65% dos brasileiros não têm ao menos um direito garantido

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Quase dois terços da população estão excluídos da educação, da moradia adequada, do saneamento, da proteção social e da internet

Por Adriana Barsotti, compartilhado de Projeto Colabora

Reportagem de Adriana Barsotti, com Carolina Moura, Catarina Barbosa, Edu Carvalho e Fausto Salvadori. Imagens e vídeos de Daniel Arroyo, Pedrosa Neto e Yuri Fernandes. Infografia: Fernando Alvarus*




Eles estão assegurados na Constituição ou em legislações específicas, mas 64,9% da população brasileira não têm pelo menos um dos seguintes direitos garantidos: à educaçãoà proteção socialà moradia adequada, aos serviços de saneamento básico e à comunicação (internet). Os dados foram extraídos da Pesquisa Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE 2017 e 2018. A realidade certamente é ainda pior, já que o relatório trabalha com o conceito de autodeclaração e só inclui os brasileiros que tenham domicílios, excluindo, portanto, moradores de rua. A situação de mulheres pretas ou pardas, sozinhas, e com filhos pequenos, é muito mais preocupante: atinge 81,3% delas. Entre os idosos, a gravidade da exclusão é praticamente a mesma: 80% deles estão à margem de tais direitos.

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Os resultados confirmam que vivemos em um país profundamente racista, sexista e que se recusa a tomar medidas para superar as diferenças raciais. Não se trata da falta de acesso aos direitos, e sim da expropriação deles

Jurema WerneckDiretora da Anistia Internacional no Brasil

É o caso de Júlia Marques, de 89 anos, e Pedro Leôncio de Sousa, de 87 anos. Ela mora às margens da BR-135, entre os povoados de Ponta da Ilha e Curva, no Maranhão. Ele mora na Rocinha, a maior favela do Brasil, localizada no Rio de Janeiro. Dona Júlia está no contingente dos sem direitos ao saneamento básico: não têm esgoto, água encanada e sua casa, construída de pau a pique, não é contemplada por coleta de lixo. Seu Pedro está no grupo populacional dos sem direitos à educação: é analfabeto. Figura entre os 7% dos brasileiros de 15 anos ou mais que não sabem ler e escrever, segundo o IBGE. Na categoria dos sem direito à educação, também são levados em conta, além dos analfabetos, crianças e adolescentes de 6 a 14 anos que não frequentam a escola e pessoas de 16 anos ou mais que não têm o Ensino Fundamental completo. Ao todo, 28,2% estão enquadrados nela.

Para estar no contingente dos sem direitos, basta que o brasileiro não tenha apenas um deles garantido. O IBGE adota a chamada “abordagem da união” para identificar os cidadãos excluídos dos direitos básicos. Ou seja, se a pessoa não tiver pelo menos um dos direitos acima mencionados já é um sem direito. Tecnicamente, haveria outra opção metodológica: a “abordagem da interseção”, que consideraria a privação simultaneamente de todos os direitos, o que amenizaria os números. “O IBGE prefere a abordagem da união, pois ela é orientada para os direitos humanos”, afirma o pesquisador Leonardo Athias, do instituto, lembrando que as estatísticas fornecidas devem servir para embasar políticas públicas que combatam as desigualdades sociais.

Há uma outra razão para isso. O Brasil é signatário da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, da ONU, adotada por 193 países em 2015. A Agenda 2030, ambiciosa, está baseada em 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) e 169 metas. Ela inclui uma série de direitos a serem garantidos, entre eles à moradia adequada, à educação, à saúde e à proteção social.  O relatório da pesquisa Síntese dos Indicadores Sociais menciona que o “o princípio é não deixar ninguém para trás”. Ou seja, identificar onde estão os grupos mais vulneráveis para a inclusão deles no processo de desenvolvimento sustentável.

Nas tristes estatísticas brasileiras, os negros e pardos saem sempre perdendo dos brancos. E em situação mais crítica ainda aparecem as mulheres negras e pardas, sozinhas, e com filhos de até 14 anos. Menos de 10% de homens e mulheres brancas estavam excluídos de três dos cinco direitos. O índice dobra entre os homens negros ou pardos e mulheres negras ou pardas: 22% no primeiro grupo e 20,1% no segundo. Os moradores de domicílios  chefiados por mulheres sozinhas e negras com filhos de até 14 anos não têm acesso, em média, a 1,6 dos direitos, sendo que uma em cada quatro pessoas deste grupo não tinha pelo menos três dos cinco direitos.

Entre os cinco direitos que são mais sonegados aos brasileiros, está em primeiro lugar o saneamento, com 37,6% excluídos dele, seguido da educação (28,2%), comunicação (25,2%), proteção social (15%) e moradia adequada (13%).  Para a psicóloga e doutora em educação pela USP, Maria da Glória Calado, a falta de acesso à educação conduz à reprodução de um ciclo de desigualdade social. “As pessoas que mais precisam são as que estão mais abandonadas à própria sorte. Com a evasão, muitas vezes, esses educandos são absorvidos pelo mercado de trabalho informal, podem envolver-se em atos de violência, continuam residindo em moradias consideradas precárias, têm dificuldades de acesso à saúde e a outros direitos e, por vezes, continuam distantes do retorno à escola”, critica a professora nos cursos de especialização em Cultura, Educação e Relações Étnico Raciais na USP . “Não é raro ver tal ciclo repetir-se com filhos e netos dessas pessoas”, aponta.

Ouvidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, com vasta atuação na área de direitos humanos, Pedro Strozenberg lembra que há outros direitos, além destes, garantidos pela Constituição, tais como o direito à saúde, ao trabalho e à segurança. Entretanto, reconhece que há dificuldades metodológicas para se abranger todos os demais na mesma pesquisa: “É um recorte. Há outros direitos que não estão expressos no estudo. Mas, sem dúvida, é um retrato válido”. Para ele, os resultados confirmam que a sociedade brasileira é desigual do ponto de vista racial, territorial e de gênero. “Infelizmente, estamos em tempos de relativização de direitos, e não de garantias”, lamenta. “A política de enfrentamento das desigualdades no Brasil vêm sofrendo retrocesso nos últimos três anos”, pontua Strozenberg, fundador do Balcão de Direitos, projeto de acesso à Justiça e mediação de conflitos em favelas cariocas e outros 17 estados brasileiros.

A médica Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, concorda. “Os resultados confirmam que o país é profundamente racista e sexista e se recusa a tomar medidas para superar as diferenças raciais”, critica. “Não se trata da falta de acesso aos direitos, e sim da expropriação deles”, pontua. “As mulheres negras estão na base da pirâmide, são as que têm os piores empregos, mas as que mais pagam impostos proporcionalmente”, dispara Werneck. “Seja na formalidade ou na informalidade, esse grupo paga impostos sobre o consumo e serviços”, lembra.

Negra, ela diz que sua infância teria sido menos sofrida se tivesse sido contemplada com políticas de compensação por parte do Estado. “O governo está sonegando direitos a determinados grupos e perpetuando os mecanismos de desigualdade”, adverte ela. Para ela, as políticas públicas têm a obrigação de contemplar os excluídos para garantir uma distribuição equânime das riquezas do país. Ela é favorável às ações afirmativas, mas adverte que elas não eliminam políticas de médio e longo prazo. “Elas são o remédio, mas não a solução. É preciso tratar a causa da dor”, compara.

A psicóloga Jaqueline de Jesus, pós-doutora em Trabalho e Movimentos Sociais e professora do IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro), concorda com Jurema. “Os brasileiros têm direitos”, alerta. “A questão é que a maioria deles não têm acesso a eles”, complementa Jaqueline, acrescentando que outros direitos deveriam ser contemplados, como o acesso ao trabalho e à mobilidade. “Em todos os direitos, há sempre desigualdade entre brancos e negros”, observa. “Mas existe uma extrema disparidade no acesso à proteção social”, sublinha a psicóloga, apontando para os 12 pontos percentuais que separam brancos e negros no direito à aposentadoria ou bolsas sociais. “E as mulheres negras, solteiras e com filhos estão na base salarial: têm empregos domésticos ou trabalhos intermitentes, mas estão excluídas dos direitos previdenciários e trabalhistas”, critica.

Militante contra a transfobia e primeira negra e trans a receber a medalha Chiquinha Gonzaga, conferida pela Câmara Municipal do Rio a mulheres que tenham se destacado em prol das causas democráticas, humanitárias, artísticas e culturais, ela observa que, pela “economia dos afetos” que predomina no país, essas mulheres não têm nenhum tipo de suporte: “têm a parentalidade – os filhos – mas não a conjugalidade”.  Para ela, a pesquisa evidencia que “a questão econômica é a expressão do racismo e do machismo na sociedade”.

Para a professora Maria da Glória Calado, o racismo é estrutural e demarca lugares e papéis na sociedade. “Essas mulheres negras, em sua maioria, estão ocupando posições subalternizadas, com empregos e moradias precarizadas, tem menos acesso às políticas de saúde, morrem mais na hora do parto e são privadas de muitos outros direitos. Trata-se de um histórico de desigualdades: elas tiveram menos – ou nenhum – acesso à escola, por exemplo”, ressalta. Ela acrescenta ainda o feminicídio, que  reverbera entre mulheres negras.

Desigualdades regionais

Em 2016, a situação regional mais crítica era a da Região Norte, onde 91,7% da população não tinham ao menos um direito assegurado. Em melhor posição, como era de se esperar, estava o Sudeste. Mesmo assim, o quadro era devastador: naquele ano, quase a metade dos brasileiros da região mais rica do país não tinham pelo menos um deles garantido: 48,9%. E foi justamente na região mais privilegiada do país que encontramos Roberta Ribeiro da Silva, moradora da favela de Antares, na Zona Oeste do Rio, que mora com um neto e sobrevive com R$ 400 por mês vendendo água no sinal. Ela se encaixa na categoria dos sem direito à  proteção social: não é aposentada, não recebe nenhuma bolsa social e os moradores de sua casa têm renda per capita inferior a meio salário-mínimo.

Em 2017, o IBGE constatou que 15,8% da população brasileira não tinham simultaneamente pelo menos três dos cinco direitos que lhe deveriam ser proporcionados. Na Região Norte, este número saltava para 32,7% da população e, no Nordeste, para 29,7%. Foi ali, no município de Alto Alegre, no Maranhão, que encontramos a família Souza. Nenhum dos 6 filhos jamais teve ou usou computador (link aqui). Mas os Souza também se encaixariam em outras duas categorias: sem saneamento e sem direito à educação. O terceiro pior quadro foi registrado no Centro-Oeste, com um índice de exclusão de 12,3%. Nos outros extremos, ficaram a Região Sul, onde apenas 9,8% da população não têm ao menos três direitos e na Sudeste, com apenas 5,9% sem três dos cinco direitos. Entre os cinco direitos que deveriam ser afiançados pelo Brasil, a restrição ao saneamento básico é o mais grave deles e atingia, em 2017, 82,3% da Região Norte e 58,8% da Região Nordeste.

Entre os estados, o Amapá é o que concentra o maior número de brasileiros sem direitos, com 95,7% da população excluída, praticamente em empate técnico com Rondônia, com 95,6%, seguido do Pará, com 95%. Clay Luiz Nascimento Cirilo, de 38 anos, está entre os paraenses sem moradia adequada. Ele  tem 38 anos e mora com a mulher, Mirian Neves Aquino, de 24, e as duas filhas, Rebeca e Raiane, de 8 e 6 anos, em uma casa de um cômodo construída na ocupação Laércio Barbalho, localizada na Rodovia do Tapanã, bairro afastado do centro de Belém.

Já entre os estados com o menor número de excluídos, incluindo a capital, está o Distrito Federal, com 41,7% da população sem ao menos um direito, seguido de São Paulo, com 42,9%, e do Rio de Janeiro, com 52,3%. Para dar rosto a essas pessoas que vivem à margem do que a Constituição assegura, o #Colabora, a Amazônia Real e  a Ponte Jornalismo foram a três regiões do país. E decidimos criar uma sexta categoria: os sem direito à vida, vítimas da violência policial que assola o país. Segundo a OAB, a polícia brasileira é a que mais mata no mundo. No Complexo da Maré, uma das maiores favelas do Rio, conversamos com Bruna Silva, mãe de Marcus Vinicius, de 14 anos, morto pelas forças da intervenção federal no Rio quando estava a caminho da Escola Estadual Vicente Mariano, em 20 de julho de 2018. Ele vestia uma camiseta do colégio no dia em que foi baleado. “O direito de vê-lo crescer me foi negado pelo Estado”, lamenta Bruna.

*Esta reportagem foi produzida pelo Projeto #Colabora, Amazônia Real e Ponte Jornalismo

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