Bom Fim, sem fim

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Por Daniel Pellizzari, Blog IMS – 

Filme sobre um Bom Fim está em cartaz em Porto Alegre e Florianópolis. Para informações atualizadas sobre sessões em outras cidades, os realizadores recomendam consultar a fanpage do documentário.

Ainda tenho o hábito de passar a mão na cicatriz. Fica na cabeça, a meio caminho entre a coroa do crânio e a nuca. A impressão, e tenho certeza que é somente isso, mera impressão subjetiva, é de que a caixa craniana ficou um pouco amassada bem neste ponto. Mas a cicatriz é uma impressão concreta, a impressão que ficou da ferida aberta pelo cassetete do brigadiano (policial militar, em bom gauchês) que em dezembro de 1992 resolveu que minha cabeça era um excelente alvo durante o que entre meus conhecidos da época ganhou o nome de “batalha da Osvaldo Aranha”. Eu tinha 18 anos e um certo Bom Fim terminava.

O recém-lançado documentário Filme sobre um Bom Fim, de Boca Migotto, apresenta com grande competência tudo que veio antes dessa época. A avenida Osvaldo Aranha é a principal via do Bom Fim, um dos bairros mais icônicos de Porto Alegre. Região de várzea que no seculo XIX serviu de abrigo para escravos fugidos, na década de 1920 o bairro começou a receber a comunidade judaica. Nos anos 1960, por conta da (então) proximidade com os prédios dos cursos de ciências humanas da UFRGS, passou a ganhar contornos de boemia, contestação política e efervescência cultural.




Filme sobre um Bom Fim é notável em contextualizar os ingredientes que levaram à explosão criativa ocorrida nos anos 1970 e 1980 em Porto Alegre e que teve o bairro como ponto central. Foi uma época de situações semelhantes em todo o Brasil, avançando dos últimos tempos da ditadura aos primeiros passos da nova democracia. Não era uma inquietação exclusiva de Porto Alegre, mas o que ocorreu no Bom Fim só poderia ter acontecido ali. Mesclando depoimentos de antigos frequentadores do bairro e veteranos da cena cultural porto-alegrense (categorias que naturalmente se misturam) a valiosas cenas de arquivo em filme e vídeo, o documentário demonstra o porquê.

Refletindo uma postura bem porto-alegrense, os depoimentos se equilibram entre automitificação e automenosprezo, pontuados por um questionamento possibilitado apenas pela análise em retrospecto: enquanto as coisas acontecem, não há (ou ao menos não deveria haver) tempo para chafurdar em dúvidas. Da explosão do audiovisual nos anos 1970, que revelou entre outros Carlos Gerbase, Giba Assis Brasil e Jorge Furtado, na passagem de década a ascensão se deu na cena musical, dando à luz nos anos 1980 o que se convencionou chamar de “rock gaúcho” – dos Replicantes ao DeFalla – e segue influenciando até hoje músicos em todo o país.

Esse surto criativo era potencializado pela vida noturna do Bom Fim e com ela se confundia. Na Osvaldo se formava uma unidade sinérgica. Punks, carecas, darks, headbangers e gente sem rótulo algum e de diferentes camadas sociais se misturavam nas calçadas e nos bares, ao contrário de outras capitais, onde os territórios pertencentes a cada grupo eram bem demarcados e qualquer transgressão acabava descambando em violência. Essa promiscuidade típica do Bom Fim se mostrou fértil e essencial para o surgimento de uma identidade coletiva, uma sensação de pertencimento que colocou em marcha inúmeros projetos.

Nicotina, Os Replicantes (1985)

Porto Alegre era, e é, a capital conservadora de um estado conservador, que ao mesmo tempo tem uma longa história de enfrentamentos. Daí a necessidade recorrente de tanta hipérbole no discurso, de exageros quase histriônicos, de um certo senso de humor muito específico que é uma espécie de tática de enfrentamento e sobrevivência. Tudo isso também se refletia no Bom Fim, tanto na produção que saía de lá quanto no comportamento dos frequentadores, e a parcela mais tradicional dos moradores do bairro não toleraria a balbúrdia por muito tempo. A repressão policial, presente desde os primeiros tempos, recrudesceu até ser praticamente normalizada como mais um elemento do cenário.

A pressão por um Bom Fim mais família ganhou o ímpeto definitivo quando o proprietário do bar Redenção assassinou um funcionário no próprio estabelecimento. Foi a senha infeliz para a radicalização do processo de desmantelamento. Logo em seguida veio a batalha da Osvaldo Aranha, quando uma briga entre policiais e frequentadores se tornou uma luta campal que se espalhou por toda a avenida. Depois a inevitável e vagarosa derrocada, em paralelo à migração dos frequentadores para outros pontos da cidade.

O documentário se encerra com depoimentos em parte melancólicos, como o jornalista Eduardo “Peninha” Bueno (em chamas, como sempre) denunciando a cena do Bom Fim como uma “fraude” para logo em seguida completar com um significativo “é que poderia ter sido mais”. De diferentes formas, são mencionadas oportunidades perdidas e uma suposta estagnação cultural de Porto Alegre nos anos que se seguiram.

Berlim-Bom Fim, Nei Lisboa (1987)

Mas ao longo dos anos 1990 o Bom Fim, ainda firme na simbiose entre vida noturna, senso de comunidade e inquietação criativa, migrou para as cercanias geográficas: dos bares da rua Garibaldi, ainda no bairro, subindo até a avenida Independência e arredores. A cena que se criou em torno do extinto bar Garagem Hermética (abordada no ótimo livro A Fantástica Fábrica, de Leo Felipe, e que também merece seu próprio documentário) seguiu produzindo música, quadrinhos e cinema em um ritmo vertiginoso, e exportando o resultado para além do Rio Grande do Sul.

Mesmo no finalzinho da década e no começo do novo século, as relações de associação que já começavam a ser regidas pela internet seguiram produtivas e dotadas do espírito bonfinesco que Gerbase define no documentário como “vamos fazer do jeito que dá”. Disso surgiram dentre outros ecos do Bom Fim o fanzine por e-mail Cardosonline e a editora Livros do Mal, e isso para ficar apenas em empreendimentos coletivos dos quais participei. Em um sentido importante era a mesma história, um prolongamento natural, o mesmo desassossego criativo indissociável de um espaço urbano se manifestando de uma forma praticamente negligenciada nas décadas anteriores: a literatura.

Pensando sobre a Porto Alegre de hoje também enxergo certa estagnação cultural em comparação a outros tempos, mas já passei dos 40 e deve ser minha própria miopia agindo. Os anos se acumulam e o olhar tende a se voltar para trás: se deixarmos essa inércia tomar conta não enxergamos o que há de novo ao redor, apenas o que não existe mais. Talvez, como nos anos 1990 e 2000, o mesmo espírito coletivo dos anos de ouro do Bom Fim esteja por trás dos recentes movimentos pela recuperação dos espaços públicos, por uma vida menos bruta na cidade. Talvez seja esta a lacuna sendo preenchida agora, como na última década ocorreu com a literatura. Não sei.

O que eu sei: morei por quase uma década no Bom Fim, entre 2001 e 2010, com breves e arrependidas escapadas. Meu primeiro livro tem um conto dedicado ao bar João. Meus dois filhos nasceram e começaram a vida no bairro. E nada disso foi à toa, e eu sou apenas um. O bairro mudou, assim como Porto Alegre mudou, mas se render ao pessimismo é preguiça.

O Bom Fim pode estar mais pacato, os aluguéis podem ter ficado inacessíveis a estudantes e artistas chinelos (pés-rapados), aquele monumento funerário reluzente em forma de prédio comercial pode ter sido cravado no antigo terreno do cinema Baltimore e do bar João como um atentado à psicogeografia, mas logo ali ao lado a Lancheria do Parque, um dos centros afetivos da cidade e também tema de documentário, segue teimosa no mesmo lugar, sempre lotada*. O Bom Fim não termina.

Para além do memorialismo e do registro histórico, Filme sobre um Bom Fim é precioso ao permitir o reconhecimento de que o Bom Fim como ideia, como cicatriz, apesar de tudo, segue presente em Porto Alegre, continua sendo a cidade por trás da cidade. E eu, como tantos, mesmo longe ainda moro lá.

https://youtu.be/vgTuWoU1gk0

Amigo punk (Graforréia Xilarmônica), hino informal do Bom Fim

* E proporcionando coisas como esta recente despedida coletiva ao garçom mais querido do estabelecimento, que por um dia fez a Osvaldo Aranha voltar aos domingos dos anos 1990. Puro Bom Fim.

Daniel Pellizzari
Daniel Pellizzari é assistente de coordenação do IMS (interino), tradutor literário e escritor, autor de, entre outros, Digam a Satã que o recado foi entendido (2013) e Dedo negro com unha (2005).

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