POUCAS COISAS PODERIAM ser mais diferentes de uma plantação de maconha do que o laboratório de engenharia onde conversei em meados de dezembro com o professor Luiz Bevilacqua, dentro do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ. Não que surpreenda que as sandices do atual ministro da educação, Abraham Weintraub, não tenham lastro algum na realidade. Além de descrever as “extensas plantações de maconha” presentes nos campi das federais, Weintraub também gosta de reforçar que as universidades brasileiras – ele é empregado de uma delas – são irrelevantes.

Para Bevilacqua, um professor e pesquisador que já presidiu a Agência Espacial Brasileira e foi idealizador e reitor da Universidade Federal do ABC, o ministro age como um “inimigo do desenvolvimento”. Ele alerta que o maior risco do descrédito da ciência brasileira é abandonarmos a nossa “independência cultural” para depender do resto do mundo. “Mas todos que criticam dizem que se formaram em Harvard, não é?”, ironiza.




Bevilacqua é um homem das ciências exatas – graduou-se engenheiro civil pela UFRJ, fez especialização em pontes e grandes estruturas na Alemanha, e é doutor em mecânica teórica e aplicada pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Na conversa, ele insistiu que há saídas para a educação, a ciência e a tecnologia — os pilares de sua carreira —, mesmo diante da redução do apoio à pesquisa e da campanha de ódio às universidades públicas e ao legado de Paulo Freire lançada pelo governo Bolsonaro.

O cientista também avalia que a concessão da base espacial de Alcântara aos Estados Unidos e a “invasão” de universidades estrangeiras são partes de um mesmo fenômeno que enfraquece a ciência brasileira e é apoiado pelo governo federal.

O laboratório da Coppe onde Bevilacqua trabalha ocupa um prédio inteiro da UFRJ e poderia fazer parte de um filme de ficção científica. O centro de pesquisa foi erguido com o apoio da Petrobras e se mantém graças a parcerias entre a universidade e empresas de tecnologia. Apesar disso, ele está longe de ser um entusiasta do Future-se, programa que incentiva universidades federais a captar recursos privados e que prefere chamar de “Atrase-se”, e propõe mudar o foco do debate: ao invés de olhar para a forma como as federais são financiadas, crê ser importante questionar qual é o novo projeto de educação superior do Brasil.

‘Qual é o novo projeto de educação superior do Brasil?’

Recapitular uma sequência de acontecimentos que são capazes de deixar todo o legado de Bevilacqua e seus colegas em ruínas poderia ser um processo constrangedor, mas o professor vê o contexto de outra forma. “É preciso substituir o ‘vejam como o Brasil é ruim’ pelo fato: “nós promovemos a ruína da nossa educação”, cravou. Ainda assim, ele lembra que o potencial brasileiro na produção de conhecimento é comprovado todos os dias — e atestado pelas universidades estrangeiras.

Leia os principais trechos da entrevista com Bevilacqua. As respostas foram editadas por motivos de clareza e concisão.

Rio de Janeiro, RJ, BRASIL. 11/12/2019. Retrato do professor e cientista brasileiro, Luiz Bevilacqua.

Fotos: Ricardo Borges/The Intercept Brasil

Intercept – Abraham Weintraub é qualificado para o cargo que ocupa?

Luiz Bevilacqua – De jeito nenhum! Ele não tem a formação que o cargo de ministro da Educação exige. O modo que ele tem tratado os professores e universidade o coloca como mais um inimigo do avanço na produção de conhecimento do que alguém que estimula esse desenvolvimento. Faz só 60 anos que o Brasil passou a investir na área de pesquisa, com professores contratados em tempo integral, salários decentes e recursos suficientes para iniciar as atividades no país inteiro. Foi a partir daí que começamos a ter resultados de impacto. Quando eu cursei engenharia, não tinha um pesquisador da área na universidade. Nós avançamos muito e precisamos manter a qualidade.

A postura do Weintraub nas entrevistas que ele tem dado no Congresso — eu ouvi algumas — é terrível. Em uma delas, com relação a esses rankings de classificação das universidades, ele disse “Pois é, mas no Brasil, a melhor universidade é a USP, que está na 200ª, 300ª posição”. Isso é apenas uma das classificações. Se você procurar o ranking da Universidade de Leiden, a USP está em oitavo lugar no mundo, mas isso ele não cita. Por que as pessoas não qualificam o Brasil de acordo com uma metodologia que seja a mais adequada à nossa atuação e histórico?

Desde que tomou posse, o governo atual tem claramente uma política de enfrentamento com as universidades. O ministro da Educação chegou a afirmar, sem prova alguma, que elas mantém extensas plantações de maconha. Aonde esse ambiente de animosidade pode chegar?

Olha, é difícil estimar porque a coisa é de tão baixo nível que eu não sei se já chegamos ao fundo do poço. O maior desastre é dizer que “as universidades brasileiras não prestam por causa da maconha”, o que é absolutamente ridículo. Precisamos fazer investigação científica e não só plantar maconha, mas plantas venenosas também. E, mais do que isso: as universidades têm cepas de mosquitos da dengue, da chikungunya. Negar a necessidade dessas amostras é uma estupidez do maior tamanho. A Fundação Oswaldo Cruz tem vários elementos que são terrivelmente prejudiciais à saúde, muito mais que a maconha, mas eles precisam de vírus para fazer pesquisa.

Isso representa um risco para as universidades?

O grande risco é diminuir a importância das universidades públicas entre os brasileiros. Mas todos que criticam dizem que se formaram em Harvard, não é? Até o ministro Weintraub disse que esteve por lá. O grande perigo de desvalorizar a nossa ciência é condicionar a formação do povo brasileiro às universidades estrangeiras. Assim nós desistimos da nossa independência cultural e passamos a depender culturalmente do resto do mundo.

‘O grande perigo de desvalorizar a nossa ciência é condicionar a formação do povo brasileiro às universidades estrangeiras’.

Isso aconteceu com a Revolução Industrial, aqui no Brasil. Nós desistimos da nossa produção industrial — nem vagão de trem a gente fabrica. Desde então, fomos dominados principalmente pela Europa. “Pra que eu preciso desse laboratório aqui se eu posso ter um laboratório na Alemanha, na França, na Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, China ou na Rússia?”. Dentro desses conceitos, os deles são sempre melhores, e nós os piores. É assim que se acaba com a cultura brasileira. É gravíssimo.

O governo também está interferindo nas escolhas dos conselhos universitários para os reitores, e baixou decreto que manda a secretaria de Governo, subordinada diretamente ao presidente, tomar a decisão sobre as nomeações não só de reitores como também de postos de escalões inferiores, como pró-reitores e diretores. O que isso representa?

Um erro gigantesco, porque você coloca a responsabilidade de dar conta de toda diversidade cultural brasileira no ponto de vista de uma pessoa só. Nenhuma administração minimamente inteligente adotaria essa postura, afinal reconheceria a diversidade que existe no meio universitário. É como se dissesse “Vou escolher qual planta que deve ser plantada no país inteiro: eucalipto”. Não faz o menor sentido, a menos que seja um projeto de destruição das universidades colocando só pessoas que pensam igual a quem as selecionou.

A diversidade de pensamentos e teorias move as universidades. No princípio, até Einstein era contra mecânica quântica. As áreas mais ligadas às ciências humanas e sociais são as mais afetadas, ao meu ver. Se alguém quiser fazer uma crítica séria à política adotada pelo governo, não pode. Ou seja, nomear pessoas é um tipo de intervenção que vai bloquear o livre pensar na universidade. Isso é possível porque se o governo quer ter esse poder na mão, ele controla o modo como as pessoas pensam. Inclusive, caso o objetivo não seja esse, aí existe uma estupidez dupla acontecendo.

O educador Paulo Freire se tornou um dos alvos prediletos do governo Bolsonaro e seus aliados. Por ele ter sido um homem de convicções políticas de esquerda, tentam imputar a ele toda a culpa pelo fracasso histórico brasileiro em proporcionar uma educação pública minimamente decente e abrangente. Qual sua visão de Paulo Freire? Em que ele tem culpa nessa história?

Existem alguns grupos no governo, bem juntos ao Bolsonaro, que querem classificar a contribuição científica do Brasil pelo número de citações. Eles acham que esse é o grande carro-chefe. Paulo Freire é uma das quatro referências mais citadas no mundo em Educação, então eu sugiro que senhor Bolsonaro tenha em sua mesa de cabeceira um livro do Paulo Freire; afinal, ele adora citações.

‘Quais são os argumentos do governo contra Paulo Freire? Não existem. É simplesmente porque é um homem ligado à esquerda’.

Paulo Freire é reconhecido no mundo inteiro como um excelente educador. Ele inclusive olha a educação integrada ao contexto de cada lugar. Não existem padrões universais. A China educa de um jeito, nós temos educado de outro, então a contribuição de Paulo Freire é fundamental e parte do sucesso brasileiro se deve a ele. Essa avaliação que o governo faz é infundada, eles simplesmente dizem. Com base em quê? Quais são os argumentos? Não existem. É simplesmente porque é um homem ligado à esquerda. E hoje você ser ligado a esquerda é uma tragédia, um motivo para ser desqualificado. Eu certamente serei desqualificado por esse governo porque tenho um pensamento de esquerda.

Nivelar o Brasil pela quantidade de citações é algo muito relativo. Algumas revistas científicas priorizam artigos com o maior número de referências às edições anteriores. Se a produção de ciência fosse como um campeonato de futebol, o que seria mais importante: a maior torcida ou o time mais qualificado? Então o que vale mais, no meu ponto de vista, são os índices que classificam os artigos em revistas que são muito sérias e rigorosas na aceitação de trabalhos.

Recentemente saiu uma classificação da Nature que considerou apenas 82 melhores revistas científicas do mundo entre milhares. O Brasil está em vigésimo lugar. Estar entre os 12% dos primeiros países no mundo não é para qualquer um. Agora, se levarmos em consideração as citações, estamos lá embaixo. Por quê? Porque as pessoas não lêem muito os nossos artigos. Na área de agricultura, por exemplo, quem está interessado em agricultura tropical são países dos trópicos. Estados Unidos e Europa não se interessam por agricultura nos trópicos, então não citam. Medicina é a área com mais citações, afinal cada caso clínico é motivo de acompanhamento. Todas essas questões precisam ser consideradas.

Logo no começo do governo, Bolsonaro autorizou o uso comercial da base de Alcântara para o lançamento de satélites, mísseis e foguetes dos EUA. O senhor foi presidente da Agência Espacial Brasileira e um entusiasta da base. Como o senhor vê essa concessão aos EUA?

Os Estados Unidos são um exemplo de país que domina a área espacial — talvez com exceção da China, que está avançando. Desses países grandes, o único que está fechado é o Brasil ,porque a França, os EUA e outros não querem que o Brasil entre para esse grupo. E o Brasil simplesmente aceita a condição. O convênio de cessão de gestão de Alcântara inclui uma cláusula que está no texto original e — o Congresso ainda pode recusar — que diz que recursos que forem pagos para lançamentos de artefatos norte-americanos ou de qualquer outro país que tenha tecnologia americana envolvida rendem pagamentos de aluguel ao Brasil, mas o dinheiro não pode ser usado para o desenvolvimento da área espacial brasileira. Essa foi a exigência.

‘Nós admitimos que outro país venha [para a Base de Alcântara], se instale em uma zona excepcional do mundo para lançamentos e ainda faça as regras’.

Em outras palavras: “Eu vou te pagar o dinheiro, mas você não pode usar o pagamento para se desenvolver não. Tem que usar para plantar soja”. É uma atitude de uma subserviência que não existe igual no mundo. Nós admitimos que outro país venha, se instale em uma zona excepcional do mundo para lançamentos e ainda faça as regras. Seria diferente se o Brasil quisesse comprar um equipamento dos Estados Unidos. Por exemplo, existe um grupo de robótica aqui na Coppe da UFRJ que tem convênio com a Marinha e interesse em criar robôs submarinos, mas não temos sensores de alta profundidade no Brasil, então importamos. Quando atingimos mais de mil metros de profundidade, as empresas começaram a questionar os nossos interesses e cortar as vendas. Isso é natural, então o Brasil precisa fabricar seus próprios sensores. Essa fabricação é que não pode ser proibida.

O Brasil se sai muito bem quando precisa tomar as rédeas da situação. Quando descobrimos petróleo em águas profundas, não existia nenhum outro país com esse problema que pudéssemos imitar. Então a Petrobras se reuniu com várias universidades — USP, UFRJ, UFMG — e as contratou. A Coppe teve um papel bastante importante, e resolvemos o problema. É uma prova de que quando a gente precisa a gente resolve. O que eu temo é que na medida em que se interrompe esse avanço essa liderança do Brasil — na exploração de petróleo e em outros assuntos —, a gente comece a perder força. As demandas de pesquisas com as universidades brasileiras começam a cair e nós já tivemos vendas de empresas como a Embraer, que era grande e estimulou muito a pesquisa na área espacial.

Nossa agência espacial deveria ser como a Nasa: uma agência ligada diretamente ao governo com recursos independentes. Nossos lançadores não deveriam ser construídos na Aeronáutica, lá não existe estrutura industrial para fazer isso. Alcântara fica subutilizada com o patamar de instituto que a Agência Espacial Brasileira tem, já que divide o orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia com tantos outros lugares. Por que não se espelhar na Embrapa, que é independente e afiliada ao Ministério da Agricultura? Mas essa decisão cabe ao governo brasileiro. A Espanha escolheu não ter lançadores. A Alemanha não pode ter, então se desenvolveu em outras áreas. A dimensão do Brasil aumenta a necessidade de vigilância sobre o território, monitoração de cercas, de incêndios e da floresta amazônica. Nós deveríamos ter um programa espacial sério. Uma agência espacial para nada? Esse é o meu ponto de vista.

O ex-astronauta Marcos Pontes, atual ministro de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação, é um dos mais discretos do atual governo – o que não deixa de ser um bom sinal. Qual sua impressão do trabalho dele até agora?

Acredito que ele tem o mínimo de consciência do que é preciso para desenvolver um país, por isso não fala o que realmente pensa para não ser demitido imediatamente. O Pontes reforçou que seu ministério é contra a fusão da Capes com o CNPq. Ele não atrapalha, mas também não é uma voz firme. Se tivéssemos no Ministério de Ciência e Tecnologia alguém semelhante ao Weintraub, o ministro da Educação, seria muito pior. Porque ele iria destruir também os centros de pesquisa, como o Inpe, o Inpa da Amazônia, os institutos, e fazer várias modificações. A área da educação está sendo muito mais destruída do que a área de apoio do CNPq, por exemplo, dos institutos ligados ao ministério.

Jair Bolsonaro ao lado de Abraham Weintraub, durante cerimônia de lançamento da ID Estudantil

O presidente Jair Bolsonaro ao lado de Abraham Weintraub. Para o ministro da Educação – professor licenciado da Universidade Federal de São Paulo, a Unifesp –, as universidades brasileiras são irrelevantes.

Luiz Bevilacqua

Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Críticos dizem que Pontes, após se tornar o primeiro astronauta brasileiro com financiamento público, virou as costas para o sistema que o fez chegar aonde chegou e foi ganhar dinheiro como palestrante e até garoto-propaganda de travesseiros. O senhor concorda com a crítica?

O Pontes teve uma carreira bem sucedida até fazer sua viagem como astronauta. Depois ele submergiu um pouco, foi cuidar da vida dele, saiu da Aeronáutica. Aí começou a agenda dele de divulgador de ciência, com palestras e aparições em eventos. Ele conhece a área, mas nunca teve grandes produções científicas. Eu vejo o cargo de ministro como um pouco de recuperação na imagem dele. Não estou dizendo que o Marcos Pontes é um excelente ministro, mas que ele procura manter as coisas com o mínimo de condições de sobrevivência. Acho que estamos chegando a um nível tão baixo que não adianta mais, ele vai precisar mostrar seu caráter.

Eu estive no comitê que escolheu o Ricardo Galvão como diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Ele é um pesquisador de altíssimo nível, e professor da USP também. O Galvão foi acusado indevidamente pelo presidente Bolsonaro de divulgar dados falsos sobre o desmatamento na Amazônia. O ministro Ricardo Salles — do Meio Ambiente — disse que o Galvão “não sabia do que estava falando”. E o Marcos Pontes simplesmente ficou quieto enquanto o Ricardo Galvão foi exonerado. Se o Inpe faz parte do Ministério de Ciência e Tecnologia, na minha opinião, o Marcos Pontes deveria ter não só recusado a demissão do Galvão, mas ameaçado deixar o próprio cargo. Isso ele não faz.

O MEC está vendendo o programa Future-se como uma panaceia para o ensino superior público, mas ele é criticado por uma grande parcela da comunidade acadêmica. O que o senhor acha do programa?

‘O Future-se tem alguns pontos consideráveis mas, essencialmente, não contribui para a educação e pesquisa brasileiras’.

O nome correto é “Atrase-se”. O Future-se tem alguns pontos consideráveis mas, essencialmente, não contribui para a educação e pesquisa brasileiras. Os questionamentos deveriam ser outros: qual é o novo projeto de educação superior que o Brasil tem? As disciplinas atuais valem ainda? Cabe ao ministério oferecer condições para que as universidades possam admitir os estudantes independentemente da escolha do curso. Nós estamos formando profissionais ou cidadãos? Eu estudei engenharia há 60 anos, tive quatro semestres das disciplinas de cálculo, física e química. Hoje, o conteúdo continua o mesmo. Não é possível! O sujeito que ingressa em um curso de engenharia precisa saber que existem humanidades, política, relações internacionais, e ser educado para exercer a liberdade de pensamento. Isso é experimentar a universidade, e não a escola do próprio curso.

Os críticos do Future-se temem pela sobrevivência das universidades do interior, em especial a das federais mais recentes, ainda sem tradição acadêmica ou verba para criarem programas atrativos para investidores. O senhor concorda?

Eles têm muita razão. O que está acontecendo nas universidades menores é um exemplo sobre como alinhar todas as instituições ao pensamento único do Ministério da Educação, é um caminho desastroso. A formação dos estudantes é a verdadeira prioridade, mas o governo federal não está interessado na independência intelectual. Pelo contrário, hoje vemos que o governo define quem dirige as universidades, quais serão as regras e até mesmo o que não deve ser ensinado.

Não é só a educação pública que é deficiente no Brasil. As notas do Pisa, divulgadas recentemente, também colocam o sistema privado na berlinda: os estudantes brasileiros mais ricos tiveram performance em leitura pior que pobres de outros países. Como reverter esse fracasso? Isso é factível, a médio prazo?

‘É preciso substituir o “vejam como o Brasil é ruim” pelo fato: nós promovemos a ruína da nossa educação’.

Quando eu era universitário, alguns dos meus professores da Escola de Engenharia também lecionavam no Colégio Pedro II e no Instituto de Educação. A qualidade da formação dos docentes associada aos salários pagos refletiu no desempenho dos alunos. Esse é um exemplo do ensino federal, mas a solução da educação básica brasileira é uma tarefa que cabe mais aos municípios e estados. Vimos essa mudança acontecer no Ceará, e agora no Maranhão também. Esses estados estão priorizando a educação nos níveis fundamental e médio. O discurso de desqualificar o Brasil começa aqui, com professores trabalhando em tempo parcial. A qualidade do ensino e da pesquisa caem, então é preciso substituir o “vejam como o Brasil é ruim” pelo fato: nós promovemos a ruína da nossa educação.

Com as universidades sob o ataque a que estão submetidas, é o momento adequado para discutir mudanças no modo de funcionamento delas? Ou o momento é de cerrar fileiras e tentar evitar que sejam cooptadas ou colocadas de joelhos por um governo de viés autoritário?

Nós estamos mais do que atrasados para revisar nosso sistema educacional. É uma oportunidade para a comunidade acadêmica fazer uma autocrítica. Tudo começa no verdadeiro sentido de universidade e no estímulo ao pensamento. Ainda há tempo de valorizar as nossas pesquisas e encerrar o ditado “se não for jabuticaba e só der no Brasil, então é algo ruim”. Duas instituições — a CAPES e o CNPq, que estão passando por um processo de fusão — não são suficientes para sustentar toda a ciência de um país. Não podemos nos reduzir dessa forma.

O senhor é um crítico do atual modelo de funcionamento dos cursos superiores no Brasil, que considera estanques, ultrapassados. Por quê? Em sua avaliação, então, o modelo atual de universidade não se sustenta?

Porque o mundo mudou muito rapidamente. As universidades seguiram uma trajetória muito lenta com relação a atualização da formação no ensino superior. Há uns 60 anos atrás, as universidades andavam relativamente lentas com relação ao ensino porque as necessidades eram também compatíveis. Hoje, tudo acontece muito mais depressa. Por exemplo, um estudante que se formou há oito anos não sabia o que é uma impressora 3D. E, no entanto, ele tem que lidar com esses tipos de equipamentos atualmente. Toda a parte de informatização, computação, avança muito rapidamente.

É impossível formar um estudante e dizer que ele está preparado para o mundo do jeito que ele está sendo formado hoje. Não está. As universidades precisam ser muito mais ágeis na reformulação e na adaptação do currículo, isso é um ponto. O segundo ponto é uma tradição brasileira muito ruim com relação à universidade. Na realidade, nós não temos universidades [frisa a palavra]. Temos muito poucas universidades. Para dar um exemplo bastante concreto dessa afirmação: os estudantes, quando fazem o vestibular, não fazem para a universidade. Fazem para um departamento, para um curso. Quem vai para a UFRJ, entra para engenharia, medicina, direito, comunicação, economia. Ele não entra para a UFRJ como um todo. Assim também são a USP, UERJ, Unirio…, todas elas são assim.

Faltou essa essa concepção de universidade que congrega vários conhecimentos. Isso tem uma tradição antiga porque as primeiras escolas que foram se formando aqui foram de engenharia, direito e medicina, todas com funcionamento separado.

O senhor já defendeu que “todas as universidades deveriam ser estaduais”. Por quê? O que quer dizer com isso, exatamente?

Bom, isso aí é muito discutível. No momento, dada a situação de administração que a gente tem hoje de governo, é muito complicado. Eu acho que essa seria a melhor situação do Brasil porque o país é muito grande. Nós imitamos um pouco os Estados Unidos até certo ponto, afinal as soluções que eles encontraram lá levam em consideração as dimensões do país e a diversidade da população. Cada região do Brasil tem uma cultura própria e necessidades específicas. Isso não pode ser colocado dentro de um único modelo federal.

‘A coisa mais importante que existe numa universidade e que não está bem resolvida no Brasil é dar oportunidade aos estudantes de fazerem suas próprias escolhas’.

Deveria haver regras para padronizar algumas temáticas em nível nacional, e isso daria muito mais autonomia para os estados atuarem no seu campo mais adequado. A coisa mais importante que existe numa universidade e que não está bem resolvida no Brasil é dar oportunidade aos estudantes de fazerem suas próprias escolhas. Para eles andarem com suas próprias pernas, sem colocá-los em grades curriculares. As universidades do Norte têm necessidades e contextos regionais muito diferentes das do Sul e Sudeste, mas o currículo obrigatório para o país inteiro dificulta. Isso é muito ruim aqui no Brasil, todo mundo ter que pensar igual. Não pode ser assim. Outro erro é enxergar a universidade como um lugar onde apenas se ensina. A universidade é o lugar onde todos aprendem: professores, estudantes, funcionários. O processo é contínuo.

Em 2019 vimos um encolhimento imenso tanto no número de bolsas para mestrado e doutorado da Capes quanto nos programas de extensão no exterior para pesquisadores brasileiros apoiados pelo governo. Como isso impacta a ciência no Brasil?

É difícil avaliar o impacto agora, porque isso leva tempo. Por enquanto, vários dos estudantes que vão para o exterior se formar têm a expectativa de não voltar mais para o Brasil porque não há esperanças por aqui, pelo menos a curto prazo. As expectativas deles em relação ao desenvolvimento de ciência no Brasil são muito baixas. Isso tem tudo a ver com a postura autodestrutiva do próprio Ministério da Educação. “Os professores são zebras gordas”. “A ciência no Brasil é muito ruim, não avança”.

Os pesquisadores mais talentosos vão ficar no exterior mesmo porque esse mercado está aberto, a princípio. Sem prestígio e recursos do nosso governo, acredito que a produção científica vai diminuir a médio prazo. Existe um estímulo a redução do tempo que os professores dedicam a atividades de pesquisa das universidades. Daqui a uns três ou quatro anos, os efeitos serão nítidos. Ainda podemos recuperar se retornarmos a um governo racional.