Tinhorão e a Bossa Nova: a matéria que o Estadão não publicou

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Por Carlos Motta, publicado em Jornal GGN – 

Em fevereiro de 2008 a jornalista Elizabeth Lorenzotti entregou ao Caderno 2, do Estadão, o texto que havia sido encomendado a ela, uma matéria que falava sobre a Bossa Nova, que então completava 50 anos, e sobre o seu crítico mais contundente, o pesquisador José Ramos Tinhorão, que comemorava seu 80º aniversário. 

A matéria não foi publicada, tampouco Elizabeth recebeu um centavo pelo seu trabalho.  “Me lembro de ter ido lá e perguntado se iriam ou não publicar, mas em qualquer caso, eu estava cobrando o ‘frila’, porque aceitaram a pauta, combinaram e etc, e o trabalho foi feito”, conta a jornalista. “Me deixaram esperando de pé. Eu já tinha trabalhado naquele jornal duas vezes. Não me lembro exatamente, mas parece que o delicado substituto do editor respondeu algo como não iam publicar mesmo e nem pagar (e não deu explicação sobre o veto). Fui até o então diretor de redação, que me conhecia já do lançamento do livro sobre o Suplemento Literário, do mesmo jornal, em 2007. Muito gentil, me pediu para sentar e disse que resolveria tudo. Neste fevereiro completam-se dez anos e ainda não recebi”, completa.




Uma matéria de Elizabeth Lorenzotti sobre José Ramos Tinhorão não é uma matéria qualquer. Afinal, ela é uma das pessoas que mais conhecem a obra e a história de vida desse importante personagem da cultura brasileira – é dela o livro “Tinhorão, o Legendário”, publicado pela Imprensa Oficial em 2010, esgotado, muito procurado, mas encontrado apenas em sebos. Elizabeth é ainda autora do livro de poesias “As dez Mil Coisas” (Biblos/Amazon, 2011) e do e-book “Jornalismo Século XXI – o modelo @Midianinja” (E-Galaxia, 2014).

Uma década depois da recusa do Caderno 2, e quando Tinhorão completou lúcidos e festejados 90 anos de vida – e a Bossa Nova, 60 anos de canções -, a matéria de Elizabeth finalmente é publicada – ela está na sequência deste texto. A sua leitura, além de servir como introdução à fascinante aventura de vida de um dos mais valorosos guerreiros da cultura nacional, ajuda a compreender como é necessário que o Brasil debata seriamente todos os temas que envolvem o seu cotidiano – como Tinhorão vem fazendo, obsessivamente, durante décadas, na área da cultura e arte populares.

Tinhorão aos 80 anos: “Chega de saudade”

A Bossa Nova completa 50 anos, com festas marcadas para março, nas areias de Copacabana e Ipanema, onde nasceu. E neste fevereiro, seu crítico mais polêmico e devastador, José Ramos Tinhorão, acaba de completar 80. Sem mudar de idéia, radical como sempre, proclama aos bossanovistas, rindo muito: “Chega de saudade! Cinquenta anos de admiração pela música norte-americana! Para com isso rapaziada!”

Para quem não conhece Tinhorão, vituperado à esquerda e à direita durante tantos anos, ou já se esqueceu das histórias que o cercam, é bom lembrar alguns fatos. A famosa apresentação da Bossa Nova no Carnegie Hall foi em 21 de novembro de 1962, mas já em 23 de março daquele ano, na série de matérias sobre a história da música popular brasileira, no Caderno B do “Jornal do Brasil”, Tinhorão demolia: “Samba Bossa Nova nasceu como automóvel JK: apenas montado no Brasil.”

“Foi aí que começou o ódio ao Tinhorão”, ele conta.

Artigos como este foram incluídos, em1962, no livro “Música Popular um Tema em Debate”, já em quinta edição (Editora 34). “Esses artigos, escritos no calor da hora, são lidos até hoje como história. É o meu livro mais reeditado”, orgulha-se. Também faz parte do livro outro artigo, igualmente devastador, publicado na histórica revista “Senhor”, edição abril/maio de 1963 sob o título “Os Pais da Bossa Nova”, com a seguinte abertura:

 “Filha de aventuras secretas de apartamento com a música norte-americana – que é, inegavelmente, sua mãe – a bossa nova, no que se refere à paternidade, vive até hoje o mesmo drama de tantas crianças de Copacabana, o bairro em que nasceu: não sabe quem é o pai.”

O artigo provocou grande reação entre os jovens adeptos da bossa. Então, lembra Tinhorão, ”impossibilitados de responder ao principal ponto, um primeiro levantamento das raízes do processo de alienação cultural imposta à música popular, partiram para o lado pessoal”.

Em 1966, em um show produzido por Mieli e Bôscoli, Taiguara atirava longe o livro e dizia: “O livro do Tinhorão dura apenas cinco minutos, a bossa nova já vai fazer dez anos…” Mas tanto um como a outra já alcançaram a posteridade. O jornalista teve muitas de suas matérias escritas para jornais e revistas perenizadas em 22 livros publicados no Brasil, além de outros cinco editados em Lisboa, e hoje é um respeitado historiador da cultura popular urbana.

Tinhorão, conhecida planta ornamental tóxica, não é sobrenome, mas apelido dado por Everardo Gillon, um secretário de redação brincalhão do histórico “Diário Carioca”, onde o jornalista se profissionalizou a partir de 1953. O batismo definitivo, em letra impressa, veio do chefe de redação, Pompeu de Souza Brasil, ao assinar a primeira matéria do foca. Esse santista radicado desde a infância no Rio de Janeiro, formado em Direito e em Jornalismo, foi contratado pelo jornal como copydesk (redator) dentro da primeira grande transformação da imprensa brasileira: a introdução do “lead”, a abolição do nariz de cera, a padronização dos textos, a implantação do primeiro manual de redação.

Lá ficou até 1958, quando foi convidado para o “Jornal do Brasil”, onde trabalhou até 1963 e depois colaborou como crítico entre 1974 e 1982. Estas as críticas que despertaram iras. Uma delas, até, foi imortalizada em letra de música que, Tinhorão presume, tenha se originado do artigo intitulado “O melhor de João Bosco é Aldir Blanc”.

Blanc, com Maurício Tapajós, em “Querelas do Brasil” fala das coisas do Brasil com S que o Brazil com Z desconhece, inclusive as venenosas, mas genuinamente nacionais, entre elas:

“Tinhorão, urutu, sucuri”.

E no verso seguinte cita as aves canoras:

“O Jobim, sabiá, bem-te-vi”.

Tom Jobim, aliás, que, conta a lenda, certa época comprou um vaso de tinhorão, colocado na porta de entrada de sua casa, onde diariamente fazia xixi.

Tinhorão passou pelo “Correio da Manhã”, “O Jornal”, “Última Hora”, TV Globo, revistas “Veja” e “Nova”. No fim da década de 70 promoveu uma reviravolta em sua vida: resolveu largar tudo, tornar-se autônomo e viver para escrever seus livros. Foi morar em uma quitinete na Rua Maria Antonia, centro de São Paulo, de 30 metros quadrados, literalmente entupida com seu preciosíssimo acervo, construído ao longo de pelo menos 30 anos.

“Tem aquele folclore de que eu dormia num colchonete na sala. E era verdade. Foi assim que curei minhas dores na coluna” lembra, bem humorado.

Já sem dispor de qualquer centímetro quadrado livre na quitinete, Tinhorão um dia pensou em vender o acervo. Mas no país chamado Brasil, se doar já é difícil, imaginem vender: ninguém queria. Pensou até em colocar à venda, em retalhos, na Avenida São João, mas não teve coragem. Até que, finalmente, obteve êxito com o Instituto Moreira Salles, que hoje abriga o fantástico acervo: 6,5 mil discos 76 e 78 r.p.m. gravados e lançados entre 1902 e 1964; 6 mil discos 33 r.p.m. entre 1960 e 1990, e mais livros, partituras, folhetos, revistas, enfim, documentos raros sobre a música e a cultura popular urbana no Brasil. Muita coisa, ele garante, nem a Biblioteca Nacional tem.

Tinhorão sempre peregrinou pelos sebos. É em um deles, aliás, o Metido a Sebo, na Vila Buarque, que ele passa três vezes por semana e onde costuma encontrar os amigos e dar entrevistas: uma extensão de sua casa.

Ele prossegue: “Os professores querem só o que está dentro da biblioteca da Universidade. Eu ando em sebos há 40 anos, tenho de descobrir muitas coisas. Por isso hoje, muita gente mama na bibliografia do Tinhorão”, reclama.

Embora mestrado em História Social pela USP (“A Imprensa Carnavalesca no Brasil: um Panorama da Linguagem Cômica”, Hidra, 2000), o modo de a academia olhar para Tinhorão não mudou: ele é sempre chamado de “jornalista”. Mas a verdade é que se trata de um historiador da cultura popular urbana, que começou sua pesquisa quando a academia não se preocupava com essas questões.

Ele escreve em média um livro a cada dois anos – trabalha com prazer, mesmo aos domingos e feriados – e nos seus 22 publicados no Brasil até agora, contabiliza 2.845 citações de livros, artigos em periódicos e documentos (impressos e manuscritos). “Está tudo documentado. Para me contestar é preciso contar outra história e isso nunca aconteceu.”

Sempre foi fiel ao seu método, o materialismo dialético. Entende que a História é a crônica dos homens no mundo, ou seja, de suas relações com a natureza e com os outros homens. Das relações de produção derivam-se as relações sociais entre os homens que resultarão no sistema capitalista, na divisão em classes. Cada classe tem suas idéias básicas admitidas como boas, ou sua ideologia.

Transportando-se tal princípio para a música, teatro, literatura, etc, esta produção também projetará uma ideologia. Numa sociedade de classes, o que se chama cultura é uma cultura de classes. Que ninguém se engane. Encha-se de esperança ou dispa-se totalmente dela ao adentrar sua obra: esta é a visão que orienta Tinhorão em sua produção intelectual, e está explicada em detalhes na introdução de “Cultura Popular Temas e Questões” (Editora 34).

É esta a visão do mundo que o leva a afirmar: “Se você não produz alta tecnologia, também não pode produzir inovações no campo cultural. Seria uma discrepância: como você é original em cultura e não em tecnologia?”

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