11 de setembro de 1973: a traição de Pinochet

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Foram 17 anos de uma ditadura que sistematicamente perseguiu qualquer tentativa de oposição ou abertura

Compartilhado de Brasil 247




Por Gabriela Máximo e Javier M. González, Nuevatribuna.es – Às 9h da manhã do dia 11 de setembro de 1973, quando ficou claro que havia um golpe de estado em andamento, o presidente do Chile, Salvador Allende, disse a Carlos Jorquera, seu chefe de Imprensa, que o acompanhava no palácio de La Moneda: “O pobre Pinochet a essa hora deve estar preso”. Allende havia chegado à sede do governo às 7h30 depois de ser informado da revolta da Marinha em Valparaíso. Ainda acreditava que era possível controlar a situação. A tensão no país estava elevada ao limite, mas dois dias antes, Allende havia se encontrado com o comandante-em-chefe do Exército e estava certo de sua lealdade. Do seu escritório, em La Moneda, tentou contatá-lo por telefone. Sem sucesso.

Allende não podia imaginar: naquele momento, o general Augusto Pinochet estava no centro de Telecomunicações de Peñalolén – uma comuna no sudeste da capital – onde, em poucos minutos, daria a ordem para o ataque terrestre ao palácio. Quando Joan Garcés, seu assessor espanhol, informou que Pinochet fazia parte do complô, o presidente reagiu com amargura: “Três traidores, três traidores…”. Duas horas depois, após um bombardeio aéreo, o prédio na região central de Santiago estaria em chamas e Allende morto na sala principal ao lado da arma com a qual se suicidou.

Allende e seus aliados na Unidade Popular sabiam que havia intrigas golpistas, mas sempre pensaram que qualquer tentativa de golpe encontraria a oposição de setores militares leais. Allende contava com o profissionalismo dos militares, o que era conhecido como “doutrina Schneider”. Confiança especialmente na força dos Carabineros. Isso explica a decepção de Allende com o chefe da instituição policial militarizada, o general César Mendoza, a quem ele se referiu em uma de suas últimas mensagens radiais ao país na manhã de 11: “General rasteiro, que apenas ontem manifestara sua fidelidade e lealdade ao governo”.

Allende deixou claro que estava disposto a morrer defendendo seu governo até as últimas consequências. “E não é porque tenha fibra de apóstolo, mas porque tenho respeito e não me imagino saindo empurrado de meu escritório, nem me tornando um exilado que bate nas portas estrangeiras”, conforme registrado no livro “Golpe: 11 de setembro de 1973”, de Ascanio Cavallo e Margarita Serrano.

Foi o fim do sonho de uma sociedade socialista e democrática, gestado com a chegada da Unidade Popular ao poder em 1970. Durante 1001 dias, a via chilena ao socialismo tentou atravessar um caminho institucional e revolucionário em direção ao novo regime, uma experiência inédita até então no mundo. Allende sofreu pressões internas em sua própria coalizão, a Unidade Popular, onde havia setores que defendiam a radicalização. Mas ele nunca abandonou a via democrática e fez várias tentativas de manter o diálogo com a Democracia Cristã, de centro-direita.Playvolume

O golpe cívico-militar de 11 de setembro de 1973 foi a culminação de um movimento sedicioso iniciado antes da posse de Allende e que teve envolvimento direto do governo dos Estados Unidos – primeiro para tentar impedir a ascensão de um presidente socialista ao poder, depois para desestabilizar seu governo e, finalmente, para derrubá-lo -, como demonstraram os arquivos da CIA desclassificados em 1999. Na época da Guerra Fria, os EUA não aceitavam uma nova Cuba no continente. Após a queda de Allende, o governo norte-americano deu forte apoio ao regime militar que se instalou por quase 17 anos e que ficou marcado por uma brutal violação dos direitos humanos.

O golpe começou às seis da manhã, quando a Marinha ocupou as ruas de Valparaíso. Alertado sobre o movimento, Allende dirigiu-se ao palácio de La Moneda acompanhado de assessores e sua guarda pessoal, o GAP (Grupo de Amigos do Presidente). O prédio estava cercado por tanques. Do seu escritório, fez o primeiro de seus cinco discursos radiofônicos naquela manhã.

Ele informava sobre o movimento sedicioso em Valparaíso e pedia ao povo que permanecesse alerta. “Chamo todos os trabalhadores a ocuparem seus postos de trabalho, a comparecerem às suas fábricas, a manterem a calma e a serenidade. Até agora, em Santiago, não houve nenhum movimento extraordinário de tropas e, conforme me informou o chefe da Guarnição, Santiago estaria em regime de quartel e normal. De qualquer forma, estou aqui, no palácio do Governo, e aqui ficarei defendendo o Governo que represento pela vontade do povo”, disse às 7h55.

“Diga aos seus comandantes-chefes que se quiserem minha renúncia, eles terão que vir pedi-la aqui, que tenham a coragem de pedi-la pessoalmente.”

Às 8h30, as rádios de oposição transmitiram a primeira proclamação das Forças Armadas instando à renúncia de Allende. Dez minutos depois, o presidente saiu à sacada do palácio e saudou um grupo de jovens. Foi a última vez que ele foi visto em público. Em um novo pronunciamento, reconheceu a gravidade do momento: “A situação é crítica, enfrentamos um golpe de Estado em que participa a maioria das Forças Armadas”. A um ajudante que transmitiu a exigência de renúncia, ele respondeu: “Diga aos seus comandantes-chefes que se quiserem minha renúncia, eles terão que vir pedi-la aqui, que tenham a coragem de pedi-la pessoalmente”.

Hernán del Canto, que foi secretário-geral do governo e ministro do Interior, pediu instruções para o Partido Socialista, ao que Allende respondeu: “Nunca antes me pediram minha opinião. Por que me pedem agora? Vocês, que tanto alardearam, devem saber o que fazer.” Dessa forma, Allende deixava claro seu ressentimento por não ter contado com o apoio de seu partido nos momentos-chave da crise.

Às 9h10, o presidente falou pela última vez e se despediu do país com o discurso emocional que ficaria na História: “Certamente esta será a última oportunidade em que posso me dirigir a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Magallanes. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção”, começou o mandatário com voz serena. Allende comunicou aos chilenos que pagaria com sua vida a defesa do país e seus princípios. Acusou os comandantes-chefes de traição e disse que suas últimas palavras serviriam como castigo moral.

“Trabalhadores de minha pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Outros homens superarão este momento cinzento e amargo em que a traição tenta se impor. Continuem sabendo que, mais cedo do que tarde, as grandes alamedas serão abertas novamente por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor.” E concluiu: “Viva o Chile! Viva o povo, viva os trabalhadores!”.

Pouco depois, os tanques abriram fogo contra La Moneda. Allende rejeitou a oferta de um avião para deixar o país. Pediu uma trégua para que as mulheres deixassem o palácio, incluindo suas duas filhas, Beatriz e Laura, assim como sua secretária e confidente, Miria Contreras, conhecida como La Payita.

Nesse ponto, aqueles que ficaram pressentiam a morte. Entre eles, o advogado espanhol Joan Garcés, assessor político e amigo de Allende: “Liguei para uma pessoa amiga e dei o endereço dos meus pais na Espanha para que explicasse a eles que estávamos em La Moneda e que íamos morrer”, contou Garcés no livro “Augusto Pinochet: 503 dias preso em Londres”, de Mónica Pérez e Felipe Gerdtzen.

Por ironia do destino, anos depois o advogado seria o responsável pela histórica detenção de Pinochet em Londres: em 1996, Garcés entrou com uma ação contra o general nos tribunais espanhóis, o que levou à prisão do ex-ditador no Reino Unido dois anos depois.

Garcés deixou o palácio pouco antes do meio-dia por desejo expresso de Allende, que lhe disse que ele era estrangeiro e que teria que explicar ao mundo o que havia acontecido. “Quando me despedi de Allende, senti que me despedi de um grande amigo que vai morrer. Mas fui embora com a mesma serenidade que o presidente transmitia”, lembrou.

Do seu posto de comando, Pinochet mantinha comunicação por rádio com os outros líderes militares. O que foi dito então foi registrado. Ao ser informado, cedo, de que o chefe de Estado ainda estava no palácio, o general respondeu: “Então é preciso estar pronto para agir sobre ele, é melhor matar a cobra e acabar com a farra [acabar com os problemas]”.

Pinochet, a quem o presidente considerava leal até 48 horas antes, foi implacável diante de um suposto apelo de Allende ao diálogo: “Rendição incondicional, nada de conversa! Rendição incondicional!” O diálogo por rádio com o almirante Patricio Carvajal, chefe do Estado-Maior Conjunto, adquiriu tons macabros mais tarde. “Entendido. Ou seja, que se mantém a oferta de tirá-lo do país”, quis confirmar Carvajal. Pinochet: “A oferta de tirá-lo do país se mantém, mas o avião cai, velho, quando estiver voando.” Não conseguindo conter o riso, Carbajal responde: “Entendido”.

Às 12h05, o bombardeio aéreo começou em La Moneda. Por 15 minutos, mais de 20 bombas deixaram a ala norte do prédio em chamas. Bombas lacrimogêneas foram lançadas do solo. Às 14h00, os militares começaram a entrar no palácio. Pouco depois, saíram com o corpo de Allende coberto por um cobertor boliviano. O país estava sob controle dos militares. Presidido por Pinochet, o Conselho Militar assumiu não apenas o poder Executivo, mas também o Judicial e ordenou a dissolução do Congresso. As Forças Armadas assumiram “o compromisso patriótico de restaurar a chilenidade (sic), a justiça e a institucionalidade quebrada”.

Foi decretado estado de sítio e toque de recolher. O estado de sítio foi informado como “estado ou tempo de guerra”. Desde as primeiras horas, houve notícias de execuções e torturas. Comandantes e chefes de regiões foram autorizados a realizar conselhos de guerra e aplicar a Lei de Fuga para justificar as execuções. Um comunicado militar ordenou que 92 membros do governo deposto e políticos da UP se entregassem ao Ministério da Defesa imediatamente. As embaixadas ficaram cheias de chilenos em busca de asilo. Milhares de pessoas foram detidas em todo o país e transferidas para campos de prisioneiros improvisados. O Estádio Nacional e o Estádio Chile foram transformados em locais de prisão, tortura e execução de opositores.

O número de mortos e desaparecidos foi de 3.216. Mais da metade deles ocorreram no ano do golpe, embora a feroz repressão tenha continuado até o final do regime.

De acordo com a comissão Rettig, criada após a democracia para investigar os crimes da ditadura, e a Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, estabelecida logo em seguida, o número de mortos e desaparecidos foi de 3.216. Mais da metade das mortes ocorreu no ano do golpe, embora a repressão feroz tenha continuado até o final do regime.

Em novembro, o decreto de lei nº 130 declarou nulos os registros eleitorais e seus arquivos foram incinerados. Medidas repressivas continuaram sendo anunciadas sem pausa e mudaram completamente a vida dos chilenos.

Embora Pinochet tenha assumido rapidamente o protagonismo, o golpe não foi liderado por ele inicialmente, mas sim pelo vice-almirante da Marinha, José Toribio Merino, e pelo comandante da Força Aérea, Gustavo Leigh. Quarenta e oito horas antes do golpe, ambos tiveram que convencer Pinochet a se juntar a eles. Merino era o mais ideológico. Profundamente anticomunista, era defensor do ideal nacional-católico e admirador de Franco. E Leigh ficou na memória de todos os chilenos por afirmar em seu primeiro discurso que iriam extirpar o câncer marxista.

Pinochet havia sido nomeado Comandante em Chefe por Allende 19 dias antes do golpe. Em 23 de agosto, o general Carlos Prats, último comandante leal a Allende, renunciou sob pressão de setores militares golpistas. Ao sair, Prats recomendou Augusto Pinochet como seu sucessor, considerando-o leal e constitucionalista.

O ambiente golpista estava estabelecido desde 29 de junho, quando um grupo de militares se rebelou contra o governo e levou tanques para as ruas. A tentativa, conhecida como Tanquetazo, foi rapidamente reprimida, mas a fissura já estava exposta. Allende pediu ao Congresso a declaração de Estado de Sítio. O pedido foi negado.

A direita política percebeu a oportunidade e tentou agudizar a crise entre os militares e o governo, como explica o historiador Luis Corvalán Marquéz em seu livro “Os Partidos Políticos e o Golpe de 11 de Setembro”: “Não por acaso, em seu discurso, a temática de uma eventual formação de grupos paramilitares pela UP e pelo MIR começou a ganhar espaço, os quais seriam compostos por um número considerável de estrangeiros”.

Os partidos e organizações de direita intensificaram suas ações para desestabilizar o governo. O grupo civil ultradireitista Patria y Libertad, com apoio dos militares, desencadeou uma onda de atentados terroristas, como admitiu posteriormente o líder do grupo, Roberto Thieme. “Fomos contatados por um setor de uma das ramificações das Forças Armadas para contribuir para o golpe, cortando vias de transporte, energia e comunicações, e recebemos apoio logístico das instituições militares para essa missão… realizamos sabotagens, derrubamos pontes e linhas de trem, derrubamos torres de alta tensão.”

Em 25 de julho, a Confederação Nacional dos Proprietários de Caminhões do Chile iniciou um lockout financiado por dinheiro americano, como se soube depois. Outras associações patronais se juntaram à greve, mergulhando o país no caos. A situação ficou fora do controle do governo. Allende tentou jogar suas últimas cartas. Primeiro, buscou o diálogo com a Democracia Cristã por intermédio da Igreja Católica. Em reunião com o então presidente da DC, Patricio Aylwin, e o cardeal Silva Henríquez, o presidente tentou tranquilizá-los: “Enquanto eu for presidente do Chile, não haverá ditadura do proletariado”. A segunda e última carta de que dispunha Allende era a convocação do plebiscito.

Mas nesse momento, como em tantos outros, ele não contou com o apoio do setor majoritário de seu partido. Os socialistas vetaram o diálogo com a DC e a ideia do plebiscito. O PS e o MAPU – dois dos parceiros da Unidade Popular, junto com o Partido Comunista – radicalizaram-se. Dois dias antes do golpe, o presidente do PS, Carlos Altamirano, fez um discurso incendiário no Estádio Nacional, deixando clara sua opção: “O Chile se transformará em um novo Vietnã heróico… A guerra civil se combate criando um verdadeiro poder popular”. O discurso enfureceu Allende, que repetiu por meses que a guerra civil deveria ser evitada a todo custo. “Isso não tem remédio”, ele disse ao líder comunista Luis Corvalán. Segundo outra versão, ele teria dito: “Esse louco está sabotando tudo”.

A revolução oferecida por Allende era muito institucional para os revolucionários e muito revolucionária para os institucionalistas.

No dia seguinte ao golpe, o Partido Democrata-Cristão (PDC) emitiu uma nota de apoio à Junta Militar, responsabilizando a esquerda pelo caos em que o país havia mergulhado. O PDC desempenhou um papel-chave na eleição de 1970, quando a UP precisou de seu apoio para formar a maioria necessária no Congresso – se não houvesse um vencedor por maioria absoluta, caberia ao Congresso decidir entre os dois candidatos mais votados. Mas logo se afastou do projeto socialista do governo.

A nota do PDC dizia: “Os fatos mostram que as Forças Armadas e a Polícia Militar não buscaram o poder. Suas tradições institucionais e a história republicana de nosso país inspiram confiança de que, assim que cumpriram as tarefas que assumiram para salvar nossa nação chilena dos graves perigos de destruição e totalitarismo que a ameaçavam, eles entregarão o poder ao povo soberano.” Diante da barbárie estabelecida, eles tiveram que reavaliar sua posição pouco tempo depois.

Daniel Mansuy, em seu livro “Salvador Allende: A Esquerda Chilena e a UP”, resume o beco sem saída do governo: A revolução oferecida por Allende era muito institucional para os revolucionários e muito revolucionária para os institucionalistas.”

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