100 anos do nascimento de Abelardo da Hora

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Em 31 de julho de 2024, completam-se 100 anos do nascimento do maior e melhor escultor brasileiro até hoje

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Francêsca, Abelardo e Uraniano
Francêsca, Abelardo e Uraniano (Foto: Arquivo pessoal)

Em 31 de julho de 2024, completam-se 100 anos do nascimento do maior e melhor escultor brasileiro até hoje. Para quem não teve a felicidade da sua arte, isso ainda não diz tudo, porque Abelardo da Hora eram um desenhista fino, autor de nanquins sobre os meninos do Recife, os meninos famintos das ruas e dos mangues, como até hoje não se viu nada semelhante em todo o mundo. Como se fosse pouco, ele foi o mestre, o  incentivador de novos talentos, professor insuperável de grandes que hoje povoam as artes do Brasil. E por fim, ele era acima de tudo, nas entrevistas, um homem portador de graça de humor, de histórias que divertiam a todos, inclusive quando perguntou à minha mulher por que ela havia casado com um indivíduo tão feito. A resposta dela foi boa também:

– Foi a botija de ouro que ele tem escondida.

Este a seguir é o perfil que eu lhe fiz na altura dos seus 90 anos, e publiquei no Dicionário Amoroso do Recife.

O ceramista, escultor, desenhista, gravador e mestre de gerações Abelardo da Hora está a caminho dos 90 anos neste 2014. Ele vive e trabalha até hoje, todos os dias, na Rua do Sossego, no Recife. 

A casa de Abelardo é uma galeria de arte. Ou um museu de arte. Ou uma permanente exposição. Ou um templo de convicções levantadas. Ele habita no mundo que ele criou. Nesse particular, Abelardo é muito mais feliz que os colecionadores de livros, que os amantes de livros, que os escritores. Nem mesmo Balzac teve a felicidade e o concreto de caminhar entre seus personagens em bronze, em cimento. Abelardo da Hora tem essa felicidade, enquanto caminha entre seres que poderiam ser uma alegoria da fome, da negação de direitos, ou de eróticos delírios quase renascentistas, se os seres que saem da sua imaginação não se encontrassem ao abrir a porta e sair para a cidade do Recife. 

Em números, esse homem possui 90 anos incompletos, 55 quilos, mais ou menos, 1 metro e 65 menos alguns centímetros talvez. Se a presença física é o que nos impressiona e resiste na retina, nem um só desses números lhe faz justiça. É impressionante, é uma solução da arte e do engenho humano o tamanho dos monumentos que Abelardo da Hora cria, apesar da estatura e da aparente fragilidade em seu corpo. Ainda que pareça bem mais baixo, Abelardo da Hora cresce na lembrança em outras dimensões. 

Ele possui um senso de humor de criança. Uma alegria de criar que não o abandona. E, para nada dizer, esse homem baixinho, magro e frágil é nada mais, nada menos que o Adão da arte brasileira. Ele fez nascer o fogo em gerações de pintores que hoje estão no mundo: Francisco Brennand, Samico, Guita Charifker, Wellington Virgolino, Zé Cláudio, Corbiniano, e “uma porção de artistas”. Comunista do Comitê Estadual está vivo sem ter saído de Pernambuco. Todo o Comitê Estadual do Partido Comunista foi assassinado, todo. E por que foram tão “civilizados” com Abelardo?

 — Por motivo e acaso que somente as relações locais do Recife explicam, ele é casado com a irmã de Augusto Lucena, um político de confiança dos militares golpistas no Recife de 1964. Dona Margarida, sua esposa, me confessou uma vez, ao ver Abelardo desvelar uma estátua contra o imperialismo americano: “Eu tenho muito medo!”. 

Em uma entrevista de 2007, Abelardo me contou que recebera uma grande influência, de um ponto de vista intelectual, do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre. Esse manifesto deu uma guinada no espírito de criadores como José Lins do Rego, Ascenso Ferreira,  Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. Daí os artistas fizeram um Salão dos Independentes, diferente do pessoal que fazia a coisa acadêmica da Escola de Belas Artes. Fizeram o Primeiro Salão dos Independentes, o Segundo e o Terceiro. “Quando eu fundei, no recinto da minha primeira exposição, a Sociedade de Arte Moderna do Recife, eu criei o Quarto Salão, para dar continuidade àquele movimento. Eu dizia a Hélio Feijó, ‘o interessante é a gente começar a formar na mentalidade dos artistas esse amor pela tradição e pelas coisas do Brasil’. E então comecei também a me impressionar com as coisas da Cultura Popular”. 

Nessa entrevista, eu lhe pedi as influências além da política, no seu amor pelas coisas do povo. Eu queria lembrá-lo das influências do ponto de vista estritamente artístico, das quais ele citara apenas o expressionista alemão Barlach. E tivemos então um diálogo, começado por esta declaração de Abelardo: 

— Uma outra coisa que realmente me impressionou foi Albert Eckhout, que veio com Nassau, e fez aquelas coisas maravilhosas, entendeu? Então minhas coisas ficaram. A minha cabeça se abriu com essa visão desse caminho, do expressionismo alemão… 

— Rodin não é um nome…? 

— Não, não, não. Rodin é um acadêmico! Ele tem é uma propaganda arretada em torno do nome dele, entendeu? Muito bem feita… 

— E no desenho? Porque eu sei que você é um desenhista muito bom. 

— Sim, uma das coisas que eu achava também muito bonita eram os mexicanos. Os mexicanos todos. Os muralistas… Agora, principalmente aqui, a nossa cultura popular, as manifestações populares, entendeu? A música popular, o frevo, principalmente o frevo de bloco, que é uma coisa maravilhosa, do ponto de vista de música e de manifestação artística, não é? Com tudo, com tudo que eles têm, com a indumentária, com os adereços, com tudo, com tudo que eles fazem para o carnaval, uma coisa maravilhosa, entendeu? Que é difícil você se esquecer. 

Já no fim da entrevista, Abelardo da Hora me contou uma viva história, em que nos falou como foi expulso da casa do pai de seu aluno Francisco Brennand. Abelardo vivia, trabalhava, dormia e comia na casa do patriarca Ricardo. Mas: 

— Toda manhã, quando eu me acordava, acordavam também aquelas filhas dele, do velho Ricardo, irmãs de Francisco, viu? E quando elas saíam para a escola, eu via aquela carinha de anjo… veja bem, isso todo dia, na cara do rapaz, de um adolescente, não tem quem aguente, não é? Veja bem. Então eu fiz uma escultura — a torre dos meus sonhos — veja bem, fiz uma escultura com uma mulher, em pé, entendeu? Dois cupidos brincando com a cabeleira dela, com uma placa que vinha atrás das costas dela, brincando com a cabeleira e um freguês abraçado com as pernas dela com a minha cara! Então veja bem. Todo o mundo notou isso… Quando eu levei a estátua pra sala, ficou aquele silêncio, um clima meio esquisito. Pesado. 

— Mas ela estava vestida, não é? 

— Vestida, mas com aquelas formas perfeitas, com aqueles seios lindos, dois cupidos brincando com a cabeleira dela, e o freguês abraçado com a saia dela era eu, com a minha cara, todo o mundo reconheceu. Quando foi na hora de dormir, Francisco me disse, “Da Hora, eu já vou subir”. Aí seu Ricardo tinha feito um gesto com a mão. Ele me disse: “Abelardo, como é que você faz uma coisa dessas comigo? Eu tratando você aqui como um filho, você vê que eu sou seu amigo, muitas vezes eu chamo você pra ouvir música, eu toco pra você, entendeu? E você fez um trabalho que é o mesmo que você estar querendo fazer amor com a sua irmã”. Eu respondi: “Seu Ricardo, não diga mais nada, que amanhã mesmo vou-me embora.” 

E Abelardo completou, quando eu lhe fiz ver o quanto ele fora ingrato com um mecenas: 

-Mas não tinha cristão que aguentasse aquela beleza! 

Este é Abelardo da Hora, no vigor e memória dos seus 90 anos.  

(Dicionário Amoroso do Recife, 2014)

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