125 anos de Gramsci, o intelectual orgânico

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Por Carlos Carujo, professor, publicado em Esquerda.Net – 

O revolucionário italiano Antonio Gramsci foi um símbolo de resistência ao fascismo, mas também de capacidade de renovação de um marxismo que não desiste de ser crítico. Para assinalar os 125 anos do seu nascimento, o esquerda.net republica um artigo de Carlos Carujo na Revista Vírus nº6.

“Para que da violência com que a realidade nos confronta não resulte a paralisia, temos, portanto, de contar com o motor de uma vontade insistente”.

Aos vinte anos, um estudante pobre e doente chega a Turim. Decorria o ano de 1911 e uma voragem política iria acelerar decisivamente a sua vida. O jovem regionalista sardo torna-se militante do PSI três anos depois e, pouco mais tarde, fundador e dirigente do Partido Comunista da Itália. Entretanto, inicia-se a Guerra Mundial e sentem-se as ondas de choque da primeira revolução proletária da história. Em Itália, viver-se-á uma insurreição operária em Turim que fazia sonhar com uma revolução e, seguidamente, o fascismo marchará rumo ao poder.




Este capítulo intenso de intervenção política direta encerra-se abruptamente em novembro de 1926. Sendo à altura deputado e o dirigente mais reconhecido do PCI, será preso na sequência do atentado contra Mussolini, que se tornou pretexto para a radicalização do regime. Encarcerado, assolado pela doença e pelo isolamento político, produz uma das obras mais marcantes do marxismo do século XX. E, apesar de todas as limitações, sem acesso a muitas das fontes de que necessitaria, o que aí escreve continua hoje a ser um elemento fundamental no debate político à esquerda.

Antonio Gramsci é, assim, não só sinónimo de resistência ao fascismo, mas também de capacidade de renovação de um marxismo que não desiste de ser crítico. Contudo, o seu sucesso posterior tinha tudo para não ter acontecido. Gramsci lega-nos uma obra escrita em cadernos que resistiram por pouco às vicissitudes da prisão fascista. Reelaborados várias vezes, os seus escritos mantêm, mesmo na forma final e mesmo os mais “definitivos”, um caráter inacabado e fragmentário e estão pejados de referências datadas e circunstanciais que dificultam a sua leitura. Para além disto, o seu conteúdo é inequivocamente de sinal contrário face à cartilha então dominante.

Parecendo ter tudo para ficarem encerrados num baú ou para circularem apenas entre grupos restritos de historiadores do marxismo, os cadernos da prisão tornam-se um sucesso em várias geografias e contextos devido a uma capacidade improvável de resiliência. Num primeiro momento tal poderia até ser facilmente explicado devido à aura do resistente antifascista morto na prisão (de facto, Gramsci morrerá em 27 de abril de 1937 numa clínica supostamente em liberdade condicional concedida pelo fascismo expressamente de forma a defender-se das acusações de negligência criminosa face aos seus problemas de saúde e para que não se possa dizer que morreu na prisão).

Nas primeiras edições dos Cadernos e das Cartas, Gramsci é divulgado como defensor da ortodoxia. A edição de 1947/8 de Togliatti censura passagens sobre Trotsky, Bordiga e Rosa Luxemburgo, notas pessoais e passagens críticas à linha da Internacional. Aliás, foi apenas em 1975, com a edição de Valentino Gerratana, que se massificam as cerca de três mil páginas dos cadernos integralmente e na ordem cronológica. As reviravoltas da política levam à posterior difusão do seu pensamento como uma das justificações da viragem eurocomunista do PCI.

Mas nem só a utilização pelos interesses políticos imediatos justifica o sucesso. Este também se justifica por uma capacidade de se encontrar com o futuro. A crise do marxismo ortodoxo, cientificista e economicista, esse socialismo da revolução a horas certas, tornou Gramsci uma referência incontornável. Se houve quem usou os seus escritos para justificar um progressivo afastamento do marxismo ou, por exemplo, o conceito de hegemonia como sinónimo de adesão a vias reformistas sem reformas, para muitos/as outros/as Gramsci apresentou-se naturalmente como contemporâneo pela urgência do marxismo aberto.

Além dos interesses políticos imediatos e das análises ideológicas, também na academia os escritos de Gramsci se tornaram um sucesso. Autor de cultura enciclopédica, capaz de dialogar com várias correntes da cultura italiana ou com as inovações norte-americanas, a sua capacidade de criar conceitos ou de alargar os conceitos já existentes a perspetivas inéditas abriu portas em campos como os denominados estudos subalternos, a antropologia, a linguística, as relações internacionais, as ciências da educação, já para não falar da filosofia política.

Pode mesmo dizer-se que, atualmente, a figura de um Gramsci enquanto autor erudito e reverenciado numa certa academia ofuscou esse outro Gramsci político profundamente envolvido nas contradições do seu tempo. É preciso então não cair na armadilha de despolitizar a leitura de Gramsci, de separar dois Gramsci, sendo um o político comunista e o outro o intelectual maduro preso dedicado ao estudo.

A política revolucionária na encruzilhada do fascismo

Para compreender Gramsci na sua totalidade, resgatemos esse momento em que o jovem ilhéu deixa a sua Sardenha natal para estudar em Turim. Poder-se-ia dizer, na linguagem que mais tarde forjará, que se trata de um choque catártico com um mundo novo, com outro nível de desenvolvimento e de urbanidade e o encontro com a força do operariado industrial. Esta diferença radical será um dos pontos de partida importantes para pensar o seu país. A Itália, entidade política recente, continua dividida cultural e economicamente. A fratura Norte/Sul que Gramsci experiencia será um dos elementos que utilizará para investigar a sociedade italiana.

Se o conhecimento do socialismo já vinha do seu irmão Gennaro, o novo ambiente contribui decisivamente para Gramsci ultrapassar a política da indignação regionalista pela pobreza endémica e aderir ao socialismo enquanto forma de pensar e agir sobre a exploração de forma mais abrangente. Torna-se membro do PSI, então plataforma unitária de vários socialismos, no mesmo ano em que rebenta a I Guerra Mundial.

Este acontecimento abala profundamente o movimento socialista. A II Internacional passa muito rapidamente da retórica da paz mundial à votação dos créditos de guerra e às cedências aos nacionalismos. O PSI é dos poucos partidos que resiste aos impulsos nacionalistas. Não sem opositores: Mussolini abre campo à cisão defendendo «uma neutralidade ativa», que mais tarde será transformada numa defesa absoluta do intervencionismo na guerra. Gramsci, por sua vez, escreve um artigo em que utiliza a mesma expressão de Mussolini para atacar a passividade dos reformistas. Só que o caráter dúbio desta fórmula nunca deixará de lhe ser relembrado pelos seus adversários políticos.

A Revolução Russa é o acontecimento decisivo que se segue. De início sem muita informação, Gramsci coloca-se intuitivamente ao lado da revolução dos sovietes. Considera-a até «a revolução contra o Capital» porque teria desmentido a premissa marxista de que a revolução aconteceria nos países capitalistas mais avançados. Gramsci sublinha aí a sua desconfiança persistente acerca do economicismo a que junta uma boa dose de voluntarismo.

Para os setores revolucionários, a Revolução Russa transforma-se num modelo ou numa inspiração. No ano seguinte ao fim da guerra, participa na fundação do LOrdine Nuovo, simultaneamente jornal e grupo político, que passa de uma breve intenção de difusão cultural para ter um papel decisivo no chamado biénio vermelho (1919-20), o movimento massivo dos conselhos de fábrica de Turim que pretendia «fazer como na Rússia».

Contudo, o velho PSI divide-se quanto ao movimento. O grupo do L’Ordine Nuovo defende um conselhismo talvez ingénuo, mas sobretudo mobilizador. É o impulsionador direto dos conselhos de fábrica, vendo neles, não só a forma dos sovietes à italiana, mas até a forma futura da democracia operária. A esta visão opõe-se a alegada passividade dos maximalistas maioritários no PSI (Serrati) que circunscrevem o movimento à reivindicação de melhorias de nível de vida, a desconfiança do sindicalismo instalado relativamente a um movimento que ultrapassa as suas fronteiras e a menorização dos conselhos de fábrica em nome do papel do partido pelos abstencionistas de Bordiga. Isolado e esgotado, o movimento acaba derrotado.

No ano seguinte, ainda na ressaca desta derrota, Gramsci participa do grupo que promove a cisão do PSI e a criação do Partido Comunista da Itália. Apesar de a maioria maximalista ser adepta da III Internacional, o PSI havia recusado alguns dos termos obrigatórios para a adesão formal ao movimento, nomeadamente a alteração do nome e a expulsão da minoria reformista. Amadeo Bordiga torna-se maioritário no novo partido e Gramsci segue temporariamente a sua linha do partido puro e do propagandismo sem política que acredita que a Itália caminha para a social-democracia a que é preciso o PCI opor-se vigorosamente.

Contudo, sombras bem mais ameaçadoras pairam sobre a política italiana. O fascismo triunfante e totalitário era um fenómeno suficientemente inédito para ter sido menorizado por grande parte do movimento comunista. E as posições bordiguistas do PCI são disso exemplo: no mesmo ano em que aquelas teses do PCI proclamam que a Itália se tornará inevitavelmente social-democrata, os Camisas Negras marcham sobre Roma. Gramsci será, aliás, dos poucos autores a prestar-lhes mais atenção do que a um epifenómeno passageiro. O autor dos Cadernos compreende a novidade de um movimento reacionário de massas apoiado na pequena burguesia e profundamente antioperário, capaz de fazer uma revolução-restauração.

Já exilado em Moscovo, o sardo decide disputar a direção do partido para posições mais próximas das de Lenine, nomeadamente a bolchevização do partido e a política de frente única. Apoiado pela Internacional e com Bordiga na prisão, vence. Recorde-se que Lenine desconfiava de Bordiga ao ponto de o incluir no rol dos criticados no livro Esquerdismo, doença infantil do comunismo.

Um breve regresso, dada a imunidade parlamentar, permite-lhe afrontar, por uma única ocasião, Mussolini cara a cara no parlamento: o poder do raciocínio, apesar da doença e da voz sumida, toda uma antirretórica enfrenta corajosamente a violência histriónica do ditador que lhe responde que os fascistas «fazem apenas o mesmo que eles na Rússia». Sob o pretexto da lei de ilegalização da maçonaria, discute-se a natureza de classe do regime, a sua violência e as organizações proletárias como o alvo central a abater. Gramsci conclui: «A partir desta tribuna queremos dizer ao proletariado e às massas camponesas italianas que as forças revolucionárias italianas não se deixarão destruir, que o vosso sonho turvo não se chegará a concretizar.»

Só que o sonho turvo-fascista vai-se materializando, somando repressão à repressão. E Gramsci é preso no exato momento em que se dirigia a uma reunião com um representante da Internacional devido à carta que, em nome do Partido, escrevera aos dirigentes do movimento comunista internacional. Nesta, a par da crítica da minoria “trotskista” e da defesa da NEP, defende que a minoria não seja «esmagada» revelando preocupações sobre os efeitos da disputa. Posteriormente, já na prisão, criticará também o centralismo burocrático e a estatolatria opondo o «autogoverno» ao «governo dos funcionários». Apesar de reconhecer que nos países «orientais» um momento de estatolatria pode ser necessário, dada a fraqueza da sociedade civil, defende que esta não deve ser deixada ao seu livre curso, deve ser criticada, não pode ser um fanatismo teórico. Talvez olhando a partir da atualidade este pacote de críticas pareça tímido, mas a ilusão da perspetiva não revela toda a dimensão da heresia.

Para além disto, enquanto Gramsci está na prisão, a Internacional Comunista guina. Inicia-se a política do «terceiro período» e a designação da social-democracia como «social-fascismo». Pelo contrário, Gramsci mantém o apoio à política anterior da frente única e defende a palavra de ordem da assembleia constituinte contra as posições oficiais que declaram a iminência de uma revolução socialista sem qualquer etapa intermédia democrática. Por defender posições semelhantes, Leonetti, Tresso e Ravazzoli são excluídos do partido. Claro que as posições de Gramsci serão mantidas em sigilo. Mas na prisão a divergência é conhecida e de uma primeira fase, em regime aberto, em que é organizador de círculos de discussão passa depois à condição de excluído do grupo dos comunistas. O apoio para a sua subsistência continua a chegar-lhe através da cunhada, mas Gramsci tem consciência de que está isolado.

Cadernos para pensar além da prisão

É nos Cadernos do Cárcere que vai fixar as observações e reflexões que são a «ginástica mental» que considera fundamental para resistir à estupidificação da prisão. Serve-se das pobres bibliotecas prisionais, das revistas autorizadas pelo regime e da avença ilimitada que o economista Piero Sraffa lhe abre numa livraria, assim os livros que quer consigam passar as portas da prisão… Da literatura popular aos tratados de economia ou filosofia, Gramsci revela-se omnívoro. Como é óbvio, compreender a hegemonia burguesa será aprender a conhecer os efeitos destes múltiplos níveis no senso comum.

Não é só o ritmo das leituras que dita a sequência dos Cadernos, Gramsci elabora um plano de estudos. Pretende dedicar-se à teoria da história (marxismo), ao desenvolvimento da burguesia italiana e dos seus grupos intelectuais, ao papel da Igreja Católica na sociedade italiana, à literatura popular, ao senso comum e ao conceito de folclore, ao fordismo, entre outros temas.

Ainda que, por razões óbvias, os temas não sejam diretamente políticos, Gramsci tem, ainda assim, que manobrar o que escreve, de forma escapar à censura. Soluções fáceis serão as substituições de nomes dos revolucionários pelos nomes próprios que os censores desconhecem (Ulianov para Lenine, Lev Bronstein para Trotsky). Marx e Engels serão denominados «os fundadores da filosofia da praxis». A expressão que Gramsci adota de Antonio Labriola é, porém, bem mais do que um jogo semântico. É todo um programa de quem vê o marxismo como uma teoria crítica historicista.

Para além do marxismo de Labriola, absorvido mais indiretamente através de Giovanni Gentile do que bebido na fonte original, os Cadernos do Cárcere são um caldo cultural de influências filosóficas. Desde as presenças mais claras de Nicolau Maquiavel, de Benedetto Croce (o «papa laico» da intelectualidade liberal italiana da época, crítico do marxismo e defensor de um idealismo hegeliano que considera a história como história ético-política, ou seja, como história do espírito e realização do progresso e liberdade), até referências mais inesperadas como John Dewey e o pragmatismo americano, ou a presença de Sorel (o teórico do sindicalismo revolucionário e o mito da greve geral então já proscrito pela esquerda e apropriado pelo fascismo) e, através dele, o filósofo Henri Bergson e o vitalismo antipositivista

Entendidos politicamente, os vários temas dos Cadernoscorrespondem a uma tentativa de renovação do marxismo, que passa pela necessidade responder à questão do porquê de não ter acontecido uma revolução socialista, apesar da crise, e pela tentativa de pensar concretamente a realidade nacional italiana.

Um marxismo fora da cartilha

Os Cadernos constituem um documento único por serem uma tentativa de sistematização de um marxismo antieconomicista que se opõe às correntes dominantes. Gramsci identifica este economicismo ao pensamento de Rosa Luxemburgo mas também à corrente “esquerdista” de Bordiga e mesmo aos reformistas.

A isto acresce um anticientificismo. Critica-se o positivismo escondido em muitas posições que se afirmam como materialismo dialético e que partem de uma noção ingénua de matéria. Gramsci vai mesmo ao ponto de criticar abertamente o conceito de objetividade científica e de dizer que apenas há intersubjetividade humana inscrita na história.

A conjugação destas duas características não poderia deixar de resultar num marxismo antideterminista. Gramsci não para de sublinhar o conceito de «leis tendenciais», que Marx utilizou em O Capital como alternativa ao determinismo fechado. Porém, o autor dos Cadernos não foge à imagem de um Marx determinista, procurando compreendê-lo historicamente. Esse determinismo cientificista de Marx, e sobretudo de Engels, seria um momento necessário na história da organização do proletariado: era resultado da necessidade de uma certeza mobilizadora. Contudo, o determinismo seu contemporâneo já não é certeza mobilizadora e tornou-se apenas justificação da passividade política: se a revolução é certa, não vale a pena esforçar-nos para ela. Há apenas que manter um partido coeso e puro à espera do grande dia.

O projeto radical do marxismo gramsciano é transmitido pela noção de «historicismo absoluto», o que corresponde a uma forma de relativismo: as conceções surgem na história, não há verdades a-históricas e também o marxismo é uma “verdade” historicamente situada e ultrapassável.

O nome deste projeto é filosofia da praxis, um conceito que sublinha a unidade entre ação e pensamento e o sujeito como ativo e criativo e não como objeto passivo da história. Pelo que a filosofia da praxis vai alterar quer a maneira habitual de definir filosofia quer a sua relação com o senso comum. Para Gramsci, «todo o ser humano é filósofo», no sentido em que tem noções sobre o que o mundo é/devia ser, (con)fundido-se conceção do mundo e norma de conduta. No senso comum, convivem acrítica e contraditoriamente várias conceções do mundo. Em vez de uma ingenuidade plana, o senso comum é complexo e pleno de contratempos, objeto de hegemonias contrastantes.

Desta forma, há uma tarefa filosófica de criticar as conceções confusas, corporativistas, egoístas, de forma a dar lugar a uma reforma intelectual-moral e criar um novo sujeito coletivo. Não se trata de, a partir de fora, educar o senso comum. Para o pensador sardo, o senso comum revela muitas vezes um «núcleo são» de consciência de classe através um conflito entre consciência teórica e consciência prática. É preciso torná-lo consciente e desenvolvê-lo.

É esse núcleo são que permite, em última análise, o processo de descoberta da hegemonia e a reforma intelectual-moral. É a partir dele e destes processos combinados que se produz uma catarse: a passagem do «momento egoístico-passional» para o «momento ético-político».

Da hegemonia à guerra de posições

Portanto, o marxismo de Gramsci procurará ir além do determinismo simples entre infraestrutura e superestrutura. Daí que não se canse de repetir que a determinação da infraestrutura acontece, como Marx escreveu, «em última instância». Convém assim recordar que a teoria gramsciana não anula o poder da crise económica em nome apenas das relações de forças na superestrutura: se a economia não determina mecanicamente, certamente que condiciona alternativas. E Gramsci procura não substituir o economicismo por um voluntarismo absoluto.

Nesta tentativa, vai forjar o conceito de bloco histórico para se referir ao conjunto desta relação, à sua complexidade e volatilidade, que depende das relações de forças entre diferentes classes aos vários níveis.

Irá também criar uma teoria amplificada do Estado (termo cunhado por Christine Buci-Glucksmann para explicar a posição de Gramsci). A equação gramsciana será Estado = sociedade civil + sociedade política; coerção + consentimento. O que significa que Gramsci altera a conceção marxista de Estado e de sociedade civil. Se, para Marx, a sociedade civil era parte da estrutura, para Gramsci será parte da superestrutura. Segundo o italiano, Marx elabora a sua teoria num tempo em que o poder é sinónimo de Estado como aparelho repressivo e não conhece a realidade de complexificação da sociedade civil que se torna num dos apoios da ordem estabelecida.

Hoje, é preciso desenvolver uma análise fina da sociedade civil, uma vez que o poder de classe funciona menos visivelmente de modo repressivo e mais claramente fabricando consenso. Há uma vasta estrutura material que fabrica estes consensos, os chamados aparelhos privados de hegemonia, que é relativamente autónoma. Incluem-se neste âmbito escolas, igrejas, partidos, sindicatos, organizações profissionais, meios de comunicação, etc.

Por hegemonia entende-se a direção política e intelectual de uma ou várias classes. A forma como Gramsci utiliza o conceito implica uma orientação para a conquista do consenso, ainda antes de uma tomada de poder, e implica uma política de alianças: o proletariado deve procurar ser hegemónico, constituindo um bloco alternativo das classes subalternas.

Neste quadro teórico, seria normal que se revalorizasse o papel dos intelectuais na disputa pelo consenso. Mas Gramsci não se contenta com isso. Também neste conceito operará um alargamento, de forma a definir o intelectual, não pela erudição pessoal, mas pela função social que o indivíduo ocupa. O intelectual é, sobretudo, o organizador. E há dois tipos de intelectuais: os orgânicos, direta e intimamente ligados a uma classe e que organizam a sua hegemonia, e os tradicionais, que foram intelectuais orgânicos de uma classe no passado e que mantêm depois um papel mais independente noutra situação social, ajustando-se no interior do bloco dominante. Devido ao afastamento da defesa imediata dos interesses, alguns intelectuais tradicionais representam-se como totalmente desligados do processo de produção e olham para a história das ideias como uma sucessão de indivíduos brilhantes.

Da definição de intelectual e da necessidade de criação de intelectuais orgânicos por parte do proletariado ressalta uma consequência política que tem implicações na forma de conceber o partido: em primeiro lugar, cada membro do partido deve ser tomado como intelectual, não pela sua erudição, mas pela sua função dirigente, organizadora, educativa; em segundo lugar, o próprio partido deve ser um «intelectual coletivo» no sentido de procurar conquistar a hegemonia, promover uma reforma intelectual-moral e criar uma vontade coletiva nacional-popular.

O partido será ainda apresentado nos Cadernos como «príncipe moderno». Em O Príncipe, Maquiavel apresentara a necessidade do indivíduo-príncipe como forma de corporizar a vontade coletiva, nesse caso de unidade nacional. Gramsci entende que presentemente a vontade coletiva já não se pode corporizar num indivíduo. Apenas o conjunto do partido pode captar a imaginação coletiva.

Outra consequência política será de nível estratégico. A partir da analogia com as alterações de estratégia militar ocorridas na I Guerra Mundial (a passagem da guerra de conquista rápida para uma lenta guerra de posições), Gramsci repensa a política revolucionária sua contemporânea. No caso da Revolução Russa, teria acontecido um exemplo de guerra de movimentos. Este é o modelo oriental. No Ocidente, devido às alterações ao nível do Estado/sociedade civil, é necessária uma alteração de estratégia. Porque o Estado não está só ancorado na sua estrutura repressiva, deve optar-se por uma lenta guerra de posições que conquiste as trincheiras dos aparelhos de hegemonia e dos consensos que fabricam.

Com isto, Gramsci crítica a tese do ataque frontal ao poder fascista. Aliás, apesar de a associar expressamente à teoria da revolução permanente, de Trotsky, esta crítica cola-se mais diretamente, na altura em que é formulada, às teorias maioritárias da Internacional.

A Itália, o sul e a revolução passiva

Para além de uma estratégia política geral, os Cadernos do Cárcere são também um documento de reflexão sobre a realidade política italiana, na sequência do que Gramsci já antes fizera. No momento em que é preso, estava a trabalhar o texto Alguns temas sobre a Questão Meridional, cujo tema desenvolve também nos Cadernos. Em vez das teorias revolucionárias genéricas ou da repetição de clichés sobre campesinato e operariado, Gramsci lançava-se na análise dos mecanismos subjacentes à aliança entre Igreja, agrários do sul e industriais do norte, o bloco histórico dominante.

Este bloco histórico conseguia mesmo, devido a fazer funcionar o sul como se fora um território colonial, um mercado cativo pelo protecionismo fornecedor de mão de obra barata, fazer concessões a uma elite operária que sentia assim beneficiar da situação e que alimentava desconfiança face aos meridionais. A sul, a hegemonia dos latifundiários sobre os camponeses acontecia por obra de uma classe intermédia de intelectuais. Será, portanto, necessário superar as divisões norte/sul que desagregam as classes subalternas, devendo-se trabalhar para um bloco social alternativo que, partindo da hegemonia do proletariado urbano, reconheça as exigências do campesinato do sul, como a reforma agrária, e, mais do que mera convergência de interesses, consiga também trabalhar afinidades culturais.

Para além disto, a hegemonia das classes dominantes e a debilidade das subalternas deve ser analisada à luz da questão vaticana. Isto devido ao seu papel ideológico, à vigilância a que a Igreja submeteu os intelectuais italianos e porque o seu «caráter cosmopolita» (estando ao serviço do Vaticano e não do país) seria uma das causas da unificação tardia de Itália. E o processo desta unificação seria uma causa longínqua da questão meridional.

Este processo, o Risorgimento, em meados do século XIX foi dirigido pela burguesia moderada, junto com os latifundiários, um bloco sustentado sobretudo pelo Estado do Piemonte. Por sua vez, a burguesia nacionalista progressista falhou porque não conseguiu mobilizar o campesinato e criar um «jacobinismo» italiano. A ausência de uma reforma agrária manteve um regime semifeudal que persistia.

A comparação com a Revolução Francesa vai permitir a Gramsci criar outro conceito cujo destino será feliz: a revolução passiva. Também denominada revolução-restauração oumodernização conservadora, esta é uma alteração conduzida por cima e que exclui as forças democráticas e populares. Aliás, as forças de vanguarda tendem a ser cooptadas num processo de «transformismo».

O conceito pode ser também aplicado ao fascismo ou à contrarreforma. País da contrarreforma por excelência, a Itália ficou reduzida a baixos níveis de literacia e à passividade política, devido à ausência de uma reforma como a luterana.

Razão e vontade militante

Com Gramsci, a política e a luta ideológica ganham uma nova dimensão no marxismo. O seu pensamento convida-nos a combinar a mobilização da vontade coletiva com a transformação da crença na disputa do senso comum. Para o fazer é preciso, contudo, somar aqui a micropolítica da vontade militante. Esta é explorada a propósito do lema que o italiano adotou de Romain Rolland e que se tornou famoso: pessimismo da razão, otimismo da vontade.

Não se trata de um apontamento perdido nos Cadernos ou de um desabafo de automotivação, nem sequer apenas do exercício necessário da autodisciplina contra a disciplina carcerária e as vicissitudes da vida revolucionária. Trata-se de uma forma de combate contra o mesmo determinismo que se enfrentou ao nível macro e da análise do trabalho interior necessário para potenciar a militância. Por isso, o nosso pensador insiste frequentemente na batalha contra fundar-se politicamente no otimismo sem bases. Este ou é cegueira fatalista ou rêverie que sonha facilidades, falhando ao mínimo choque da realidade. Para Gramsci, pelo contrário, há que «virar violentamente a atenção sobre o presente tal como é se se quer transformar».

Para que da violência com que a realidade nos confronta não resulte a paralisia, temos, portanto, de contar com o motor de uma vontade insistente. O que faz com que o militante seja atravessado permanentemente por uma bipolaridade afetiva, um pessimismo otimista, que é arma de resistência às adversidades, e possibilidade transformadora concreta. Na dialética militante entre o querer fazer e o poder fazer, a vontade terá como tarefa alargar de forma realista as fronteiras do possível. Fá-lo, claro, de forma imanente, já que nasce em condições determinadas e é determinada pelas forças da hegemonia dominante, mas tem também, de certa forma, um papel determinante, por reduzido que seja.

Para além do mais, Gramsci pensa que, não só o pessimismo da razão tempera a possibilidade de um otimismo que a vontade poderia exagerar, como o otimismo da vontade permite a ação política que seria negada se triunfasse um pessimismo absoluto: o próprio otimismo da vontade é um elemento importante para uma racionalidade militante: «apenas a paixão aguça a inteligência e contribui para tornar a intuição mais clara».

É o que indica claramente quando refere o problema da previsão. Para Gramsci, a previsão política é performativa. A razão previsora não é uma máquina neutral, fria, que deva manter distância higiénica da vontade quente. Segundo a filosofia dapraxis, a previsão é já vontade (porque ao mesmo tempo revela uma vontade individual e é «maneira prática de criar uma vontade coletiva»). Por isso, reforça: «Só o que quer com força identifica os elementos necessários à realização da sua vontade». Se já em 1917 escrevia um artigo sobre o seu «ódio aos indiferentes», onde acusava os que recusam o engajamento da vontade coletiva de participar na força passiva que permite as maiores atrocidades, agora trata-se de fazer a crítica da suposta superioridade cognitiva da neutralidade em política.

Niilismo, apatia, indiferença, neutralidade, cegueira ideológica, a ilusão agridoce do sonhar acordado não são fatalidades psicológicas de que padecemos. Temos possibilidade de intervir sobre nós próprios, a possibilidade de um cuidado de si revolucionário, de uma subjetivação de combate. Escreve Gramsci: «Criamos a nossa própria personalidade: 1) dando uma orientação determinada e concreta (“racional”) à sua própria impulsão vital ou à sua vontade; 2) identificando os meios que tornam esta vontade concreta, determinada e não arbitrária; 3) contribuindo para modificar o conjunto das condições concretas que realizam esta vontade na medida dos limites da sua potência e na forma mais frutuosa (…). Transformar o mundo exterior, as relações gerais, significa tornar-se mais forte, desenvolver-se». Ou seja, a ação racional realista (o pessimismo da razão) sobre a impulsão vital/vontade (o otimismo da vontade) é criativa e transforma-nos, essa transformação e a transformação das condições de vida juntam-se numa dialética materialista a que talvez seja preciso voltar a prestar atenção em tempos de psicologias positivas empreendedoras, de misticismos de autoajuda, de desistências de quem nos diz que precisamos “primeiro” de nos transformar a nós mesmos para nunca chegar o tempo de procurar transformar o mundo lá fora.

Não se trata de uma retórica do homem novo, de uma lição de vida moralista ou de pregar um caminho para o heroísmo revolucionário. Trata-se de intensificar-se para potenciar transformações, de ter a capacidade de persistir ao longo do tempo na lucidez do pessimismo otimista, tal é a arte instável e urgente do inconformista. Assim viveu coerentemente Antonio Gramsci.

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