Dados contabilizam ações a partir de 2017; Bahia, Minas Gerais e São Paulo são os estados onde mais pessoas foram libertadas
Por Igor Carvalho, do Brasil de Fato, compartilhado do Portal da CUT
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Trabalhadoras levam muitos anos para reconhecer que a condição que vivem é de escravidão
Após 72 anos fazendo trabalhos domésticos para uma família do Rio de Janeiro, sem qualquer remuneração, uma mulher foi resgatada pela Auditoria Fiscal do Trabalho no Rio, com a participação do Ministério Público do Trabalho (MPT), em 15 de março de 2022. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), esse é o caso de exploração de uma pessoa em condição análoga à escravidão mais longevo, desde que o crime passou a ser fiscalizado, em 1995.
Quando foi resgatada, a idosa dormia em um sofá improvisado em um cômodo nos fundos da casa. Sua função naquele momento era trabalhar como cuidadora de sua empregadora, que a escravizou durante toda a vida. Ao todo, três gerações da família foram beneficiadas pelo trabalho não remunerado da trabalhadora.
O caso da trabalhadora de 84 anos resgatada no Rio de Janeiro não é exceção. De janeiro de 2017 até agosto de 2023, 101 trabalhadores domésticos foram resgatados em situação análoga à escravidão. É o que revela um levantamento feito pelo Brasil de Fato com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), utilizando dados do MTE.
A pasta explicou ao que 2017 é o ano que marca o início dos registros dos dados de resgate de trabalhadores domésticos em situação análoga à escravidão pela Secretaria de Inspeção ao Trabalho, do MTE.
De acordo com o levantamento, em 2017 dois trabalhadores domésticos em condições análogas à escravidão foram resgatados no Brasil. Nos três anos seguintes, 2018 (2), 2019 (5) e 2020 (3), o padrão se manteve. No entanto, em 2021 (31), 2022 (34) e até agosto de 2023 (24) houve um crescimento exponencial. O fato que não espanta Luiza Batista, coordenadora geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), que acredita que ainda “haja muita subnotificação.”
“Essa questão dos números não é um número exato e real, porque a residência é inviolável, de acordo com a Constituição, mas isso é relativo. Quem tem dinheiro tem sua residência respeitada, o que não acontece nas periferias. Quando se recebe uma denúncia, os sindicatos não podem ir ao local de trabalho da trabalhadora doméstica, mesmo os auditores-fiscais não podem ir sem um mandado da Justiça. Partindo desses argumentos, dessas dificuldades, com certeza essas 101 trabalhadoras resgatadas não correspondem à realidade, deve ter muito mais casos”, explica Batista.
Em setembro deste ano, 10 pessoas foram libertadas da condição de trabalho doméstico análogo à escravidão, após uma operação conjunta do MTE, MPT, Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Essas 10 pessoas não estão no levantamento feito pelo Brasil de Fato. Com esse caso, o número de resgatados em 2023 alcança 34 e iguala o ano anterior, 2022, como os períodos com mais libertações de trabalhadores domésticos de situações análogas á escravidão.
Entre os estados, a Bahia é o estado onde mais trabalhadores domésticos foram resgatados, 28 ao todo. São Paulo (23) e Minas Gerais (12) aparecem em seguida. Rio de Janeiro (8) e Goiás (5) fecham a lista.
Crescimento
Luiza Batista imputa o crescimento dos dados às campanhas de conscientização da população, que estimulam as denúncias de trabalho escravo, e ao avanço na regularização da profissão.
“Quanto às condições de trabalho, era necessário que houvesse um rigor maior da lei com os empregadores que não respeitam, que não assinam carteira, que não pagam o salário correto e a hora extra. Sabemos que isso tudo está ligado à inviolabilidade da residência. As condições melhoraram? Sim, mas podem melhorar mais”, conta Batista.
Em 2023, Emenda Constitucional nº 72, conhecida como PEC das Domésticas, completou 10 anos. A legislação representou um marco significativo para a profissão, já que esses trabalhadores passaram a ter direito a benefícios como jornada de trabalho regulamentada, horas extras remuneradas, adicional noturno e seguro-desemprego.
Apesar da lei, explica Batista, “a grande parte das denúncias são feitas por terceiros, anonimamente”. Isso ocorre porque “a maioria dessas pessoas resgatadas são analfabetas e as demais são semianalfabetas, elas desconhecem os canais de denúncia e têm muita dificuldade de se comunicar. Essas mulheres demoram muitos anos para reconhecer que a condição que vivem é de escravidão”.
Durante esses 10 anos de vigência da emenda constitucional, a informalidade ainda é o principal fator que impede a universalização dos direitos. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 76% das profissionais não têm carteira assinada, ou seja, 3 em cada 4 profissionais exercem as atividades domésticas sem ter acesso à proteção social e aos demais direitos trabalhistas.
O MTE informou que os dados não são organizados por gênero. Dessa forma, não é possível saber se os casos de resgate são de trabalhadoras ou trabalhadores. Porém, ainda de acordo com a PNAD, as mulheres são a maioria da categoria, ocupando 92% das vagas de trabalho doméstico no Brasil.
Denúncia
Se você sabe de algum caso de trabalhador doméstico em situação análoga à escravidão, pode denunciar no Disque 100. A ligação pode ser feita gratuitamente de qualquer lugar do país e o serviço funciona 24 horas, inclusive aos sábados, domingos e feriados.