Por João Feres Jr, Jornal GGN –
A tentação de escrever um artigo de final de ano, com um sumário dos principais fatos transcorridos, é grande. Porém, o desafio é imenso, uma vez que esse ano de 2016 parece ter produzido mais fatos relevantes do que uma década inteira de anos “normais”.
Este ano foi o terror dos analistas de plantão. O perigo de uma análise ficar ultrapassada antes mesmo de ser publicada foi real e intenso. A sucessão de fatos surpreendentes, alguns estarrecedores, parece ter arrefecido somente com a chegada do final de ano. E eu começo esse texto exatamente por essa constatação. Pois esse arrefecimento já significa algo. Se a sociedade estivesse em ebulição, o final do ano provavelmente seria engolfado em acontecimentos – para além dos desastres e catástrofes que acontecem todo ano nessa época. Mas não, o que está em pandarecos, de pernas para o ar, são as instituições da nossa democracia, mais especificamente, os poderes da república.
No começo deste ano fatídico, participei de programa de rádio da BBC aqui no Rio para o qual também foi convidado um cientista político pernambucano que conheço há décadas. Ele garantia em alto e bom som que o impeachment era produto da saúde das instituições democráticas brasileiras, que não havia nada de errado com elas. Eu fiz questão de discordar, em inglês, como havia já feito várias vezes em português para outros interlocutores. Para mim, o cancelamento das eleições via manu legislativa, da maneira casuística como estava sendo feito, iria acarretar em trauma do qual as instituições não iriam se recuperar tão cedo, colocando inclusive em risco a ordem constitucional criada em 1988. Na época, havia mais de um cientista político pernambucano falando tais asneiras. Hoje, contudo, mergulharam em silêncio tumular.
Eu não gosto de futurologia. Acho que a publicização de opiniões sobre o futuro flerta com o fracasso e também a irresponsabilidade. A minha resposta futurológica foi reativa, e, infelizmente, eu estava certo. Para a sorte dos futurólogos de plantão, as pessoas têm memória curta, e se esquecem das previsões equivocadas feitas mesmo em passado recente. Para azar da maioria dos brasileiros, deceparam o executivo e o caos se instalou no sistema político brasileiro, com consequências dramáticas para o estado de direito, a justiça social e as políticas públicas em geral.
Gostaria de chamar atenção para um aspecto que para mim é central em todo esse drama — é na verdade uma lição que todos já deveriam ter aprendido: toda vez que o poder do voto popular é cassado ou manietado, como o foi agora, quem sofre é o próprio povo, e particularmente os mais pobres. Foi assim na ditadura militar, aboliram as eleições e produziram ao longo de vinte anos um país desenvolvido que veio a ser também o mais desigual do mundo.
Com o retorno da democracia eleitoral, a ampliação de direitos e de políticas públicas sociais produziram inclusão e mitigação das desigualdades, com destaque para a performance do presidente Lula. Pois bastou o golpe se consumar, e Dilma ser removida do cargo, para o novo presidente voltar toda a máquina política sob seu controle à tarefa de desmonte dos mesmos direitos e políticas públicas que haviam produzido a inclusão. O destaque aqui vai para a PEC 55, que promete 20 anos de sofrimento econômico e aumento das desigualdades.
Já que o ritual manda que, em textos desse tipo, de final de ano, sejamos minimamente positivos, aqui vai: na lógica eleitoral básica reside nossa esperança para o futuro. Ora, é fato que as instituições se encontram em forte desarranjo e conflito: legislativo decapita o executivo, STF decapita o legislativo e tenta repetir a façanha com um voto monocrático, MP ameaça o legislativo federal em cadeia nacional de televisão, juízes e procuradores agem sistematicamente em violação do Estado de direito sem sofrer qualquer sanção, o MP está sendo consumido também por conflitos internos entre a PGR e os MPs federais nos estados, a Polícia Federal, o MP e o judiciário vazam repetidamente informações confidenciais, etc.
Mas enquanto houver democracia eleitoral, enquanto o sistema representativo não for manietado por um golpe dentro do golpe, que reduza o alcance do voto popular, há esperança que os poderes políticos voltem a se impor e saiamos dessa espiral viciosa.
Para que isso aconteça, contudo, é preciso que os poderes eleitos, os únicos aos quais de fato foi transferida a soberania popular, coloquem rédeas nos poderes não eleitos, judiciário e MP, e voltem a controlar as burocracias de Estado, como a Polícia Federal.
Mas não basta concluir que isso precisa ser feito. Tal análise institucional não nos mostra como isso pode ser feito. A meu ver, um ponto fundamental é romper a captura da política pelo discurso da corrupção. Enquanto os brasileiros continuarem a pensar a questão da corrupção como prioridade da política ficaremos presos a esse jogo simbólico e institucional que investe de legitimidade as burocracias de Estado do sistema de justiça e rouba legitimidade dos poderes políticos propriamente ditos.
A submissão da política ao problema corrupção foi a maior conquista da grande mídia na última década. De maneira intensa e continuada as grandes empresas de mídia investiram nesse discurso como principal estratégia para destruir o projeto da esquerda no poder – que na prática era um projeto de centro-esquerda. Conseguiram não somente seduzir a classe média, que foi às ruas de camisa da CBF pedir o fim do PT, mas também muitos indivíduos das classes subalternas, que compram a narrativa de que a classe política é uma elite de sanguessugas responsável pela opressão dos pobres.
Para a classe média, os políticos são corruptos que lhes infligem altos impostos e oferecem serviços públicos sem qualidade suficiente para serem usados. Na verdade, muitos sabem claramente que o projeto político do golpe, que é o do PSDB, é altamente lesivo para os mais pobres, e, assim, nutrem esperanças que o aumento da exploração da mão de obra barata lhes seja benéfica, nem que seja somente para pagar menos a sua empregada doméstica. Em seus variados graus de mesquinhez, tal classe média não consegue ver que não há saída coletiva para nosso país que não contemple a inclusão da massa de pobres e, portanto, a diminuição das desigualdades. Só ela pode produzir melhores serviços, maior riqueza e diminuição brutal da violência urbana – item muito sensível para essa classe.
Os indivíduos mais pobres que compram o discurso da corrupção me parecem ainda mais equivocados, pois da atual situação não abiscoitam sequer vantagens mesquinhas de curto prazo. O combate à corrupção no Brasil de hoje tem produzido de fato a perseguição política do PT, a violação do Estado de direito para além do que já era feito, o cancelamento do voto popular e a instalação de um governo com políticas extremamente nocivas a seus interesses. Se o coxinha de classe média escolhe o racionalismo imediatista e sórdido ao invés da solução racional de longo prazo, o coxinha pobre sequer tem motivos racionais para sua escolha. Mas ambos se equiparam por chafurdar na própria ignorância – que é produzida cotidianamente pelos meios de comunicação. Afinal de contas, como é que adquiriram todas as informações que os possibilitam reproduzir a narrativa da política como corrupção? Da vivência pessoal é que não foi.
Dado este estado de coisas, é preciso perguntar: como começamos a desmanchar esse imbróglio? Se a narrativa está nas mãos da grande mídia e esta, por sua vez, está há décadas nas mãos de grandes famílias de tradição conservadora e demófoba, como romper com ela? Se as instituições estão já em estado de profundo desarranjo, como reorganizá-las? A resposta não é simples, mas arrisco dizer que ela passa necessariamente pela manutenção da democracia eleitoral nos moldes como a temos hoje, pelo menos, e pelo esforço contínuo de desmontar, via política institucional e sociedade civil, o oligopólio midiático do qual somos quase todos vítimas.
De uma coisa podemos estar certos para o futuro: ninguém vai fazer isso por nós. A vida é só uma. O país do qual somos cidadãos é só um. Então, mãos à obra!