A autocrítica de Boaventura de Sousa Santos

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Não é sempre fácil perceber conscientemente que se está a ter comportamentos que antigamente não eram vistos como inapropriados.

Compartilhado de Jornal GGN




‘A luta importante é evitar que essa política siga adiante. A luta urgente é impedir Bolsonaro de continuar no poder’, afirma sociólogo

Ao longo de toda a minha vida pessoal e profissional, ao lado da minha actividade como intelectual, professor e activista, sempre tenho defendido os direitos humanos, sobretudo os direitos das mulheres, dos povos indígenas e das minorias mais desfavorecidas no contexto social, cultural, económico ou qualquer outro.

O fenómeno do machismo, enquanto problema social e interpessoal com profundas raízes no nosso espaço cultural, afecta-nos a todos nós nas nossas relações humanas, em particular quanto mais distantes nos colocamos dos tempos de hoje, em que a sensibilização é maior, mesmo que ainda insuficiente.

Nascido em 1940, sou de uma geração em que comportamentos inapropriados, se não mesmo machistas, quer se trate da convivência ou da linguagem, eram aceites pela sociedade. Não é sempre fácil perceber conscientemente que se está a ter comportamentos que antigamente não eram vistos como inapropriados. Não se trata de justificar comportamentos passados, apenas de verificar algo que pode acontecer e redundar em acções pouco construtivas. Reconheço que em determinados momentos posso ter sido protagonista de alguns desses comportamentos. Nessa medida, lamento que algumas pessoas possam ter sofrido ou sentido desconforto e por isso lhes devo uma retratação.

Este meu reconhecimento de modo algum implica que eu assuma a prática de actos graves que me têm vindo a ser imputados e não deixarei nunca de defender a dignidade e a integridade que fui construindo ao longo de mais de 50 anos de esforço e dedicação. Neste contexto, não poderei eu senão continuar a dedicar todos os meus esforços, para aprofundar a promoção de uma cultura institucional e interpessoal de prevenção, detecção, condenação e eliminação de comportamentos machistas nas suas mais diversas manifestações.

Os intelectuais que, como eu, reconheceram há muito que uma das dimensões da dominação nas sociedades contemporâneas é o heteropatriarcado, têm uma obrigação especial de vigilância, não só epistemológica como também prática, emocional e interpessoal, de não cair em contradição entre o que defendem teoricamente e as suas actuações concretas nas relações interpessoais e institucionais.

Enquanto a cultura feminista não estiver plenamente consolidada, deve ter-se presente que, na esmagadora maioria dos casos, as mulheres não têm encontrado instrumentos institucionais e comunicacionais adequados para apresentar as suas queixas, ver reconhecido o seu sofrimento injusto e obter a reparação que for considerada adequada.

Devemos estar sempre vigilantes, uma vez que a violência contra as mulheres pode manifestar-se de múltiplas formas, pelo que é necessário prosseguir no estudo aprofundado do fenómeno, dos factores que o promovem, dos impactos e das acções para os erradicar. Os casos particularmente graves de violência sexista devem ser rigorosamente identificados e eficazmente punidos pela justiça criminal, com pleno respeito pelo direito de defesa e demais princípios da justiça democrática; os casos menos graves devem ser tratados segundo os princípios da justiça restaurativa que envolvam reconhecimento do sofrimento injusto, iniciativas conjuntas (intermediadas ou não por terceiras partes) de cuidado e de cura. O importante é que da avaliação e decisão de todos os casos a cultura feminista saia reforçada e não enfraquecida.

Como em todos os processos interpessoais há complexidade e excepções, devem ser evitados processos de linchamento e de cancelamento, garantindo os direitos amplamente reconhecidos da justiça democrática. Sempre defendi que, pelo facto de os modos de dominação moderna principais serem, além do heteropatriarcado, o capitalismo e o colonialismo (racialização dos corpos e das culturas ou de práticas que se desviam da cultura eurocêntrica dominante), deve procurar-se uma articulação entre a cultura e as lutas feministas, por um lado, e a cultura e as lutas anticapitalistas e anticolonialistas, por outro.

Se em algum momento não estive à altura do cumprimento e difusão destes princípios ou não fiz tudo o que devia, essa omissão só reforça o meu compromisso de agora, mais do que nunca, os promover e defender.

O meu compromisso futuro é o de ser cada vez mais vigilante de forma a evitar protagonizar ou contribuir, mesmo que involuntariamente, para situações que possam gerar mal-estar ou opressão em qualquer eixo de dominação, com especial atenção ao heteropatriarcado. Não se trata de um compromisso novo, mas antes da sua consolidação através de um processo de maturação e aprendizagem que acentua o dever de ser sociólogo da minha circunstância e de ler o mundo através dos instrumentos de que dispomos em 2023.

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