Por Enio Squeff, artista plástico, jornalista e escritor
A morte do violoncelista Antônio Meneses (1957-2024) aos 66 anos, vitimado por um câncer no cérebro, atinge inúmeros brasileiros que o acompanharam em suas apresentações, não só no Brasil. Meneses vivia na Suíça com a mãe de um de seus dois filhos e era professor da Universidade de Berna.
Não se sabe o que farão os suíços e parte dos melômanos bem-informados do mundo inteiro, que tinham no mestre brasileiro um músico consumado, que surpreendeu russos, norte-americanos, alemães, ingleses e franceses, dentre outras nacionalidades, ao vencer os mais conceituados concursos de música clássica do mundo, como o de Munique e de Tchaikovsky, em Moscou. Ou seja, não é novidade que o brasileiro Antônio Meneses foi um dos maiores, senão o maior violoncelista que o Brasil e o mundo já tiveram.
Lembro-me que o entrevistei num almoço no restaurante do hotel em que estava hospedado em São Paulo. Era de uma modéstia inesperada. Quando lhe perguntei sobre os inícios de sua carreira na Europa, ocasião em que ainda muito jovem foi para a Alemanha, não demonstrou pejo algum em contar as histórias de sua origem humilde, filho de um recifense que, além dele, iria fazer de seus irmãos um violista e um violinista.
Contava divertido, que passara muita vergonha com um casaco de couro que trouxera de sua terra. E que cheirava mal, certamente por mal curtido. E o quanto, no entanto, lhe valera ter estudado exaustivamente as sonatas para violoncelo de Bach. Disse que foi graças aos acurados estudos que fizera de Bach, o melhor que obteve nos concursos internacionais a que concorreu. E que lhe valeram a decisão dos exigentes jurados tanto em Munique como em Moscou.
Contou-me uma violinista que tocou num quarteto com Meneses, que seus conhecimentos sobre as arcadas dos instrumentos de cordas, o domínio que ele tinha sobre o repertório camerístico, eram tais que ninguém reclamava ou fazia cara feia quando ele corrigia a viola ou os violinos. Fazia-o com naturalidade, e modéstia, tocando os trechos de cada um, sem praticamente consultar as partituras de qualquer deles.
Tudo era bem-vindo, porque coerente. De repente o quarteto soava com toda a amplidão da música, quer fosse de Beethoven, de Schubert, ou de Villa-Lobos. Era quase um milagre. Tudo se amoldava magnificamente à feição da poética com que o violoncelista induzia os membros do quarteto.
No dia em que conversamos, durante o almoço, não sei se ele sabia que sua grande façanha em Moscou, quando se sagrou o melhor, entre seus pares de outros países, fora comemorado por mim, ignoro se em primeira mão. Algures, quem sabe, um outro contara, no Brasil, entusiasmado, a mesma notícia que nos surpreendeu a todos os que acompanhavam a música de concerto à época.
Mas me contou, quase em tom confessional, o quanto o entusiasmavam os espetáculos operísticos. Diante de minha surpresa, explicou o óbvio: a voz humana, para ele, era o melhor dos instrumentos. E quando ia a certos espetáculos (tinha por costume ir a todas as óperas que pudesse na cidade em que estava para qualquer apresentação individual), aprendia – sim – aprendia certas inflexões, que ele trataria de imprimir com seu arco no violoncelo. Nunca tinha ouvido falar nisso e fiquei estimulado com a ideia.
Mais tarde, como o esperado, enveredamos pela admiração mútua provocada justamente por certos cantores. Mencionou, especificamente, o soprano norte-americana, Jessye Norman, uma afeição mútua, sobre a qual contou de um amigo pianista que, ao contrário dele até então, ouvira (e acompanhara como pianista) a cantora ao vivo, no concurso de Munique. E segredou-me, algo feliz, para confirmar sua quase reverência, o pianista afirmou-lhe que a voz de Jessye Norman, “fazia o chão do palco tremer”.
Quando nos despedimos, inacreditavelmente, fez questão de pagar o almoço. Disse-lhe que era “um absurdo” pois a publicação para o qual eu o entrevistava, garantia o pagamento do almoço para ambos. Cheguei a adverti-lo: “Para com isso, Meneses, por favor, a revista cobrirá qualquer despesa. É de praxe.”
Em vão, Meneses chamou o garçom, assinou a nota e pagou o a refeição.
Conto a história, porque ela chega a ser simplória. Mas não creio que destoasse da personalidade de Antônio Meneses. Fazia parte de sua generosidade que não se dava só com os músicos.
Morreu. Talvez eu devesse repetir o esperado: que sua grande música nos fará falta, muita falta. Mas Antônio Meneses faleceu durante as Olimpíadas. Nunca é demais lembrar que durante os festejos esportivos na antiga Grécia, não era só aos atletas que era dado um galardão, as tais medalhas, mas aos artistas, escultores, e certamente aos músicos, que se confundiam com os poetas.
A Antônio Meneses, de qualquer maneira, ficam as honras que prescindem das Olimpíadas. Lembrar o seu estro inesgotável como intérprete, passa a fazer parte da nossa história e destas olimpíadas artísticas que os grandes intérpretes nos proporcionam. Ela está inscrita em nós, lembrando não só Antônio Meneses, mas Nelson Freire, Roberto Szidon, e outros. São nossos heróis. Arrisco que mais que tudo eles, representam nosso espírito enquanto Nação.
Obrigado por ter nascido brasileiro Antônio Meneses!
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Ilustração capa do post de Enio Squeff: “A Antônio Meneses”, 2024.
42 × 30 cm, tinta acrílica sobre papel canson e lápis.