Por Mário Marona, Facebook –
Lira Neto foi enganado por uma emissora de TV. Deu entrevista e suas declarações foram manipuladas para servir ao propósito de uma pauta cuja intenção ele desconhecia.
Sabe qual é a novidade disso? NENHUMA.
No mundo inteiro, não sei, mas no Brasil é assim que se faz TV e telejornalismo. Sempre foi.
A fonte interrompe seu dia de trabalho, se arruma, se prepara, recebe os jornalistas gentilmente, quando não é levada ao desconforto de encontrá-los em outro local, capricha nos seus argumentos para ser entendida, concede uma entrevista de cinco a dez minutos e, quando assiste ao telejornal, mais tarde, fica chocada ao perceber que, de tudo o que falou, usaram uma frase, curta, incompleta e, não raras vezes, secundária em relação às suas ideias ou, pela maneira como foi editada, até contrária ao que ela realmente pensa.
Por que isto acontece?
Por falta de caráter, mesmo; por abuso e arrogância dos jornalistas; por puro exercício de poder; ou, e aqui cito uma hipótese mais inocente para o jornalista, por causa da síndrome dos 2 minutos, que é o tempo máximo que acham que um VT pode ter antes de causar enfado em quem o assiste, segundo as teorias do telejornalismo, que costumam desconhecer o fato de que assunto bom e tratado com competência pode, sim, segurar a atenção do telespectador.
Lira Neto e seus colegas historiadores foram apenas mais três ou quatro vítimas do jornalismo de televisão praticado no Brasil. A maioria nem tem a quem reclamar.
Eis o artigo de Lira Neto, na Folha:
PRODUTORA E HISTORY ARMARAM TRUQUES
PARA CRIAR SÉRIE SOBRE HISTÓRIA DO PAÍS
Eles não são apenas politicamente incorretos, são também intelectualmente desonestos, eticamente deploráveis.
Meses atrás, fui abordado por um certo Matheus Ruas, diretor e roteirista da produtora Fly, que me disse estar “produzindo um especial sobre história do Brasil” para o History Channel. Queria colher meu depoimento sobre temas relacionados aos livros que escrevi.
Solícito com repórteres e documentaristas que me procuram, disse que poderia recebê-lo dali a alguns dias, em minha casa, para conceder-lhe a entrevista. Após uma troca de e-mails, combinamos a data. Mal podia imaginar que, com isso, estava caindo em sórdida arapuca.
Recebi Matheus na sala de casa. Sem me dar conta, abria gentilmente a porta para uma das situações mais constrangedoras de minha trajetória pessoal e profissional. Mas, isso, só constataria meses depois.
Naquele momento, apenas estranhei a forma com que o entrevistador me pediu para responder às questões: “Nosso público-alvo é alguém com a inteligência do Homer Simpson”, explicitou, referindo-se ao personagem abobalhado de desenho animado, símbolo da idiotia. “Responda como se estivesse falando para ele”, pediu-me.
Disse-lhe que jamais faria isso. Compreendia que estava concedendo uma entrevista para a TV e que, pela natureza do veículo, seria didático. Mas, acrescentei, não costumo confundir didatismo com reforço à estupidez. Com isso em vista, respondi a todas as questões, com paciência e cortesia.
Estupefato, na semana passada, fiquei sabendo que minha fala seria incluída, de modo ardiloso, em uma série intitulada “Guia Politicamente Incorreto”, baseada nos livros do jornalista Leandro Narloch. Se tivesse sido informado disso previamente, não teria concedido a entrevista.
Considero tais livros um desserviço ao público jovem, alvo prioritário deles. São simplórios na argumentação, falaciosos na utilização das fontes, pródigos em promover estereótipos e sedimentar preconceitos contra minorias historicamente marginalizadas.
Imediatamente, tratei de exigir explicações dos responsáveis. Após apelar para o cinismo e tentar dizer que tudo não passara de um “mal-entendido”, o diretor foi desmascarado pelos fatos. Outros entrevistados, como as historiadoras Lilia Schwarcz, Isabel Lustosa e Mary Del Priore, assim como o jornalista Laurentino Gomes, revelaram que tinham sido vítimas da mesma armadilha.
Por e-mail, o diretor prometeu a todos os ludibriados que retiraria as respectivas participações da série. Ao longo da semana, tentei cobrar do executivo da produtora, Tiago Schenk, e da diretora de conteúdo do History, Krishna Mahon, o cumprimento da promessa.
Nenhum dos meus e-mails ou telefonemas obteve retorno. Até o instante em que escrevo este texto, deram-me o silêncio como resposta.
O próprio Narloch sentiu-se compelido a vir a público, pelas redes sociais, para dizer que estava “frustrado” com a história. Afirmou não saber que havíamos sido enganados. Concordava com o pedido dos atingidos para que fossem retiradas as respectivas entrevistas do programa. Contudo, alegou, tudo havia sido feito em nome de promover “um debate elegante sobre temas delicados”.
Quem assistiu aos primeiros episódios constatou que não há elegância ou debate naquilo. A presença e o nome de pesquisadores sérios estão sendo utilizados, na edição, apenas para legitimar e corroborar uma narrativa tendenciosa, “politicamente incorreta”. Por si só, a palavra “guia”, do título, não deixa margem para dúvidas: sugere condução, viés, predefinição de rumo.
Não poderia haver maior confissão de culpa do que o momento no qual o apresentador, um youtuber, Felipe Castanhari, anuncia: “Esta série será baseada no best-seller do Leandro Narloch”.
Em seguida, comenta, como se estivesse falando para os bastidores: “Será que é melhor não falar do Narloch?”. Na imediata sequência, uma imagem de Leandro Narloch aparece em cena, gargalhando, sugerindo escárnio.
Isso não é ser só politicamente incorreto. É demonstrar falha de caráter. Os recursos gráficos irônicos e a edição das falas feitas pelo diretor da série confundem, de propósito, o bom-humor com o deboche, a informação com o entretenimento, o debate de ideias com o polemismo raso. Por meio de linguagem moderninha, vendem velhas ideias.
Em um único momento, pelo menos, houve sinceridade: quando o diretor me disse que o público-alvo deles era o Homer Simpson.
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