O barato do Vapor Barato de Jards Macalé e Waly Salomão

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Ói nois aqui, traveiz, como diziam Alvarenga e Ranchinho. De novo, trazendo mais um gostoso capítulo da coletânea do pesquisador, artista multimídia, Ruy Godinho, “Então, foi Assim?”, que conta como belas músicas foram feitas.

Aqui, Jards Macalé e Waly Salomão sobre como compuseram Vapor Barato. Os dois eram apontados como “malditos” por uma mídia que não os divulgava como mereciam.  E, por isso, vejam só, por serem menosprezados, eram nomeados como “malditos”. “Santa hipocrisia, Batman”, diria o Robin do seriado televisivo.




Bom, mas chega de falar da maldita grande mídia e vamos falar dos benditos Jarsds e Waly. Ação, Ruy Godinho!  (WLA).

 

VAPOR BARATO

 

Vapor barato é a composição de maior sucesso dos “malditos” Jards Macalé[1] e Waly Salomão[2], que assinaram juntos, entre outras, Anjo exterminado, Mal secreto, Negra melodia, Rua Real Grandeza e O senhor dos sábados.

 

Cabe aqui contextualizar, principalmente para os mais jovens, que o rótulo “maldito” não é uma ofensa ou uma classificação pejorativa aos dois compositores. O termo foi cunhado pela grande mídia nos anos de 1960 e 1970 para referir-se aos artistas anticonvencionais, responsáveis por uma obra instigante, pouco compreendida, notabilizada pelo experimentalismo, pela estética ousada e, por isso mesmo, anticomercial – porém cult.

 

Os festivais de música desse período quase sempre reservaram espaços para os “malditos” realizarem suas apresentações fora dos padrões normais, até como forma de garantir o espetáculo. Sérgio Ricardo, por exemplo, ficou mais marcado pela reação de quebrar seu violão e jogá-lo contra a plateia que o vaiava, no Festival da Tevê Record, de 1967, do que pela canção Beto bom de bola que tentava entoar naquele momento. Tanto que, nas entrevistas posteriores ao evento, os interlocutores, invariavelmente, se referiam ao gesto e não à música.

 

Jards Macalé deixou o público e os jurados atônitos com a instigante Gotham city (com Capinan), no IV Festival Internacional da Canção (FIC – Tevê Globo, 1969). Vestido em uma túnica exótica, recebia vaias enquanto alertava a todos com a letra da canção: Cuidado/há um morcego na porta principal/cuidado/há um abismo na porta principal. A surpreendente participação projetou o nome de Macalé como um dos músicos mais renovadores do país.

 

Walter Franco também é assim considerado. Quando colocou a cabeça a prêmio no VII FIC (Tevê Globo, 1972), causou uma das maiores polêmicas de todos os festivais. Cabeça, sua composição de letra estranha, recursos eletrônicos inéditos na música brasileira, sofisticada, experimental e diferente de tudo que até o momento havia sido apresentado, foi aplaudida pelos jurados, mas vaiada por cerca de quatro mil pessoas da plateia.

 

O júri, simpático à sua classificação, era presidido por Nara Leão, que foi destituída do cargo por exigência dos militares, pelas críticas à ditadura atribuídas a ela. Júri trocado, resultado mudado. E lá se foi Cabeça para o limbo, diante de um Walter Franco zen, impassível, calmo. Comportou-se inspirado em letra de outra canção, Coração tranquilo, também dele: tudo é uma questão de manter/a mente quieta/a espinha ereta...

 

Além dos já citados, também foram/são considerados “malditos”: Sérgio Sampaio, Jorge Mautner, Luiz Melodia, Tom Zé, Itamar Assumpção e outros artistas que se mantiveram fiéis à linguagem.

 

O multimídia Waly Salomão, parceiro de Caetano Veloso (Mel e A voz de uma pessoa vitoriosa), de Adriana Calcanhoto (A fábrica do poema), de Lulu Santos (Assaltaram a gramática), de João Bosco e Antônio Cícero (Sábios costumam mentir, Zona de fronteira e Memórias da pele), também foi uma figura importante da contracultura no Brasil, nos anos de 1970. Atuou em diversas áreas e em todas imprimindo a sua genialidade. Foi poeta, compositor, escritor, produtor musical, ator e até gestor público na Secretaria de Livros e Leitura, do Ministério da Cultura, a convite do então ministro Gilberto Gil.

 

Salomão dizia: “Tento fazer com que minha cabeça, meu coração, minhas vísceras não se comprimam numa visão dogmática. Pretendo ser o homem dos múltiplos caminhos, heterodoxo. Eu amo o que não sou. Tenho fome de me tornar tudo o que não sou”.

 

A fome de se tornar parceiro de Macalé ele saciou em 1969.“Eu conheci o Waly depois de conhecer os baianos todos. Ele foi de quem mais eu me aproximei”, relembra Macalé[3]. “Era poeta, uma pessoa inquieta, vigorosa, criativa, sempre imaginativa. Ele era muito instigador. Nós fizemos uma primeira música chamada Anjo exterminado.

 

Quando eu fui gravar o elepê Aprender a Nadar, ele propôs que a gente criasse uma coisa a que ele deu o nome de Morbeza Romântica, que eram canções que exacerbavam na dor da relação apaixonada. E nós fizemos quatro músicas que ele deu esse nome. Assim como tinha a Bossa Nova, o Cinema Novo, tinha que ter a Morbeza Romântica, como a marca de algumas canções.”

 

Waly queria retratar a morbidez, a dor das paixões, porém com beleza. Se não conseguiu transformar a intenção em um movimento musical, pelo menos convenceu Macalé a soltar a sua inconfundível voz rouca.

 

“Eu era muito tímido pra cantar porque eu era mais instrumentista, no caso violonista. E ele me incitava: ‘Você tem que cantar, assumir o canto, botar essa voz rouca pra frente, abrir o peito’! Aí eu perdi um pouco o pudor de me expor cantando”, revela Macalé.

 

Remodelar-se, esta seria a principal fórmula para a autotransformação apregoada por Waly. “Meu pai tinha morrido. Meu irmão mais velho e a minha mãe sonhavam pra mim uma carreira de advogado de província, na Bahia”, afirma Waly Salomão a Carlos Nader no documentário Pan Cinema Permanente [Já Filmes, 2008]. “Eu fui estudar em Salvador. Acabei de me formar, não fui nem pegar o canudo, o diploma. Com uma mão na frente e outra atrás eu me joguei pro Rio de Janeiro, sem nada. Sem grana, sem coisa nenhuma. Você tinha que se remodelar como identidade, para se reconstruir.”

 

A máxima apregoa que ou se aprende com o amor ou com a dor. No caso especial de Waly, a gota d’água de sua transformação teria a contribuição da dor, por intermédio de um acontecimento aparentemente banal, se não estivéssemos vivendo os horrores da ditadura militar.

 

“Eu tinha sempre a veleidade, a vontade muito grande, desde garoto, de ser escritor e sempre me achava inadequado para aquela tarefa. Precisou, no início dos anos de 1970, eu ter uma descida do poeta ao inferno. Numa pequena blitz, na avenida São Luís, São Paulo, eu fui apanhado com uma porção de fumo.

 

E nessa casa de detenção, que é o famigerado Carandiru, eu fiz um texto chamado Apontamentos do Pav 2. O fato de eu ter sido encarcerado, ver o sol quadrado, aquilo foi uma concentração até espacial do meu desejo. E eu consegui fazer o meu primeiro texto, conseguiu jorrar daqui de dentro. Quer dizer, o que era prisão virou liberação de forças.”

 

Macalé lembra da prisão e complementa com aspectos da criação da música. “O Waly foi preso em São Paulo com uma bagana dentro do bolso. A gente vivia como hippies, com aquela vestimenta meio pobre, meio estilosa. Quando saiu da prisão, foi morar em Niterói porque estava paranoico com as grandes cidades. E um dia chegou lá a casa com essa letra.

 

O Vapor barato tinha dois sentidos: o vapor do navio e o vapor que é o cara que vende drogas. Porque o vapor do navio era barato mesmo, era baratíssimo. E o barato porque se dizia que [a droga] dava barato, que estava no barato, a onda que dava. Então, tinha esses dois sentidos.”

 

O ‘barato’ ou ‘maior barato’ era uma gíria usual na década de 1960, que significava uma sensação boa, legal, principalmente a proporcionada pelos vapores da cannabis sativa. Macalé prossegue a narrativa.

 

“Falava da história de uma vontade de partir, de sair daquela situação, dos hippies que vão tomar aquele velho navio. Não preciso de muito dinheiro – a gente vivia duro. E utiliza a palavra honey baby por causa dos rocks daquela época. Enfim, era mais isso, a história da precariedade que a gente estava vivendo, o sentido precário vivencial daquele momento. E o Vapor barato, como o Movimento dos barcos, foram músicas de partida, de tentativa de sair de uma situação extremamente desagradável.”

 

Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (1999) acrescentam que Vapor barato dá a ideia do estilo adotado pela dupla. Segundo Waly, era uma letra “direta, frontal, oposta à tendência ‘liricista’ e nebulosa que predominava, dizendo o que era possível naquele momento de desencanto”.

 

Macalé arremata: “Aí eu fui lendo o poema com o violão na mão e em quinze minutos a música estava pronta, ela já existia, basicamente. E o resto, ao cantar, cantar, cantar, ela foi tomando uma forma definitiva”.

 

Vapor barato foi gravado por Gal Costa no álbum duplo Fa-tal, Gal a Todo Vapor (Phonogram, 1971), transformando-se no grande acontecimento musical do verão de 1972, elevando-a à condição de musa e mito sexual da turma que frequentava o píer de Ipanema, local também conhecido como Dunas da Gal ou Dunas do Barato. E logo foi eleita o hino dos hippies.

 

Em 1997, Zeca Baleiro foi o responsável por revitalizar a canção, para a ciência e o desfrute de gerações mais novas que não conheciam a versão original. É ele quem conta[4]:   “Quando eu gravei Flor da pele no meu primeiro disco [Por Onde Andará Stephen Fry, MZA Records, 1997), peguei a voz da Gal, sampleei e disparei na minha gravação ela cantando Vapor barato: Minha honey baby/baby, honey baby/oh, minha honey baby/baby, honey baby… A Fafá, empresária dela na época, foi a um show meu no Rio de Janeiro e disse: ‘A Gal ouviu a sua gravação no rádio e ficou emocionadíssima com a homenagem’. Respondi: ‘Poxa, que legal’! Eu nem a conhecia pessoalmente.

 

Quando foi fazer o Acústico MTV, ela chamou alguns convidados: [Luiz] Melodia, que foi um cara que ela também ajudou a lançar; o Frejat e o Herbert [Vianna] também participaram. Ela queria chamar um cara da nova geração, e o Mazzola, que era produtor do disco dela e que tinha produzido o meu disco, disse: ‘Pô, por que você não chama o Zeca’? Ela achou a ideia interessante e a gente fez um medley com Flor da pele e Vapor barato”.

 

Vapor barato também mereceu os registros de Cida Moreira no LP Summertime (Audio Patrulha/Lira Paulistana, 1981); de O Rappa, no CD Rappa Mundi (Warner Music, 1996); de Gal Costa, no CD Acústico MTV (BMG Ariola, 1997); de Jards Macalé, no CD O Que Eu Faço É Música (Atração, 1998); da banda Vulgue Tolstoi, no CD Impaciência (NetRecords, 2000); pel’O Rappa, de novo, nos CDs Instinto Coletivo – Ao Vivo (Warner Music Brasil, 2001) e O Silêncio Que Precede o Esporro (Warner, 2004), entre outros.

 

O medley a que Zeca se refere tirou Vapor barato das prateleiras empoeiradas e a botou na ordem do dia. Ao mesmo tempo em que projetou Flor da pele e seu autor para boa parte do Brasil.

 

Vapor barato

(Jards Macalé/Waly Salomão)

 

Oh, sim, eu estou tão cansado

Mas não pra dizer

Que eu não acredito mais em você

Com minhas calças vermelhas

Meu casaco de general

Cheio de anéis

Vou descendo por todas as ruas

E vou tomar aquele velho navio

Eu não preciso de muito dinheiro

Graças a Deus

E não me importa, honey

 

Minha honey baby

Baby, honey baby

Oh, minha honey baby

Baby, honey baby

 

Oh, sim, eu estou tão cansado

Mas não pra dizer

Que eu tô indo embora

Talvez eu volte

Um dia eu volto

Mas eu quero esquecê-la, eu preciso

Oh, minha grande

Ah, minha pequena

Oh, minha grande obsessão

 

Oh, minha honey baby

Baby, honey baby

Oh, minha honey baby

Honey baby, honey baby, ah

 

 

[1] Jards Anet da Silva 3/3/1943 Rio de Janeiro/RJ.

[2] Waly Dias Salomão 3/9/1943 Jequié/BA 5/5/2003 Rio de Janeiro/RJ.

[3] Entrevista concedida ao autor em 27/2/2015, no Rio de Janeiro/RJ.

[4] Entrevista concedida ao autor em 4/4/2012, em Brasília/DF.

 

Livros da série “Então, foi Assim?” disponíveis no site: www.entaofoiassim.com.br

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