Compartilhado de BBC –
Oficialmente, o Brasil ultrapassou nesta quinta-feira (29/04) a marca trágica de 400 mil mortos por covid-19 durante a pandemia. Mas registros hospitalares brasileiros apontam que o número de pessoas que morreram em decorrência de casos confirmados ou suspeitos da doença no país pode já ter passado de 514 mil.
- Matheus Magenta
- Da BBC News Brasil em Londres
Essa estimativa aparece em duas análises distintas, uma liderada por Leonardo Bastos, estatístico e pesquisador em saúde pública do Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e outra pelo engenheiro Miguel Buelta, professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).
Ambas se baseiam em dados oficiais de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), um quadro de saúde caracterizado por sintomas como febre e falta de ar.
A legislação brasileira estabelece que todo paciente que é internado no hospital com SRAG precisa obrigatoriamente ter seus dados notificados ao Ministério da Saúde por meio do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (conhecido como Sivep-Gripe). Esse sistema é utilizado há anos e permite saber quantos casos de infecções respiratórias necessitaram de hospitalização e evoluíram para óbito no país.
No ano inteiro de 2019, foram registrados 5.342 óbitos por síndrome respiratória aguda grave. Em uma semana de abril de 2021, foram registrados 86.651. Até o momento, de todas as pessoas com SRAG e resultado laboratorial para algum vírus na pandemia, mais de 99% acabaram diagnosticadas com covid. Ou seja, SRAG e covid-19 são praticamente a mesma coisa na pandemia.
Esses dados são considerados bons indicadores por não sofrerem tanto com a escassez de testes ou resultados falsos positivos. Mas há alguns problemas, entre eles o atraso: pode levar bastante tempo até uma internação ou uma morte ser contabilizada no sistema.
Então, como saber o número atual mais próximo da realidade? Como os pesquisadores chegaram à estimativa de 514 mil ou de 540 mil (no caso de Buelta) mortes por doença respiratória grave, ou melhor, mortes por covid-19?
Projeção do agora
Bem, os cientistas fazem o que se chama de nowcasting, que grosso modo é uma projeção não do futuro (forecasting), mas do agora. Isso se faz ainda mais necessário durante a pandemia por causa dessa demora da entrada dos registros de hospitalizações e mortes no sistema digitalizado.
É como se os dados disponíveis hoje no sistema oficial formassem um retrato desatualizado e cheio de buracos. Para preencher e atualizar essa imagem, é preciso calcular, por exemplo, qual é o tamanho desse atraso, de uma morte de fato à entrada do registro dela no sistema, a fim de “prever” o que está acontecendo atualmente.
Bastos lidera análises de nowcasting numa parceria que envolve o Mave, grupo da Fiocruz de Métodos Analíticos em Vigilância Epidemiológica, e o Observatório Covid-19 BR, grupo que reúne cientistas de diversas instituições (como Fiocruz, USP, UFMA, UFSC, MIT e Harvard).
“(O nowcasting) corrige os atrasos do sistema de notificação vigente, isto é, adianta-se as notificações oficiais futuras pelo tempo médio entre a ocorrência dos primeiros sintomas no paciente e a hospitalização, quando há o registro dos seus dados no sistema de vigilância. Esse tempo abrange várias etapas: desde procurar um hospital, coletar o exame, o exame ser realizado e o resultado do teste positivo para covid-19 estar disponível para ser incluído no banco de dados. O tempo acumulado entre essas etapas do processo causa atrasos de vários dias entre o número de casos confirmados no Sivep-Gripe (plataforma oficial de vigilância epidemiológica) e os casos ainda não disponíveis no sistema, que são compensados somando aos casos já confirmados uma estimativa de casos que devem ser confirmados no futuro”, detalha o Observatório Covid-19 BR.
A dificuldade de monitorar em “tempo real” o que acontece durante epidemias é global, e diversos cientistas ao redor do mundo tentam achar soluções para esse problema.
Os cálculos atuais sobre a pandemia no Brasil liderados por Bastos foram feitos a partir da adaptação de um modelo estatístico proposto em 2019 por ele e mais oito pesquisadores.
Para apontar um retrato atual mais preciso da pandemia, essa modelagem estatística (hierárquica bayesiana) corrige os atrasos dos dados incorporando nos cálculos, por exemplo, a partir do conhecimento prévio da ciência sobre o que costuma acontecer durante o espalhamento de doenças como gripe. Mais detalhes no artigo disponível neste link aqui.
Para chegar até o número de 514 mil mortes por SRAG, Bastos explica à BBC News Brasil que são analisados primeiro os dados da semana atual e da anterior, a fim de identificar quantos casos e óbitos tiveram uma semana de atraso.
“Assim, aprendemos a respeito do atraso e usamos isso para ‘prever’/corrigir a semana atual e as últimas 15 semanas. O total de 514 mil mortes por SRAG é a soma dos casos observados acumulados até 15 semanas atrás com as estimativas mais recentes corrigidas.”
Em sua análise, Miguel Buelta, professor da USP, aponta um número próximo, de 540 mil mortos, ou seja uma diferença de cerca de 140 mil mortes entre o dado oficial divulgado hoje pelo governo federal e o número corrigido (sem atraso) dos óbitos por síndrome respiratória aguda grave.
A subnotificação do atraso, nesse caso, gira em torno de 35%. O cálculo dele se baseia, entre outros pontos, na análise do número de mortes em uma data específica, mas capturada em dois momentos distintos. Ou seja, em 28/2, por exemplo, Buelta registrou o número de mortes naquele dia e fez o mesmo dois meses depois (quando os registros parecem já “normalizados”) para saber quantas mortes ocorreram de fato naquele dia.
O professor explica que o fator atual de subnotificação é de 1.33. Ou seja, para saber qual é o número de mortes atualizado hoje, é preciso multiplicar o dado do registro oficial pelo fator. Por exemplo, em 28/04 constavam 398.185, mas o estimado atualizado sem atraso é de 529.533.
Buelta acredita que o valor pode ser ainda maior por causa do caos nos hospitais vivido pelo país nas últimas semanas, quando o número de mortos passou de 4.000 por dia. “A situação atual é muito mais emergencial. É uma tragédia. Vamos todos lutar contra isso. Isolamento social e ajuda emergencial. Fora disso não há solução.” Mais detalhes sobre o modelo estatístico usado por ele aqui neste link.
1,9 milhão de internados
Na análise liderada por Bastos, da Fiocruz, estima-se que o Brasil tenha registrado mais de 1,9 milhão de internações durante a pandemia de coronavírus por causa de doenças respiratórias graves. Na pandemia de H1N1, em 2009, o total foi de 202 mil hospitalizações.
Segundo análise da Fiocruz com base em registros de casos de síndrome respiratória aguda grave entre 18/4 e 24/4, há pelo menos cinco estados no país com regiões com tendência de alta nas infecções por covid: Mato Grosso do Sul, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Ceará.
Na Bahia, o avanço da doença ocorre nas regiões de Jacobina e Ilhéus. No Ceará, na região do Cariri. O mesmo ocorre no sertão de Pernambuco. Minas Gerais enfrenta situação semelhante no Triângulo Sul e Mato Grosso do Sul em torno de Dourados.
A Fiocruz afirma que começou a desacelerar a queda nas internações por casos confirmados ou suspeitos de covid em estados como Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul.
“Tais estimativas reforçam a importância da cautela em relação a medidas de flexibilização das recomendações de distanciamento para redução da transmissão da covid-19 enquanto a tendência de queda não tiver sido mantida por tempo suficiente para que o número de novos casos atinja valores significativamente baixos.”