A amiga do Bem Blogado, Lúcia Capanema, professora, pesquisadora no Politécnico de Milão, esteve no Salão do Livro de Turim e fez reportagem sobre o evento. Vamos apresentá-la em quatro edições.
Esta é a segunda, que reportará o mundo literário nos chamando a um olhar mais humano, mais atento e mais igualitário, com cobertura sobre depoimentos de profissionais da literatura que sentiram na pele muito do que trazem em seus livros.
Por Lúcia Capanema, professora, pesquisadora no Politécnico de Milão
Younis Tawfik é jornalista, poeta, romancista e professor. Foi premiado pela primeira vez aos 18 anos e já aos 19 deixava seu país de origem, Iraque, para estudar na Itália, onde vive e representa sua cultura em várias instâncias. Tawfik conta que seus romances nascem de personagens reais, pois é um bom ouvinte. Assim nasceu seu maior sucesso europeu, “A Estrangeira”. Desta forma também teceu seu novo livro, “La sponde oltre l’inferno” (“A costa além do inferno”), em que expõe as entranhas do mundo globalizado tal como se apresentam aos imigrantes que chegam à Itália pelo Mediterrâneo.
A partir do relato de dois jovens que conheceu como trabalhadores de um restaurante em Gênova, onde leciona, um da Guiné Bissau e outro do Afeganistão, o autor retomou o contato com o mundo dos imigrantes recentes: ambos seguiam se considerando vencedores individuais, no sentido de terem alcançado um teto e o que comer. Haviam deixado suas famílias para trás, na miséria, para se aventurar nos barcos que chegam a Lampedusa. Não tinham sonhos para além de cozinhar hambúrgueres (sic).
Tawfik mergulha nesse universo, entre pais que perderam seus filhos nas águas profundas e lembranças daqueles que se foram pela fome durante suas travessias em terra ou em mar. Histórias aterradoras (literalmente de afundar na terra, sem saída).
Vidas pontuadas pela violência sistêmica
Mas é ao contar trechos de sua própria vida que ele traça a costura entre todos os casos: “intervenções externas como as dos EUA no Iraque e no Afeganistão destruíram profundamente estes países, mas não só do ponto de vista físico; principalmente do ponto de vista social e psicológico”.
Depois da ocupação e da destituição de Saddam Hussein – segundo Tawfik “um cara que faria qualquer coisa para estar bem com todos, desde que no poder” -, restou ao Iraque a dominação por facções extremas, que, diz ele, “estão destruindo o pouco que sobrou”. E esse é o futuro do Afeganistão, na avaliação tão provável de Younis Tawfik.
Ele se lembra que quando jovem, já no governo Hussein, brincava e cantarolava pelas ruas com amigos – as pessoas tinham paz e alegrias em seu país. Quando voltou à sua cidade, Mosul (antiga Nínive), anos mais tarde – precisamente em 2015, não viu mais luz nos olhos dos conterrâneos; não havia mais sorrisos, brincadeiras, culturas para dividir. Só horror, fome e medo.
Tinha ido visitar a mãe, que seria morta dois anos depois no ataque a Mosul por mísseis do Estado Islâmico. Seu irmão, professor como ele e advogado, foi assassinado na porta de casa com dois tiros de fuzil na testa: “vieram três carros; o primeiro fechou a rua em uma esquina, o segundo fechou a esquina oposta e o terceiro parou em frente à casa. Um homem mais velho ordenou a um adolescente que atirasse.
Anos depois, as investigações revelaram que o homem era um líder do Estado Islâmico e meu irmão foi assassinado somente porque suas ideias não eram interessantes para a facção.”
Camaronesa Djaili Amadou Amal: “a voz dos que não tem voz”
Djaimli Amadou Amal, embaixadora da Boa Vontade da Unicef é mundialmente considerada uma defensora dos direitos humanos, especialmente das crianças, jovens e mulheres – “a voz dos que não têm voz”, com a definiu um jornal de seu país, Camarões.
Ao apresentar seu premiadíssimo romance ‘As Impacientes’, também baseado em fatos reais, ela pontua que ele deve ser contextualizado na sua cultura, num país hoje ocidentalizado, mas que vive ainda valores arcaicos.
Ali, a diferenciação radical entre homens e mulheres “começa muito cedo, é um estilo de vida”: os meninos são liberados para viver com os pais e frequentar o mundo masculino, que inclui os espaços públicos, desde os 10 anos, enquanto as meninas permanecem em casa, vivendo entre as mulheres e sem educação formal.
Criadas para servir à família e à comunidade – o que quer que isso signifique – são dadas em matrimônio precocemente a parentes ou estranhos, a homens muito mais velhos, sob o regime da poligamia e de acordo com os arranjos de interesse. No ato do parto, não podem chorar ou gritar, pois isso revelaria sua fragilidade. Quando se tornam mães, mutilam suas filhas em suas genitais para “protegê-las”, para que tenham mais autocontrole.
E se preparam para perder os filhos ainda garotos enquanto esperam a chegada da mais jovem esposa que virá substituí-las como ‘merecedoras dos favores’ de seus algozes. Mas Amal é assunto para o próximo relato, sobre pautas feministas.
Um mundo desigual para meninas e meninos, homens e mulheres, vítimas, ora de um patriarcado arcaico e ignorante, ora de um patriarcado capitalista que hoje culmina no subjugo desumanizante das periferias pelas potências mundiais, num movimento que David Harvey batizou de “acumulação por despossessão”.
Emanuela Grigliè e Guido Romeo: tecnologia excludente
Esse mesmo capitalismo, altamente tecnológico e excludente, é denunciado por Emanuela Grigliè e Guido Romeo como forma de aprofundar as diferenças. Ele, jornalista da área de informática & negócios; ela, jornalista de cultura; juntos embarcaram nesta parceria quando começaram a escavar os surpreendentes dados acerca da indústria digital.
De acordo com a pesquisa que culminou no volume “Per soli uomini” (Só para homens), os dados são historicamente produzidos por homens, sobre homens e para homens. É assim “desde que a primeira célula estudada no mundo foi a de um homem jovem, passando pelos estudos de arquitetura e urbanismo, como por exemplo, no ‘homem ideal’ de Le Corbusier – embasado em um policial inglês, até os estudos sobre a Covid-19 que só consideraram 4% de mulheres, apesar das evidências de efeitos colaterais correlacionados aos hormônios femininos.”
Os estudos de ótica e acústica também são embasados em corpos masculinos, subjugando as mulheres a óculos e aparatos visuais, como câmeras e microscópios, baseados no corpo masculino, e “criando um preconceito até contra a voz feminina nos meios de comunicação, como pudemos ver quando da candidatura Hillary Clinton.
Mulheres líderes mundiais, como a Rainha Elizabeth e Margareth Thatcher tiveram que fazer treinamento vocal para que suas vozes se adaptassem ao aparato acústico”, e não o contrário. “Os sistemas e aparelhos digitais, bem como dispositivos de segurança, são também masculinos (e machistas) por desenho”, como demonstra o livro e frisa Romeo.
Para Grigliè, “trazer a perspectiva de gênero para o mundo tecnológico beneficiará a todos ao desenhar aparelhos e sistemas para diferentes tipos de corpos e causar menos doenças adaptativas, assim como um desenho e uma infra-estrutura urbanos de gênero beneficiarão a todos, uma vez que atendendo melhor a famílias, aumentarão a satisfação social em geral”.
Romeo diz que ambos compreendem os limites da indústria produtiva e não desejam fazer propaganda de marcas, mas vale a pena mencionar a experiência bem sucedida da Volvo, que desenvolveu um “veículo igualitário para todos”, mais seguro para mulheres e idosos.
Por fim, pontificam: “Precisamos conciliar a vida privada com a vida laborativa das mulheres (por exemplo, nos transportes públicos); este é um problema mundial que está melhorando. A questão é: quanto está melhorando?”
É o mundo literário nos chamando a um olhar mais humano, mais atento e mais igualitário.
Foto de Lúcia Capanema da escritora camaronesa Djaili Amadou Amal