que aponte quando as mortes causadas por ele vão cessar. Chegamos a 100.000 falecimentos, com um terço dessas vidas perdidas somente no último mês.

É importante colocar os números em perspectiva para não amenizar a gravidade da epidemia, quando levamos tantas semanas lendo e ouvindo que o Brasil registra, dia após dia, mais de 1.000 novos óbitos. Se todas as 100.000 mortes pela covid-19 do país se concentrassem nos seus municípios menos populosos, 68 cidades inteiras teriam desaparecido ao mesmo tempo. É como se metade do plano piloto de Brasília simplesmente deixasse de existir. Ou que, em cinco meses, falecesse toda a população dos nobres bairros de Pinheiros e Alto de Pinheiros, em São Paulo. Ou ainda todos os moradores de Leblon e Ipanema, no Rio de Janeiro. Esse é o tamanho da fatalidade no Brasil até este início de agosto.




Há quatro cidades brasileiras que têm o mesmo número de habitantes que os mortos da covid-19. A doença que foi minimizada pelo presidente Jair Bolsonaro como uma “gripezinha” mata tanto quanto o câncer e já supera as mortes por infarto, pneumonia, acidentes de trânsito e pelo próprio vírus da influenza se analisarmos o mesmo período de 2018, o dado mais recente de causas e mortes no DataSUS, o sistema de estatísticas de saúde do próprio Governo Federal. O número de brasileiros que morreram de covid-19 em cinco meses é duas vezes e meia maior que as mortes por acidentes de trânsito durante todo o ano passado. Segundo os dados mais atualizados da Seguradora Líder-DPVAT, foram 40.721 mortes no trânsito de 2019.

O perfil geral dos que morreram pela covid-19 no Brasil segue o padrão observado em outras partes do mundo. Mais da metade dos infectados que faleceram no país são homens e idosos, segundo os dados do Ministério da Saúde, que levam em conta apenas os casos hospitalizados. O peso da doença não é equitativo entre as faixas etárias, mas não se pode dizer que a covid-19 mata apenas pessoas mais velhas. Uma em cada nove pessoas que faleceram no país tinha menos de 45 anos de idade.

O acesso aos cuidados necessários quando há uma manifestação mais grave da covid-19 está permeado pela desigualdade. Os dados brasileiros não são completos o suficiente para responder a incidência de mortes por cor da pele e escolaridade, variáveis que no país estão fortemente relacionadas à desigualdade social. As fichas hospitalares até contêm esses campos, mas muitas deixam de ser preenchidas. Há, porém, um recorte possível de fazer, que mostra uma face dura: pessoas falecidas que se autodeclararam como brancas acessaram consideravelmente mais leitos de UTI ou ventilação mecânica ― foram quase oito em cada dez mortes. Entre os que se identificaram como pretas, pardas e amarelas, foram menos de sete em cada dez.

retrato da desigualdade é ainda mais duro para a população indígena. Historicamente submetidos a sistemas de saúde mais frágeis, apenas seis de cada 10 indígenas que morreram por covid-19 conseguiram ter acesso a essa estrutura importante para a sobrevivência na manifestação mais grave.

Essa desigualdade também é latente quando olhamos os dados por escolaridade, outra variável da desigualdade socioeconômica. A falta de UTIs e de ventilação mecânica é particularmente intensa entre as pessoas com menor nível de escolaridade, mostrando um efeito diferencial nesse segmento em relação a todos os outros. Três de cada dez pessoas sem escolaridade morreram de covid-19 sem conseguir ter acesso a um leito de terapia intensiva ou ventilação mecânica.

Desde o começo da crise, as autoridades brasileiras relacionam os óbitos por covid-19 com algumas comorbidades. Pacientes com cardiopatias, hipertensão e diabetes, por exemplo, têm mais chances de evoluir para uma manifestação grave da doença e até morrer. No Brasil, a incidência de comorbidades também está particularmente correlacionada com o nível educacional. Doenças cardíacas, por exemplo, são 20% mais frequentes entre pessoas falecidas com menos escolaridade.

Se os brasileiros submetidos à manifestação mais grave da covid-19 enfrentam a doença de forma desigual, o próprio vírus também avança pelas várias regiões do país de forma diferente. Muitos fatores podem influenciar isso, como por exemplo a data de início da transmissão comunitária, o nível de concentrações populacionais (que aceleram o contágio) e até as decisões dos gestores locais sobre o isolamento social. Embora a Organização Mundial da Saúde já tenha declarado que o coronavírus não tem uma característica sazonal, o Governo do Brasil acredita que o surgimento de grandes ondas de contágio nas regiões Norte e Nordeste no início da crise e a migração atual dos focos para as regiões ao Sul estão relacionadas com a chegada do inverno nesta área do país.

Seja como for, o Brasil enfrenta distintas ondas localizadas da epidemia, se observamos as mortes em uma linha do tempo. Há fortes focos concentrados no Norte e Nordeste entre abril e maio, com destaque para Belém, ManausFortaleza e Recife. E, desde junho, essas ondas migram para as regiões Sul e Centro-Oeste. Ainda é cedo para comparar a intensidade delas, já que a fase da epidemia também muda regionalmente. E não há elementos epidemiológicos que indiquem um controle efetivo. O número total de mortes registradas todos os dias no país até cresce de forma mais lenta que há alguns meses, mas segue uma incidência alta, com mais de 1.000 novas notificações diárias. Mais de cinco meses depois do início da crise, o Brasil ainda tem o mesmo desafio: superar a polarização política e agir para controlar a pandemia.

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