A agricultura da terra seca

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Por Carla Lencastre, Projeto Colabora – 

Vinícolas chilenas acumulam prêmios e lucros pelo uso sustentável dos recursos

A Viña Montes, uma das mais conhecidas entre as cerca de 20 vinícolas da região, é uma pioneira em dry farming. Foto Carla Lencastre
A Viña Montes, uma das mais conhecidas entre as vinícolas do Vale do Colchagua, é pioneira em dry farming. Foto Carla Lencastre

Os vinhedos da Finca de Apalta estão estressados. É dezembro no Vale do Colchagua. Céu azul, sol forte de verão. Época quente e sem chuvas nesta região central do Chile, a pouco mais de duas horas de carro de Santiago, rumo ao sul. Entre a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico, os vinhedos da Viña Montes não serão irrigados até a colheita das uvas, em março. Nem depois, provavelmente. A terra nos arredores da cidade de Santa Cruz está seca e assim vai continuar até que chova. Às raízes das vinhas só resta se aprofundar no solo em busca de nutrientes.

O meio ambiente e quem gosta de um bom vinho agradecem às videiras estressadas. As uvas são pequenas, mas passam bem. Resultarão em vinhos de qualidade, todos premiados. E enquanto a vindima não chega, os vinhedos formam uma beleza de cenário no Vale de Apalta, um dos subvales de Colchagua, região vinícola das mais importantes do Chile. O estresse local é causado por dry farming, algo como “agricultura em terra seca”, em livre tradução da expressão em inglês. O que quer dizer que a terra cultivada só vê água quando chove. No verão não há chuva na área central do país. Neste início de ano, a seca causou incêndios. Alguns vinhedos foram afetados, mas na região mais turística de Colchagua a situação está sob controle. Pelo menos até agora.




A Viña Montes, uma das mais conhecidas entre as cerca de 20 vinícolas da região, é pioneira em dry farming. Como consequência, nos últimos anos começou a colecionar reconhecimento pelas boas práticas sustentáveis e prêmios em todo o mundo pela qualidade dos vinhos. A Montes surgiu no cenário internacional no início da década de 1990 como uma das primeiras vinícolas chilenas a exportar vinhos de qualidade, com o premiado Alpha Cabernet Sauvignon. Até então o Chile era mais conhecido pela quantidade do que pela qualidade da bebida. Hoje, mais de 90% da produção da Montes, que é 100% chilena, sem parceiros estrangeiros, é exportada para mais de cem países (o Chile é um mercado produtor, mas não consumidor). Com o dry farming a produção diminuiu. Assim como o consumo de água, reduzido em 65%. E a qualidade dos vinhos aumentou.

“As mudanças climáticas são uma realidade e o Chile não é exceção. Seria irresponsabilidade não aprender mais sobre como lidar com a seca. Nós deixamos a natureza fazer o seu trabalho de irrigação através da chuva. As plantas sofreram, principalmente no primeiro ano, quando não produziram uma única uva, mas se adaptaram e não morreram. Hoje, só irrigamos, por gotejamento, se no inverno não houver o mínimo de chuva que determinamos como necessário para os vinhedos”, disse Aurélio Montes, renomado enólogo que foi um dos fundadores e continua à frente da vinícola, à revista britânica “The Drinks Business”.

A moderna propriedade Clos Apalta, uma das três da Viña Lapostolle, tem vinhedos orgânicos com manejo biodinâmico devidamente certificados. Foto Divulgação
A moderna propriedade Clos Apalta, uma das três da Viña Lapostolle, tem vinhedos orgânicos com manejo biodinâmico devidamente certificados. Foto Divulgação

Se for preciso irrigar o vinhedo para mantê-lo vivo, a Montes usa água da chuva recolhida em reservatórios. Sua primeira certificação do Código Nacional de Sustentabilidade veio em 2011, antes de os vinhos dry-farmed serem lançados. Dois anos depois, recebeu a certificação nas três áreas do código chileno: vinícola, vinhedos e desenvolvimento social. Em 2015 conquistou o selo Fair for Life Social & Fair Trade Certification, de responsabilidade social e comércio justo. E desde 2012 a Montes tem também nível A no relatório de sustentabilidade preparado de acordo com a metodologia da Global Reporting Iniciative (GRI), organização internacional independente e sem fins lucrativos.

Os primeiros vinhos Montes Alpha dry-farmed da safra 2012 entraram no mercado há dois anos. Todos são identificados no rótulo, sempre decorado com um anjo, símbolo da vinícola. O Alpha é o mais famoso, premiado e agora dry-farmed. Mas a Montes tem rótulos com uvas cultivadas de maneira tradicional. Por enquanto, é inviável economicamente estender o dry farming aos vinhos mais simples, pois o custo final ficaria muito alto. A vinícola ocupa cerca de 300 hectares com dry farming na Finca de Apalta e, ano passado, começou a testar o método em seus vinhedos de cabernet sauvignon e malbec em Mendoza, na Argentina.

Sustentabilidade além do ‘dry farming’

A Montes se destaca no Vale de Colchagua pela cultura sustentável em todas as fases da produção e pelas linhas modernas da bela sede da vinícola em Apalta, que abre diariamente para visitas. Inaugurada em 2004, a sede abriga imensos tanques de aço e barris de madeira e é cercada de espelhos d’água e jardins. No subsolo fica a adega de barris de carvalho francês, nos quais os Montes Alpha amadurecem. A sala em semicírculo lembra uma capela, e os vinhos descansam ao som de gravações de canto gregoriano.

Um veículo movido a biodiesel, combustível menos poluente, leva turistas para passear por vinhedos de cabernet sauvignon, merlot, cabernet franc, carménère, petit verdot e syrah, este em uma colina que oferece bonita vista panorâmica. Depois da colheita manual, as uvas esmagadas passam de uma área no telhado da sede para cubas de fermentação no andar de baixo. Elas caem pela força da gravidade, sem bombas ou qualquer tipo de manipulação. A distribuição do vinho pelos tonéis de aço ou madeira também é feita pela gravidade. O bagaço é transformado em adubo, e a Montes reduziu em 30% o uso de fertilizantes não orgânicos.

A Finca de Apalta é uma propriedade carbono neutro. Junto à vinícola há uma colina coberta por floresta nativa, e a Montes conserva uma área de 445 hectares. A floresta absorve toda a geração de carbono dos vinhedos e da sede da vinícola. A Montes mede as pegadas de carbono de suas três propriedades chilenas desde 2010, e elas foram reduzidas em 5%.

O bom website da vinícola tem uma área bem completa com dados de sustentabilidade (em espanhol ou inglês) e informações sobre visitas turísticas (em português).

Outros bons exemplos no Vale do Colchagua

Por conta do pioneirismo do dry farming, a Montes é o exemplo mais notável de agricultura sustentável no Vale do Colchagua. Mas a preocupação da indústria de vinhos com o meio ambiente aparece em pelos menos outras duas vinícolas, Lapostolle e Santa Cruz. Ambas utilizam, por exemplo, a força da gravidade no processo de fabricação dos vinhos.

A moderna propriedade Clos Apalta, uma das três da Viña Lapostolle, famosa pela alta qualidade de seus vinhos, tem vinhedos orgânicos com manejo biodinâmico devidamente certificados. A Lapostolle Residence, com apenas quatro quartos, e seu restaurante têm a chancela Relais & Châteaux, um selo de qualidade para hotéis independentes. Como a vizinha Finca Apalta, da Montes, a apenas 3km de distância, a Lapostolle protege 280 hectares de floresta nativa nas colinas. A vinícola não usa fertilizantes não orgânicos e o bagaço das uvas de cabernet sauvignon, petit verdot, merlot e carménère vira adubo. A propriedade tem uma horta, também orgânica, e um apiário. Clos Apalta produz mel há mais de cinco anos.

Alguns rótulos são engarrafados em vasilhames com até 60% de vidro reciclado. O resultado é uma garrafa de vinho 14% mais leve. Já os rótulos e as caixas usam materiais de florestas sustentáveis certificadas. Assim como a Montes, a Lapostolle tem um site dentro do site (em português) para mostrar as práticas sustentáveis da vinícola.

A vinícola Santa Cruz é bem mais nova e, por enquanto, sem grandes vinhos em seu portfólio. Os proprietários compraram em 2003 as terras em Lolol, subvale de Colchagua. Em 2011, começaram a fazer as alterações necessárias para atender aos padrões de sustentabilidade. A Santa Cruz é certificada pelo Código Nacional de Sustentabilidade desde 2013 e funciona como um parque de diversões. A propriedade tem um museu de carros antigos e um teleférico que leva ao topo de uma das colinas onde, além de uma paisagem encantadora, há lhamas e um observatório astronômico. Dos 900 hectares da Santa Cruz, 160 estão ocupados com vinhedos de carménère, cabernet sauvignon, syrah, merlot, malbec e petit verdot.

“A Viña Santa Cruz foi projetada já levando em conta o forte enoturismo na região de Colchagua e os conceitos de sustentabilidade”, conta Hernán Visillac, gerente de produtos da Almacruz, grupo chileno do qual a vinícola faz parte e que tem ainda hotéis e museus.

Desafio climático nos vinhedos

Ao contrário do que possa parecer, o dry farming exige mais cuidados que a agricultura tradicional. A terra, por exemplo, precisa de uma determinada mistura de nutrientes para compensar a falta d’água. As videiras devem ser plantadas espaçadamente, de maneira a tirar o máximo de proveito da umidade do solo ao seu redor, que funciona como uma espécie de esponja. Isso quer dizer que a produção é menor do que em uma área do mesmo tamanho cultivada de modo tradicional.

Além de água, o dry farming economiza a energia que seria gasta no transporte, no bombeamento e nos sistemas de irrigação por microaspersão ou gotejamento. Foto Carla Lencastre
Além de água, o dry farming economiza a energia que seria gasta no transporte, no bombeamento e nos sistemas de irrigação por microaspersão ou gotejamento. Foto Carla Lencastre

As plantações só são regadas quando chove. Mas em certos casos, os vinhedos têm que ser irrigados em algum momento se o inverno for muito seco (mas nunca na primavera ou no verão, quando as uvas estão crescendo), principalmente nos primeiros anos. Além de água, o dry farming economiza a energia que seria gasta no transporte, no bombeamento e nos sistemas de irrigação por microaspersão ou gotejamento.

“Videiras são plantas bem adaptáveis, mas definitivamente há mais trabalho quando se trata de dry farming”, diz a prestigiada revista americana “WineSpectator”.

A técnica é característica de algumas regiões vinícolas em torno do Mar Mediterrâneo, em países como França, Itália e Espanha. Em algumas áreas é até proibido irrigar os vinhedos para não prejudicar a qualidade das uvas. Bem mais recentemente o dry farming reapareceu na Califórnia, estado de terras áridas que na segunda metade século 20 passaram a ser irrigadas para a fruticultura. O retorno ao método antigo foi motivado não apenas pela escassez de chuva no Oeste americano e a economia de água que se faz necessária, mas também porque muitos produtores perceberam que, entre outras frutas, uvas e maçãs dry-farmed são mais saborosas, ainda que menores. E os Estados Unidos não perderam tempo. Já existe por lá um clube de vinhos apenas com rótulos dry-farmed, o Dry Farm Wines.

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