Por Janara Nicoletti, compartilhado de objETHOS –
No final de semana, o Brasil ultrapassou a marca de 50 mil vidas perdidas para a Covid-19 no Brasil. Desde a primeira morte confirmada em 17 de março, se passaram cem dias. Além da falta de transparência dos dados oficiais e da subnotificação verificada por diferentes estudos, a relativização de alguns termos relacionados à pandemia ou o ofuscamento de dados pode contribuir com o discurso de minimização do problema no país.
O Consórcio de Imprensa formado por Folha de S. Paulo, Estadão, G1, UOL e Extra, informou sábado (20) que as secretarias estaduais de saúde contabilizavam juntas 50.058 mortes pela Covid-19 no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, eram 40.976.
A CNN Brasil trouxe dados similares ao do Consórcio, a partir de investigação própria. No domingo (21), estes números eram 50.659 e 50.617, respectivamente. Apesar da diferença numérica, os dados apresentam um panorama similar sobre a pandemia e indicam a manutenção da escalada do número de casos no Brasil.
Diante disso, o Jornal Nacional, apresentou editorial denunciando a falta de empatia para com as vítimas da Covid-19 e dedicou boa parte da edição para o tema. Já o SBT Brasil se limitou a divulgar os números do último dia, sem apresentar o acumulado. Na cobertura, algumas matérias mostravam notícias sobre a conjuntura em alguns estados. O Jornal da Record, da Record, trouxe algumas matérias sobre o tema e também destacou os dados oficiais do governo federal. Enquanto o Jornal da Band reforçou que o país se aproximava das 50 mil mortes, também se referindo aos dados oficiais.
Já os três jornais integrantes do Consórcio de Imprensa destacaram os dados oficiais das secretarias estaduais de saúde.
Da retomada à relativização das mortes
Domingo (21), Folha de S. Paulo, Estadão e O Globo evidenciaram a crise da Covid-19 em suas manchetes e editoriais. As chamadas de capa e a opinião dos veículos mostraram duas medidas bastante diferentes para o problema: ao mesmo tempo em que as manchetes denunciaram a tragédia humana vivida pelo acúmulo de mortes, os editoriais reforçaram os efeitos econômicos da pandemia.
Folha ressaltou na capa que o número de mortes por coronavírus no Brasil, pouco depois de cem dias do primeiro registro, só é comparável com o resultado de cinco anos da Guerra do Paraguai. Já no editorial discutiu a renegociação de tributos no contexto da pandemia.
Estratégia parecida foi usada pelo O Globo, que trouxe como manchete os mais de 20 mil casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAV) registrados no país desde janeiro, e que podem esconder a subnotificação de vítimas da Covid-19. Já o editorial criticou a política de comércio exterior no contexto de retomada pós-pandemia.
O Estado de S. Paulo foi o que manteve maior “coerência” entre o texto principal do editorial e a reportagem especial sobre a Covid-19. A opinião do jornal ressaltou a falta de gestão governamental articulada para controlar a pandemia e seus efeitos sobre a saúde pública. Já o texto secundário da mesma seção evidenciou a quebra da economia no país. Enquanto isso, a reportagem de capa fez um tributo aos mortos da Covid-19 e é acompanhada por uma correlata que apresenta a dimensão da pandemia.
Nos três casos surgem duas narrativas diferentes sobre a pandemia: enquanto a opinião do veículo advoga pela agenda econômica, a equipe editorial reflete sobre a dimensão da saúde pública. E essa dicotomia aparece de forma bastante recorrente em diferentes conteúdos jornalísticos das mais variadas mídias. Ancorado no discurso da retomada econômica, o noticiário lança informações conflitantes, pois reforça os dados científicos sobre distanciamento social e ao mesmo tempo destaca a necessidade de se buscar uma normalidade pós-pandêmica, com o retorno das atividades, apesar de ainda estarmos presenciando a escalada dos casos.
No Estadão do último domingo, essa dicotomia ficou bastante evidente. A reportagem de capa homenageia pessoas que perderam a batalha para a Covid-19. Porém, já na introdução, reforça a necessidade de retomada econômica como um desafio a ser superado: “Após um isolamento social falho, que não freou suficientemente o avanço do vírus, o desafio de agora é fazer com que a reabertura, vista com ressalvas por especialistas, não leve a um descontrole maior de transmissão”. Logo em seguida, volta a falar sobre as mortes de Covid-19: “a maioria [dos mortos] tinha algum fator de risco, mas outros tantos não resistiram, mesmo sendo jovens e sem doença crônica”.
Nos casos citados acima há dois tipos comuns de relativização do problema verificados diariamente na cobertura sobre o coronavírus no Brasil, em diferentes veículos. O primeiro é o discurso de volta à normalidade a partir da retomada econômica e reinício das atividades. O segundo é a supervalorização das comorbidades como fatores agravantes das mortes no país. Nos dois casos, os riscos da pandemia são relativizados na tentativa (intencional ou não) de amenizar o problema.
As palavras “retomada” e “comorbidade” se tornaram comuns no discurso midiático brasileiro dos últimos meses. A primeira segue a narrativa de agentes políticos e econômicos na busca da reabertura do comércio e da “normalização” das atividades em todo o país. A segunda é usada na tentativa de classificar as vítimas da doença entre saudáveis e com doenças pré-existentes, aquelas que estão em grupo de risco juntos com os idosos e possuem sistema imunológico mais frágil.
Da mesma forma que a retomada remete a uma normalidade inexistente, destacar as “comorbidades” junto com as notícias de mortes sobre o coronavírus também gera uma noção equivocada da dimensão do problema. Esta era uma estratégia bastante comum a vários veículos de imprensa brasileiros quando os casos eram contados em unidades ou dezenas. Hoje, esse termo aparece em matérias de contexto ou junto com dados sobre mortalidade, como se ajudassem a justificar o contexto do crescimento de casos.
Mesmo que de forma não intencional esse tipo de destaque acaba separando as vidas perdidas entre os saudáveis e aqueles que já estariam condenados por um problema pré-existente. Um diabético ou hipertenso vítima da Covid-19, por exemplo, não perdeu a vida pela condição anterior, mas sim pelo novo coronavírus. Valorizar as comorbidades ao noticiar as mortes reforça o mito de que apenas quem está no grupo de risco pode sofrer complicações que levam à morte. Por mais inofensiva que pareça, essa é uma estratégia narrativa que leva à desinformação e pode confundir o público.
Janara Nicoletti – Doutora em Jornalismo e pesquisadora do objETHOS