Por Nirton Venancio, Cineasta, roteirista, poeta, professor de literatura e cinema
Em 10 de dezembro de 1978 Caetano Veloso e sua A Outra Banda da Terra estrearam o show “Muito”, com repertório do disco recém lançado, aquele que tem “Sampa” e na capa o cantor no colo de Dona Canô, “dentro de estrela azulada”, como diz o subtítulo. No começo do ano seguinte partem em turnê pelo país.
Quando desembarcou em Teresina, Caetano logo lembrou de Torquato Neto, que junto com Capinam, eram seus “companheiros naturais” da Tropicália, como relata na semi autobiografia “Verdade Tropical”, de 1997. Desde a morte do poeta, em 1972, que o cantor não voltava à cidade, e nem conseguira chorar. Estava ao lado de Chico Buarque quando recebeu a notícia naquela manhã de 10 de novembro, e estranhou uma “dureza de ânimo, me senti um tanto amargo e triste mas pouco sentimental”.
O pai de Torquato, sr. Heli Nunes, foi visitá-lo no hotel. Já se conheciam do tempo em que ia a Salvador ver o filho, que estudava na mesma escola de Caetano. Estava sozinho, sua esposa, dona Maria Salomé, hospitalizada, e ele queria ver um pouco de Torquato no muito do amigo cantor. “Quando eu o vi, chorei muito, a dureza amarga se desfez”, revela Caetano. Aquele reencontro foi como se o sr. Heli viera lhe dar a notícia sete anos depois, ou como se somente ao ver o pai sem o filho, Caetano se conscientizara que estava também “órfão”, sem o amigo. “Ele ficou me consolando e me levou à casa dele”, lembra, refazendo o percurso.
Na parede da sala tinha muitas fotografias de Torquato. Caetano girava a cabeça e os olhos lentamente, o coração e o tempo profundamente. Sr. Heli olhava o filho no olhar que se iluminava de Caetano. Um silêncio em comunhão umedeceu a ambiente: Caetano chorava, turvava a lágrima nordestina.
Sr. Heli passou a mão paterna em sua cabeça, “não chore tanto”, disse, sereno e amável. Quase com um caminhar suspenso – ali tudo parecia ser nuvem – foi até a cozinha, abriu a geladeira, pegou uma garrafa de cajuína. A bebida que mandava para Torquato em Salvador.
Voltou para a sala na mesma afluência de remanso entre os cômodos. Caetano viu que ele trazia dois copos. Colocou-os sobre a mesa. O líquido cristalino da garrafa dourou o silêncio.
Sr. Heli serviu. Beberam demoradamente, sem nada falarem, eram naquele momento olhares em intacta retina. Sugaram uma saudade a dois.
Quando terminaram, Sr. Heli colocou os copos outra vez sobre a mesa, levantou-se e foi até ao jardim. Caetano atravessa o olhar pela luz da porta e espera, ainda mais só. Sr. Heli volta trazendo uma cor em sua mão e estende a Caetano. “Cada coisa que ele fazia eu chorava mais”, disse sobre aquele homem lindo que lhe dava uma rosa pequenina.
De volta ao hotel, o cantor teve a certeza que apenas a matéria vida era tão fina no gesto de sr. Heli.
A CajuínaMesmo quando choramos ausências, ainda existimos, sem sabermos a que será que se destina.
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Texto para o meu livro em preparação “Crônicas do Olhar”.