Dos rostos da Cracolândia, a Veja só enxerga um: o branco

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Por Ivan Longo para SpressoSP – 

 

Matéria de capa da Veja São Paulo deste sábado faz um perfil de Loemy: dependente química branca, loira, de olhos verdes e ex-modelo que vive na Cracolândia. O que ela tem de diferente das centenas de pessoas que ali vivem? Ela não é negra e, portanto, “vítima”

loemy

“É difícil distinguir alguém no bloco de maltrapilhos que andam a esmo na região, feito zumbis […] Uma loira magra, de 1,79 metro de altura e olhos verdes, no entanto, não consegue passar despercebida”. Assim, que a matéria de capa de Veja São Paulo do último sábado introduz a sua personagem. Ignorando as outras centenas de pessoas que vivem em situação de miséria e dependência química na região da Cracolândia, centro de São Paulo, a revista traça um perfil e conta a história da jovem Loemy, que deixou o Mato Grosso há alguns anos e veio para a capital paulista para tentar engatar na carreira de modelo.

Capa da revista Veja São Paulo e Loemy, em foto de ensaio, antes de começar a viver na Cracolândia. (Foto: reprodução/divulgação)

Hoje, Loemy vive na Cracolândia, da mesma maneira que os outros dependentes químicos: pedindo esmolas, por vezes assaltando, com poucos ou nenhum cuidado médico e fazendo uso abusivo de drogas. Ela também vaga pelo chamado “fluxo” dopada de crack e fica alucinada, aos maltrapilhos, como os outros usuários – estes, em sua maioria negros, a Veja prefere chamar de “zumbis”. O que a ex-modelo tem, portanto, de diferente em relação à toda aquela população de rua e dependente de crack? A própria publicação responde: ela é loira, magra, de 1,79 metro de altura, olhos verdes e ex-modelo.

A militante e historiadora Luzia Souza. (Foto: reprodução/Arquivo Pessoal)

“Para a Veja, ela não pertence àquele cenário e precisam resgatá-la de lá. Só ela. Salvando-a, evitam que todos os outros à sua imagem e semelhança caiam no fosso. Como se fosse uma espécie de aviso psicológico aos jovens e às crianças brancas. O restante não importa, são pretos e pardos”, afirmou a professora de história e militante do movimento negro Luzia Souza, que recebeu, recentemente, o título de uma das 25 negras mais influentes da internet.

Esse tipo de recorte feito pela reportagem acaba por reforçar a invisibilidade a qual negros e pobres, principalmente dependentes químicos, são submetidos pela sociedade e pela imprensa. A matéria da Veja mostra, indiretamente, que só aquele perfil merece atenção, em detrimento das tantas outras pessoas que passam pelos mesmos problemas. A grande diferença consiste no fato de que a loira de olhos verdes e com um futuro promissor representa um exemplo perfeito, para a classe média e branca, do que não pode e não deve acontecer. A ex-modelo, neste sentido, torna-se uma grande vítima, que não deveria estar naquele lugar, enquanto todos os outros seriam vilões.

O psiquiatra Dartiu Xavier. (Foto: reprodução/Arquivo Pessoal)

Para o psiquiatra Dartiu Xavier, diretor do Proad (Programa de Orientação e Assistência a Dependentes), da Universidade Federal de São Paulo, e uma das maiores referências do assunto, a matéria da Veja ajuda a manter o preconceito criado por essa mesma imprensa que exclui as minorias e contribui para a falta de entendimento de um problema tão delicado que é o crack.

“A Veja se transformou em imprensa marrom, não faz jornalismo. Esse tipo de matéria só reforça o estereótipo do que as pessoas entendem por Cracolândia, que está completamente  fora da realidade”, afirmou Xavier.

“Desde que o crack passou a dominar o cenário das grandes cidades, sobretudo de uma cidade como São Paulo, essas pessoas causam ódio, nojo e incômodo. Assim se tornam invisíveis. Não seria nada bonito, nem saudável, nem venderia revistas, colocar negros na capa, isso jamais emocionaria as pessoas, assim como também ninguém se emociona quando um negro não passa despercebido ao ser morto, ou espancado, confundido com bandido. É normal”, reforçou Luzia Souza.

Tabelando com Luzia, o psiquiatra, que há mais de 15 anos frequenta a Cracolândia, acredita também que a reportagem passa o entendimento errado em relação à droga, de que seria ela que levava as pessoas à condição de rua e miséria quando, na verdade, o que acontece, é justamente o contrário.

As pessoas acabam partindo do princípio de que a droga colocou aqueles usuários em situação de miséria, quando na verdade foi a miséria que os levou à droga. Essa vitimização da pessoa pela sua aparência e status social é extremamente perigosa. Quando é branco e rico, é vítima. Quando é preto e pobre, culpado”, analisou.

Assim como Loemy, centenas de outros usuários de crack da Cracolândia tinham uma condição financeira e social completamente diferente e, em um determinado momento da vida, perderam tudo e encontraram na droga um caminho para amenizar a dor. Será que essas tantas outras pessoas da região, majoritariamente negras, também não tem histórias de vida para contar? Ou foram, a vida inteira, viciados em droga? Por qual motivo, então, essas pessoas são completamente ignoradas pela mídia tradicional enquanto a figura de Loemy desperta interesse ao ponto de ser capa de uma das revistas de maior circulação no país? Luzia de Souza responde:

“Não tem importância relevante o crack, nem o extermínio dos jovens, nem a mendicância, nem a pobreza de crianças e jovens pretas e pardas. Está no imaginário popular, fomentado pelas mídias como Veja, que nós todos temos tendência ao crime, ao abismo social, à pobreza e que nos adaptamos com maestria nesses cenários, não os brancos de olhos azuis. Nós só causamos revolta e eles causam sentimento de piedade”, disse.

Capa da Veja de 2009, que associava usuários de drogas à criminosos. (Foto: reprodução)

Vale lembrar também que a Veja é a mesma revista que, em 2009, usou sua capa para reforçar seu apoio à criminalização dos usuários de droga. Com a chamada “Quem cheira, mata”, a publicação tentou associar o consumidor ao traficante e, indiretamente, à criminalidade. Na reportagem de capa deste sábado, no entanto, a usuária, Loemy, é tratada de maneira humanizada e em nenhum momento é ligada ao crime. Será que, para a Veja, a ex-modelo compra drogas em um mercado paralelo ao dos traficantes?

Durante toda a reportagem, a jovem loira que se “afundou” no mundo do crack é tratada como uma usuária em detrimento de todas as outras pessoas que ali vivem, que são simples “viciados” ou ainda pior, limitam-se a números. No final da matéria há, inclusive, um balanço que aponta a “Cracolândia em números”. Afinal, para a publicação, história humana ali só há uma: a da que “não pertence” àquele lugar.

Loemy, agora, parece ter um futuro um pouco mais promissor. Após a repercussão da reportagem da revista da editora Abril, a dependente química foi chamada para gravar um programa com o apresentador Rodrigo Faro, na TV Record. Ela agora está em um hotel, sob cuidados médicos, com tudo pago pelo programa. E a emissora promete ainda custear um tratamento em uma clínica de reabilitação para “resgatar” a usuária.

Em fevereiro deste ano, a reportagem da Fórum esteve na Cracolândia quando flagrou um usuário parecido com Loemy, só que negro, pedindo às equipes de reportagem de veículos da imprensa tradicional que o dessem um violão, pois seria a “única coisa” que o faz feliz. O homem não só não ganhou um violão como sequer estampou qualquer capa de algum desses veículos.

Loemy precisa de ajuda, diz a chamada da capa da Veja. A Cracolândia também.

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