Sete mil dólares: esse é o custo para retirar uma pessoa da Faixa de Gaza, com vida, na cotação atual.
Por Roberto Kaz, compartilhado de The Intercept Brasil
No atacado, o preço de cada ser humano sai mais barato: 35 mil dólares por família, pago a uma empresa de “turismo” que já cuidava de transportar pessoas entre o Egito e a Palestina antes de a guerra começar.
O transporte já custou bem menos: 1,2 mil dólares por pessoa. Hoje, em meio ao massacre cometido por Israel contra a população de Gaza, o custo para sair vivo inflacionou em cinco vezes.
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“É isso que a guerra faz”, me disse a jornalista brasileira Marina Darmaros, que está tentando tirar a família de Gaza. “Transforma a vida em mercadoria. É horrível falar assim, mas estou tentando comprar sete vidas, de sete parentes que eu amo”.
Darmaros tem 40 anos e é de São Paulo, mas passou grande parte de sua vida profissional em Moscou. “Meu avô veio para o Brasil por volta de 1920, e eu nunca descobri direito se ele havia nascido na Ucrânia ou na Rússia. Essa curiosidade acabou me levando para lá”, ela me contou.
Fez mestrado e doutorado na Universidade de Moscou e acabou virando referência na imprensa brasileira quando o assunto é Rússia. Assinou reportagens nos canais Globo e GloboNews e também nos jornais Folha de S.Paulo, O Globo e na revista piauí.
Foi no período na Rússia que Darmaros conheceu Wissam Moukayed, um homem sírio que havia chegado ao país com um visto de turista, na esperança de escapar da ditadura de Bashar al-Assad.
Moukayed trabalhou dirigindo táxi enquanto estudava para também se formar em jornalismo. Juntos, os dois tiveram um filho, Farouk, hoje com 10 anos.
A cunhada de Damaros, Hanan, é casada há mais de três décadas com o palestino Khairi Ghazal. Os seis filhos do casal – e portanto, sobrinhos de Darmaros – nasceram e foram criados na cidade de Gaza.
‘Se eu pudesse pagar pra tirar cada palestino, eu pagaria.’
A mais velha, Yara, tem 28 anos e trabalhava, até o começo da guerra, como dentista. Hoje sutura feridos, de maneira improvisada, no Hospital Europeu de Khan Yunes. A mais nova, Hala, tem 13 anos.
Todos moravam juntos, no mesmo edifício, até 8 de outubro do ano passado. Naquele dia – o seguinte ao atentado terrorista do Hamas –, o prédio de cinco andares em que vivia a família foi bombardeado, junto com centenas de outros alvos, por Israel.
Desde então, Darmaros e o marido tentam desesperadamente trazer a família ao Brasil. Em fevereiro, Farouk, o filho, gravou um vídeo, enviado ao presidente Lula, pedindo que o governo brasileiro o ajudasse a resgatar seus primos e tios.
Já Darmaros enviou uma carta escrita à mão para Lula e outra para seu assessor especial para assuntos internacionais, Celso Amorim, aproveitando que os dois estavam no Egito, em viagem oficial.
“Estamos fazendo de tudo para retirá-los de lá pela fronteira egípcia, e possivelmente trazê-los para o Brasil. Por isso apelamos ao senhor e imploramos que nos ajude, já que se encontra no Egito no momento”, escreveu.
Darmaros também tentou ajuda da embaixada do Brasil na Palestina, sem sucesso. Em paralelo, resolveu fazer um crowdfunding quando ouviu falar que a fronteira com o Egito se abria magicamente para quem tivesse como pagar por isso.
“Para quem me pergunta para onde vai o dinheiro, eu respondo, claramente, que deve ser para propina. É o único jeito, infelizmente. Se eu pudesse pagar para tirar cada palestino, eu pagaria. Mas eu não posso. Soa egoísta, mas essa é a família que eu conheço. É a minha família”.
O acampamento em que a família está alojada em Khan Yunes, ao sul da Faixa de Gaza. Foto: Acervo pessoal.
Família sobrevive à base de água suja e pão em Gaza
No dia do ataque que destruiu o prédio, a família palestina recebeu uma mensagem no celular. “O Exército de Israel informava que eles tinham três minutos para deixar o local”, contou-me Moukayed, em uma conversa por vídeo. “A Yara, minha sobrinha, ainda conseguiu pegar o diploma universitário, mas alguns nem tiveram tempo de pegar o passaporte”.
A família, que morava num apartamento bem cuidado, se mudou então para um único quarto na casa de um parente – casa que também seria bombardeada semanas depois.
Desde então, Hanan, Khairi e cinco dos seus seis filhos dormem na rua, em Khan Yunes, cidade mais ao sul da Faixa de Gaza, onde a família se refugiou. O sexto filho, Abdallah, cursa o último ano de medicina na Rússia.
Bebem água suja fervida e comem pão com o pouco de farinha que é distribuído de forma gratuita. Não há sequer sal ou açúcar.
‘Minha irmã enviou uma mensagem dizendo que gostaria de comer um pedaço de carne ou uma maçã antes que fosse morta.’
“Duas semanas atrás, minha irmã enviou uma mensagem muito triste, dizendo que não tinha medo da morte, mas que gostaria de comer um pedaço de carne ou uma maçã antes que fosse morta”, relatou Moukayed, emocionado. “Ela também disse que um dos meus sobrinhos estava com dor no estômago, de não ter nada para comer além de pão”.
A família tem dois celulares: um que permanece com Yara, em função do trabalho no hospital, e outro que é dividido entre os demais. Moukayed fala com seus parentes uma ou duas vezes por semana, quando alguém consegue acesso a um sinal de Wi-Fi .
No começo de fevereiro, a sobrinha Leen, de 25 anos, escreveu, desesperada, uma mensagem depois traduzida por Moukayed para o inglês, num áudio enviado ao Intercept Brasil:
“Eles estão bombardeando muito aqui em Khan Yunis [cidade no sul de Gaza, onde está a família]. Acabei de sair do hospital, há corpos na rua e dentro dos carros. Estou tão assustada, não consigo sequer ficar de pé”, ela narrou.
Uma semana depois, ainda no começo de fevereiro, foi a vez de Hanan, a irmã de Moukayed, escrever uma mensagem de desabafo:
Muitas vezes, sinto-me como se estivesse numa grande prisão ou numa vala comum por causa dos sonhos e do futuro. Alguns dos meus irmãos, não vejo há 30 anos, devido à situação difícil ou ao fechamento das fronteiras. Nesta vida dura, concentrei-me nos meus seis filhos. Lutei para dar-lhes a melhor educação.
Concluí a graduação universitária. Tenho duas filhas médicas – uma é clínica geral, e a outra é dentista –, um formado em engenharia de software e outro que está no primeiro ano de programação. Hala e Aida ainda estão na escola.
A guerra chegou. Desde o primeiro dia levou minha casa, com todos os detalhes que coloquei nela, e todos os sonhos. De repente, me vi na rua sem roupas, alguns de nós sem sapatos.
Atualmente, estamos dormindo nas tendas do Hospital Europeu. Temos pouco acesso à internet. Centenas de crianças, feridos e mortos são transferidos do pronto-socorro para o cemitério, que também fica próximo da nossa região. Seria necessário que alguém escrevesse um livro sobre isso.
Ainda me apego ao sonho de ver meus filhos em uma realidade melhor que esta, completando a educação e servindo à humanidade. É o que recomendo a eles diariamente. Uma pessoa merece viver dignamente independentemente de sua religião, cor ou filiação.
“A Palestina não é um país, é uma prisão”, disse Moukayed. “A vida lá é como num jogo, em que Israel vai controlando seus passos, determinando para onde você vai, a partir dos lugares que são bombardeados”.
Segundo a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina – UNRWA, na sigla em inglês–, 85% da população da Faixa de Gaza precisou abandonar suas casas desde o início do genocídio.
Marina Darmaros e Wissam Moukayed estiveram em Gaza em 2013 para visitar os familiares e gravar um documentário. Entraram e saíram ilegalmente, por um túnel, a partir da cidade de Rafah, no Egito, já que a fronteira oficial com o país estava fechada, devido à crise política decorrida da queda do então presidente egípcio Mohamed Morsi.
“O túnel partia de dentro de uma casa”, contou Darmaros. “Era bem iluminado, com estrutura de madeira dos lados, e um pouco baixo; foi preciso caminhar com as costas curvadas”.
A travessia durava cerca de meia hora. Hoje, todos os túneis estão desativados, após serem inundados por Israel. Só se entra e sai da Faixa de Gaza pelas fronteiras com Israel e com o Egito – mas ambas estão fechadas.
Por isso, Moukayed disse ter se surpreendido quando Yara lhe contou, semanas atrás, que uma família de conhecidos conseguira cruzar a fronteira com o Egito. “Isso já era difícil de se fazer quando não havia guerra, imagina agora”, ele explicou.
Desde então, Moukayed e sua família têm falado com três atravessadores. Foi assim que souberam da cotação: 7 mil dólares por adulto, 3 mil dólares por criança. O “pacote” para toda a família sai a 35 mil dólares.
A ideia, num primeiro momento, é que a família passe a viver com uma irmã de Moukayed, que mora no Cairo, capital do Egito.
“A família Ghazal está buscando fugir da guerra em seu pior momento. Mas evacuar tornou-se uma missão muito difícil: não há voos saindo daquelas cercanias e é necessário atravessar a fronteira da cidade de Rafah palestina (em Gaza) para a cidade homônima de Rafah no Egito”, diz o texto da campanha, colocado no ar no início de fevereiro.
“A Palestina não é um país, é uma prisão”
“Infelizmente, o Egito não permite a entrada em seu território dos cidadãos palestinos, que estão sob fogo constante, e a única maneira de atravessar a fronteira para um local seguro é sob o pagamento de taxas exorbitantes aos oficiais de fronteira”.
Até a publicação desta reportagem, a campanha havia arrecadado apenas mil dólares.
“Eu conheço essas pessoas. Sei como elas são afetuosas, vi o carinho com que a Hanan cuidou do pai até a morte, quando eu estive em Gaza. Então sofro vendo esse sofrimento deles”, disse Darmaros.
“Se esse dinheiro for perdido – e Deus e Marx queiram que não –, vai ser terrível, mas vale o risco. Estou comprando uma vida. Uma não, sete”.