Por Carla Rodrigues, compartilhado de Projeto Colabora –
As nuances da diferença entre cantada e assédio do ponto de vista da história recente da liberação feminina
Eram os anos 1980 e eu acabara de ser contratada como estagiária numa redação de jornal. Havia lá um colunista famoso por ser mulherengo, termo que por si só já é obsoleto, mas cabia na época. No meu primeiro dia de trabalho, levei uma cantada. Reagi como pude: humor, brincadeira, e fui tocando a vida. Ele frequentava a redação duas vezes por semana e sempre me fazia convites para jantar, que eu recusava. Um dia, esse colunista virou editor chefe do jornal e, ato contínuo, me ligou pra dizer que enquanto estivesse na chefia não me convidaria para sair. Pode-se argumentar que bastava ter parado, não precisava anunciar. Um ano depois, quando deixou o cargo, a primeira coisa que fez foi me ligar e atualizar o convite. Nunca saímos juntos, embora com o tempo tenhamos ficado bons amigos e nos encontrado em situações sociais diversas, nas quais ele sempre reiterava seu interesse sexual em mim. Na mesma redação de jornal, também estagiária, recebi um “recado” de que o chefe de reportagem, a quem cabia a renovação do meu contrato, estava interessado em mim. Recebi um “poema” de amor e uma ameaça de que meu contrato não seria renovado se eu não correspondesse ao interesse dele. Denunciei a ameaça, fiz um teste com outro chefe, e fui aprovada no estágio.
Nos dois episódios, ocorridos no mesmo local de trabalho, haveria a diferença clara entre cantada e assédio, sendo o primeira da ordem da sedução envolvida nas relações heterossexuais – cabendo a cada pessoa envolvida no jogo tomar posições –, e o segundo supondo o uso de uma posição de poder para subjugar alguém. Por exemplo, submeter uma mulher a fazer sexo em troca de um contrato de trabalho. Assédio, nessa concepção, se aproxima do estupro. Num caso a violência é simbólica, no outro, é física e direta. Outra diferença importante é que dificilmente eu poderia acusar o colunista mulherengo de estar cometendo um crime, enquanto o chefe que me ameaçava estava pelo menos abusando de seu poder.
Mas ainda há problemas nessas diferenças, como indicam os debates entre feministas norte-americanas e francesas. Aquilo que entendi como cantada em 1985 hoje também pode ser considerado assédio sexual. Por quê? Há pelo menos duas distinções críticas – aqui no sentido de discriminar, discernir, separar – a fazer: a primeira, estabelecer critérios para tipificar o assédio sexual a ser punido; a segunda, pensar se existem critérios que estabeleçam o que é uma “mera” cantada e se esta deve ser também criminalizada. Se pudermos fazer isso teremos uma nova tarefa, a de separar no tempo o que hoje é entendido como assédio e já foi aceito como galanteio, para usar um termo tão fora de moda como mulherengo.
Um dos motivos que me ajuda a dizer que eu era alvo de uma cantada é o fato de que naquele momento havia uma indevida naturalidade em como os homens dispunham das mulheres. Por “naturalidade” quero dizer que o pacto social de então aceitava que mulheres em espaços públicos ou ambientes de trabalho estavam necessariamente sujeitas a investidas masculinas, reafirmação da herança moderna da separação entre esfera pública – masculina – e esfera privada – feminina. Esses mais de 30 anos que nos separam das minhas pequenas histórias talvez me obriguem a reclassificar a cantada também como assédio, sob o argumento válido de que havia ali uma invasão indevida da minha liberdade de ocupar a esfera pública sem ser importunada por ser uma “jovem mulher bonita”, sintagma que daria o natural direito de me tornar desejável a qualquer homem. Não, não dá, e me parece que esse é um dos pontos fundamentais no debate contemporâneo.
O direito exclusivo de ocupar o espaço público é uma das origens dos privilégios masculinos em países ocidentais de maneira geral. E aí também pode estar um dos problemas de pensar a diferença entre cantada e assédio sexual em países tão distintos como França, EUA e Brasil. Para além do eterno debate entre feministas francesas e norte-americanas – que em nenhum dos dois casos podem ser estabilizadas em categorias homogêneas –, gostaria de me manter no âmbito da sociedade brasileira, com todas as suas contradições e dificuldades. Jamais fomos modernos, não conseguimos ainda formalizar relações sociais que não passem pela cordialidade, pelos laços familiares, pelos sobrenomes, pelos favores pessoais. Estamos ainda muito distantes da universalidade formal e abstrata nascida em berço franco-alemão no século XVIII. Desde os mesmos anos 1980, fomos nos tornando uma sociedade menos desigual em termos de gênero. Embora ainda faltem muitas conquistas, é óbvio que o ingresso de mulheres na universidade e no mercado de trabalho – antes exclusividade masculina, menos para funções subalternas ocupadas por mulheres pobres e negras – mudaram a cara do espaço público, mas as práticas dos favores pessoais e dos pequenos poderes continuam as mesmas.
Para as mulheres brasileiras haveria, então, uma dupla tarefa, como na minha pequena história: enfrentar a cantada, fruto do comportamento machista que toma sua presença como pronta disponibilidade para o sexo; e combater o assédio sexual e moral, esse que subjuga e impede o acesso a posições sociais e públicas por critérios universais como competência ou talento. E hoje, para muitas correntes feministas, há também uma dupla tarefa: separar o machismo do assédio sexual, confrontando o primeiro no campo da cultura e levando o segundo para a ordem jurídica. É talvez aqui que estejamos falhando, ao misturar o machismo estrutural da sociedade brasileira com os inaceitáveis crimes de assédio sexual que comprometem trajetórias profissionais e pessoais.
Se é verdade que essa seria a nossa grande dificuldade, me parece que há um motivo e tanto. A plasticidade do machismo brasileiro faz com que estejamos sempre às voltas com as mesmas pautas – fim da violência contra a mulher, descriminalização do aborto, salários iguais –, enquanto os crimes de estupro não se reduzem e o feminicídio tem índices alarmantes. Nesse caldo cultural de misoginia, o assédio sexual parece ser o crime perfeito a ser combatido, porque se apresenta como a porta de entrada para tudo que virá de pior depois. Seria preciso lembrar que na recente campanha #meuprimeiroassedio, uma imensa maioria de depoimentos se referia a abusos sexuais ocorridos no ambiente doméstico. Ainda assim, usar o assédio como “a porta aberta” para outros crimes contra as mulheres tem dificultado o combate ao assédio sexual tal qual ele é, de certa forma deturpando a luta contra o assédio, já que, tratado como machismo ou como estupro, acaba não sendo punido ou, o que é pior, a punição de um assediador individualmente torna-se o símbolo de uma grande vitória.
Enfiadas nessa situação paradoxal, precisamos continuar afirmando que assédio sexual é crime, estupro é crime, assassinato de mulheres é crime, e todos são perpetuados pelo machismo arcaico da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, parece necessário também não ceder a pelo menos duas tentações. A primeira armadilha tem sido partir para um punitivismo absoluto, individual e persecutório, incapaz de contribuir para a formalização abstrata das relações sociais; a segunda armadilha é a da vitimização. Somos filhas, netas e a esta altura bisnetas de feministas de diferentes correntes que nos trouxeram até aqui em lutas e resistências que não podem ser apagadas das nossas histórias, mas que não se encerram aqui. Há feminismos jovens, transfeminismos, feminismos negros, e cada um desses grupos é mais ou menos sensível ao tema do assédio sexual de um modo. Por isso acho importante reafirmar sempre que nem todas as mulheres são coitadinhas indefesas diante de homens maus. Se quisermos nos defender assim, não poderemos avançar em direção a modos de regulação das relações sociais para além do jogo pessoal de poder no qual homens submetem mulheres, brancos submetem negros, ricos submetem pobres e etc.
Por que, para resistir, primeiro teríamos que aceitar o lugar de vulnerável no qual o machismo pretende nos manter? Esta é a primeira das revoluções: recusar aquilo que os homens dizem que nós somos, reverter os termos pejorativos, como já fizeram as jovens da Marcha das Vadias, por exemplo, ou como estão fazendo as que se autodenomimam “mulheres pretas” e fazem daquilo que seria uma discriminação, um orgulho. Autonomia, tal qual definida pelos iluministas franceses no século XVIII, é a capacidade de autogoverno de si, o que desde Freud passou a incluir tornar-se sujeito do próprio desejo ao invés de estar sujeita ao desejo do outro. A autonomia é a primeira barreira, o primeiro limite, é o que estabelece o primeiro não a ser dito. Apenas a partir daí poderemos dizer não aos galanteios, às cantadas, ao assédio, ao estupro, ao assassinato, à proibição do aborto, e ao domínio dos nossos corpos.