Por Carlos Marcos, compartilhado de El País –
Em 4 de outubro de 1970, morreu de overdose a primeira estrela feminina do rock. Uma biografia revisa sua luta para ser mais livre do que o mundo estava disposto a permitir
Foi o episódio que a afundou. Após uma época de excessos e vadiagem na Califórnia, Janis Joplin voltou à conservadora Port Arthur (Texas), a casa de seus pais, uma família de classe média que recebeu a filha de braços abertos, acreditando que poderiam “reconduzir” sua vida. Com o núcleo familiar apoiando-a, Janis havia combatido e vencido seu vício em speed e havia se matriculado em Belas Artes na Universidade do Texas.
A fraternidade Alpha Phi Omega havia organizado um concurso para arrecadar fundos para financiar suas atividades. Fariam a eleição do homem mais feio do campus. Um anônimo inscreveu Janis. A universidade foi coberta com fotos suas onde se lia : “Vote no homem mais feio”. Quando Joplin viu aqueles cartazes desmoronou como nunca havia acontecido. Isso lhe lembrou do assédio que sofreu quando estava no colégio. Chorou até não lhe restar lágrimas. E decidiu que aquela cidade tão hostil não era para ela. Tinha 19 anos e foi para São Francisco para iniciar um caminho de sucessos e desgraças poucas vezes visto na história do rock.
O muro que bloqueou emocionalmente Janis ―cuja morte completa 50 anos neste domingo― foi construído por um querer ser mais livre do que o mundo estava disposto a permitir. Bissexual em uma sociedade pacata, barulhenta em um entorno submisso, mulher transgressora em um ecossistema patriarcal. Tão selvagem quanto vulnerável, Joplin foi a primeira estrela feminina do rock, com uma influência muito além das questões de gênero: seu estilo vocal e estético se encontra em símbolos do rock machão, de Robert Plant (Led Zeppelin) a Axl Rose (Guns N’ Roses).
“Foi uma pioneira. E fez sacrifícios para assumir riscos que aplainaram o caminho para que as artistas mulheres ganhassem presença na indústria da música e para que não se ajustassem às demandas impostas por uma sociedade patriarcal”, diz dos Estados Unidos Holly George-Warren, estudiosa da cantora e autora de um livro que esmiúça a vida musical e privada da artista, Janis Joplin: sua vida, sua música (Editora Seoman).
Joplin costumava descer as escadas do palco após um show chorando. Suas atuações eram intensas assim, uma mistura de orgulho e dor, de paixão e honestidade. A interação entre o que acontecia no palco e a plateia era um espetáculo. Janis conseguia o efeito de uma pilha carregando a outra. “Quando ela cantava eu ouvia a liberdade”, afirma o engenheiro de som Jackie Mills no livro de George-Warren.
De onde vinha essa dor que conseguia, quando cantava, romper o coração da audiência? Para isso é preciso ir a Port Arthur dos anos cinquenta, onde a família Joplin se assentou. Seth, o pai, conseguiu trabalho na refinaria de petróleo da cidade, uma das maiores do país. Os Joplin iriam se transformar a partir dessa época em uma família (três filhos, com Janis, a mais velha, nascida em 1943) sem problemas econômicos. Port Arthur era um lugar pequeno profundamente conservador, temente a Deus e discriminatório. A imagem gorducha, sardenta e rude de Janis não se encaixava no perfil estético das adolescentes de lá. No colégio foi objeto de chacotas durante anos. Aí começou sua atormentada relação com seu corpo.
“Janis enfrentou um meio hostil e edificou um estilo de luta”, escreve Myra Friedman, sua assessora e amiga, no livro Enterrada viva: a biografia de Janis Joplin (Civilização Brasileira). A futura cantora criou um personagem como autodefesa, um perfil que nunca abandonou: valentona, arruaceira, brigona. “Rudeza nos modos e certa complacência para ser o bufão, para se prestar a ser o objeto do abuso verbal. Qualquer coisa para chamar a atenção”, escreveu Myra Friedman, que faleceu em 2010.
Paralelamente desenvolvia um perfil intelectual, principalmente após ler On the road, de Jack Kerouac. Queria ser uma beatnik, experimentar drogas, viajar. Começou a consumir música, artistas negros como Leadbelly, Big Mama Thornton e Bessie Smith, sua fraqueza. Não se calava por nada. Defendeu a integração racial e foi rechaçada em um entorno, Port Arthur, onde a ameaçadora presença da Ku Klux Klan ainda existia. Seus colegas a insultavam. Era “a amiga dos negros”.
Quando voltava do colégio para casa, seus pais também não a entendiam. De Dorothy, a mãe, herdou a paixão pelo canto, mas não valores (ultra) religiosos e conservadores; do pai, Seth, grande leitor, pegou sua inquietude intelectual. Janis sentia uma conexão especial com seu pai, mas se rompeu quando viu que ele preferia seu filho homem e se isolava para beber sozinho com seus livros. É comovente ler as cartas que envia a seus pais, reunidas no livro de Holly George-Warren. É possível ver uma garota assustada apesar da força que exibia e tinha. “Sempre buscou o reconhecimento de seus pais”, afirma sua biógrafa. E o fez até mesmo quando era uma estrela. As cartas são repletas de exclamações adolescentes: “É incrível!” e “preciso suspirar: não posso acreditar”.
Quando começou a se profissionalizar precisou lutar contra outro inimigo poderoso: o medo do palco. “Usava o álcool para vencer seu terror do palco e relaxar enquanto performava. E depois utilizava a heroína como agente entorpecedor, para não sentir o estresse e a ansiedade para dispersar toda a adrenalina que havia gerado durante o show”, descreve sua biógrafa.
Sua vida não teve só dramaticidade. Janis viveu etapas de plena felicidade. Ela se instalou em São Francisco na época dourada do movimento hippie, travando amizade com bandas como Grateful Dead e Jefferson Airplane, fazendo parte da revolução social e cultural dos anos sessenta nos Estados Unidos. Ela devorou cada segundo que viveu e exibiu ao mundo a liberação da mulher em uma contracultura dominada por homens. E o fez em grande estilo, sem reprimir-se sexualmente e com suas experiências lisérgicas, sem pedir permissão para nada. “Ela se divertiu muito, especialmente quando se mudou para São Francisco pela primeira vez, em 1966, e se juntou ao grupo Big Brother. Aproveitou a vida intensamente nessa etapa”, diz George-Warren.
Foi amiga de Jimi Hendrix, Kris Kristofferson e Leonard Cohen, deu um tapa em Jerry Lee Lewis (ele devolveu) e quebrou uma garrafa na cabeça de um Jim Morrison bêbado e irritante.
Gravou quatro discos (dois com o grupo Big Brother and the Holding Company, um com a Kozmic Blues Band e o póstumo, Pearl, com a Full Tilt Boogie) e sempre deu a impressão de que o potencial que demonstrava ao vivo nunca se refletiu nas gravações. “No palco faço amor com 25.000 espectadores quando canto; depois vou para casa sozinha”, dizia. Os grupos que a acompanhavam não pareciam estar à altura dessa imensa e dolorida voz. “Levava seu canto ao limite. Tinha uma capacidade vocal poucas vezes vista. Suas performances ao vivo a retratam melhor do que os discos. Mas ainda hoje se escuta Pearl e ele soa fresco e moderno”, diz Toni Castarnado, que publicou três livros dedicados ao papel das mulheres na música, o último deles Ellas cantan, ellas hablan (Elas cantam, elas falam).
Teve dúzias de amantes e saiu machucada de quase todas as relações. Compôs poucas músicas. A maioria de seus sucessos é de composições de terceiros que ela escolhia porque sabia que contavam sua dor. Podia senti-las: Me and Bobby McGee, de Kris Kristofferson; Piece of my heart, de Jerry Ragovoy e Bert Berns para Erma Franklin; Summertime, de George Gershwin, interpretada por muitos, como Billie Holiday; Ball and Chain, de Big Mama Thornton… “Foram os homens que feriram Janis, que destroçaram seu coração. E ao ver os homens nos shows desfrutando sua música comecei a entender o ressentimento dos negros quando veem os brancos apreciando o blues. Janis cantou sobre sua dor de mulher e os homens a adoravam”, escreveu na Rolling Stone em 1976 a jornalista e ativista feminista Ellen Willis.
E também existia sua impactante imagem: os casacos de peles, os óculos coloridos, seus chapéus extravagantes, o cabelo revolto, os colares… “Ela criou uma imagem muito potente. No começo de forma natural, mas depois viu que lhe dava créditos e a potencializou. Era a época em que nasceram os grandes fotógrafos do rock e as revistas de música. E Janis nas capas era algo muito valioso”, diz Castarnado.
Dois meses antes de morrer, Joplin decidiu dar um dos passos mais importantes de sua vida: visitar Port Arthur, a cidade que a havia ferido. Aquela menina gorducha, o ser estranho repudiado, havia se transformado em uma estrela que transmitia uma sexualidade poderosa. Ela precisava visitar aquele lugar opressor que havia condicionado sua vida. Não era uma vingança: desejava olhar nos olhos de seus assediadores para ver se mostravam certo arrependimento. Não o encontrou. “Procurava uma reparação final por parte de sua cidade natal. Precisava do reconhecimento dos que a haviam desprezado há uma década”, diz sua biógrafa. Mas seus ex-amigos e até seus pais a ignoraram. Jogaram em sua cara que em alguma entrevista afirmou que seus vizinhos a machucaram. “Eu só queria que eles me amassem”, implorou. Não ajudou o fato de Joplin ir a Port Arthur com seu grupo de hippies beberrões. A mãe chegou a lhe dizer: “Você está me envergonhando”. Antes de Joplin partir, desolada, os pais haviam saído da cidade, “para um casamento”.
Janis morreu sozinha em um quarto de hotel de Los Angeles. Uma overdose de heroína a levou justamente quando iria lançar seu disco mais ambicioso, Pearl. Não chegou a vê-lo nas lojas. Foi seu álbum mais vendido. Somente 16 dias antes havia falecido Jimi Hendrix. Os dois tinham 27 anos.