Por Isabella Marcatti, socióloga, editora-adjunta da Boitempo Editorial
Como eu disse à autora, estou tão feliz com a publicação de “Viver é tomar partido”, as memórias de Anita Leocadia Prestes, que me faltam palavras, me faço pura emoção.
Acho que o amor pelo comunismo e que emana do comunismo passa de mãe para filha. Foi minha mãe quem primeiro me contou a história dessa menina cuja mãe, grávida, tinha sido entregue aos nazistas por Getúlio Vargas (já isso mexia comigo, porque, afinal, Getúlio também era uma figura admirada lá em casa), que nasceu numa prisão nazista, foi afastada ainda bebê da própria mãe (que seria depois assassinada) e só veio a conhecer o pai pessoalmente quando já estava crescida.
Imagino que minha mãe, que era apenas 2 anos mais jovem que Anita (que, por sua vez, completará 83 este mês) se espelhasse nela de diversos modos. Um espelho que soube delicadamente dividir comigo, pois, em seu relato, Anita se mantinha menina, como eu era então.
Logo serei eu a contar essa história para minha filha, que mais tarde poderá ler as memórias que sua avó, infelizmente, já não está aqui para ver publicadas. Espero poder assim plantar na Isadora a semente da integridade, da força e da generosidade que reconheço em mulheres como minha mãe, Anita e a mãe dela, Olga.
No cartão de aniversário enviado à filha em 1981 e reproduzido ao fim do volume, escreve Luiz Carlos Prestes: “Sempre fui da opinião que os pais, a partir de certa idade, devem aprender com os filhos. Só assim poderão corrigir seus erros e a natural tendência ao anacronismo. É certo que nem sempre é isto viável. Mas no meu caso tive a felicidade de encontrar em ti, na tua firmeza revolucionária, na tua solidariedade e ajuda, aquilo de que mais necessito”.
Essa “firmeza revolucionária” é a própria matéria de que são feitas as memórias de Anita Prestes. Sem dúvida, um inestimável legado para a juventude. Torço para que os mais velhos, sobretudo aqueles que ainda veem no comunismo o espectro a rondar seus medos, também se deixem tocar e transformar pelas palavras de Anita.
Mais detalhes sobre o livro
Em Viver é tomar partido: memórias, Anita Leocadia Prestes narra sua extraordinária trajetória de vida, militância e pensamento. Autora de mais de uma dezena de livros sobre a história do comunismo no Brasil e no mundo, passando pela vida de seus pais – objeto de suas publicações mais recentes, Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015) e Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017) –, a historiadora lança agora esse relato memorialístico em que momentos importantes da história mundial são mesclados à narrativa de suas vivências pessoais.
Nessa obra, Anita registra as impressões dos episódios que marcaram sua vida, explorando acontecimentos pouco divulgados pelos meios de comunicação, na expectativa de que sejam experiências úteis para as novas gerações. Os onze capítulos que compõem o livro acompanham o percurso da filha de presos políticos nascida num campo de concentração da Alemanha nazista, sua libertação, a infância junto da avó, costurado sobre o pano de fundo da história do século XX.
A ascensão e a queda do governo Vargas, os diversos fechamentos do PCB, a prisão de seus pais, a execução de sua mãe pelo governo Hitler, golpes e anistias são feitos tecido de uma vida de militância, que nunca hesitou em declarar seu caráter partidário, comunista.
O texto articula com rigor e delicadeza objetividade histórica e estratégias subjetivas de sobrevivência e luta, representando ao mesmo tempo preciosa fonte historiográfica e de inspiração militante. No anexo, cartas inéditas, poemas e trechos de jornais contextualizam o relato em meio a fatos. O título Viver é tomar partido, frase do poeta e dramaturgo alemão Christian Friedrich Hebbel retomada pelo intelectual italiano Antonio Gramsci, resume o modo peculiar como a autora encara sua vida, totalmente imbricada em seu ativismo político.
Trecho do livro
Apesar da separação, não fui uma criança triste nem infeliz. Minha avó sempre se referia à alegria contagiante da neta. Embora longe dos meus pais, cresci cercada do carinho deles, que me chegava através das cartas, da dedicação de Leocadia e Lygia e da atenção, amizade e cuidados de numerosas pessoas de diversas nacionalidades.
A partir de junho de 1941, com o ataque hitlerista à União Soviética, lembro-me bem da angústia da minha avó, preocupada com a violência da invasão do território soviético pelos nazistas e, certamente, com o destino das filhas e do netinho que viviam em Moscou.
Imediatamente foi pendurado numa parede da nossa casa um grande mapa do cenário da guerra, em que os movimentos das tropas (tanto soviéticas quanto hitleristas) eram indicados com alfinetes de cabeças coloridas. Leocadia e Lygia acompanhavam essa movimentação torcendo, evidentemente, pelos soviéticos.
Mesmo durante os períodos de maiores dificuldades para o exército soviético, minha avó se mantinha confiante em sua vitória final, afirmando aos amigos e companheiros que nos visitavam: “Eu conheço aquele povo e sei que vencerão a guerra.” Escreveu ela a meu pai:
“Eu, por mim, procuro reagir contra o desânimo, que muitas vezes vejo empolgar certa gente menos firme, quando os jornais, sempre ávidos de notícias retumbantes, exageram os fatos da Guerra. Muitas vezes discuto com essas pessoas que querem convencer-me de que tudo está perdido e que o nazismo governará o mundo.”
Lamentavelmente, minha avó faleceu antes da vitória da União Soviética na Segunda Guerra Mundial.