Por Saul Leblon, Carta Maior –
O Congresso não é a assembleia da nação. Não a representa. Lutar pelo mandato de Dilma é reconstruir nas ruas a agenda do desenvolvimento e da democracia.
Uma das tarefas cruciais da política –sua própria razão de ser- é captar a totalidade de um momento histórico para daí tirar as consequências teóricas, programáticas e organizativas.
Sem isso a coisa não vai, desanda do entusiasmo à prostração, da mobilização ao cansaço e daí à dispersão.
O golpe de 12 de maio encerra todas as contradições de um ajuntamento no qual a cota de vigarice e corrupção está precificada na elevada resiliência de Eduardo Cunha no ministério interventor.
Moro, Lava Jato, togas foram apenas adereços de mídia do enredo, mas seu verdadeiro lastro histórico não pode ser subestimado.
A virulência, a abrangência do desmonte promovido na institucionalidade econômica e democrática extrapolam o lado caricatural de captação imediata incontornável.
Para que não se subestime o grau de desassombro que a sua superação requer, a compreensão da ruptura enfrentada pelo país exige atenção à encruzilhada estrutural que alimentou e alimenta a fornalha golpista.
A maquinaria do crescimento brasileiro travou.
Um ciclo de expansão liderado pelo consumo chegou ao fim com a saturação do crédito e do endividamento das famílias assalariadas.
Do lado externo, a mais longa e abrangente crise do capitalismo desde 1929, mantém obstruído o canal do crescimento via exportações.
Um novo estirão de expansão do PIB escapa a automatismos de mercado.
Religar a máquina do desenvolvimento na sétima maior economia do planeta requer uma repactuação da sociedade e um reposicionamento estratégico no adverso quadro de uma industrialização declinante, sem que o país tenha atingido o grau de riqueza capaz de prover investimentos, oportunidades e empregos dignos com base apenas no setor de serviços.
É um pouco o que dizia Celso Furtado: contradições históricas nos impõem padrões de consumo e desafios de desenvolvimento de países ricos, sem que tenhamos a riqueza deles para recorrer.
Isso não legitima a rendição à dependência voluntária –de indigência social e sociológica intrínseca– cujo corolário acaba sendo arrochar a população porque o país real não cabe no equilíbrio fiscal.
O Brasil tem desafios gigantescos, mas a economia tem densidade sabida e riqueza acumulada para dar conta de um futuro melhor, desde que bem distribuída.
O país é líder mundial em frentes estratégicas, como a agrícola; concluiu sua urbanização; tem sistemas de saúde, educação e previdências públicas implantados; estrutura tributária montada; dispõe de bancos estatais potentes; seu Estado, apesar das distorções conhecidas, é dotado de esferas de excelência; sua base industrial foi erodida, mas continua superior à média dos emergentes, exceto China; tem o trunfo estratégico de um impulso industrializante precioso condensado no pré-sal e na expertise da Petrobras (cujo desafio financeiro é compensado pela competitividade de custos operacionais reduzidos, fruto de liderança tecnológica mundialmente reconhecida).
O fato de vivermos um divisor histórico do desenvolvimento para o qual não existem respostas prontas, apenas magnifica o papel da democracia, e a urgência de seu salto participativo, nas escolhas que vão modelar o futuro nacional.
Metas, prazos, salvaguardas, concessões e conquistas desdobradas no tempo terão que ser negociadas amplamente para reforçar a margem de manobra da economia e do Estado e desenhar o passo seguinte da nação.
Trata-se de uma operação essencialmente política. Irrealizável sem democracia ativa e Estado indutor.
A obsessão dos detentores da riqueza, desde 2013/14, quando os contornos do impasse se evidenciaram, tem sido a de impedir que essa travessia se dê no campo aberto da democracia, do voto e da rua.
Um erro dramático do PT foi embarcar nesse comboio de pseudo acomodação a frio, do qual saltou muito tardiamente, quase sem tempo de se preparar para o embate violento que viria, como de fato veio.
O golpe de Estado que espreme o Brasil desde 12 de maio cobra a fatura desse erro histórico.
Seu objetivo, insista-se, é devolver a pasta de dente ao tubo. Ou seja, reverter os avanços sociais de dimensões épicas conquistados desde 2003, em que a fome foi vencida (a taxa de insegurança alimentar caiu de 10% da população para 1%); a miséria foi reduzida a 2,5%; cerca de 40 milhões de pessoas deixaram a pobreza e o mercado de consumo de massa tornou-se hegemônico, abarcando mais de 50% da população –se fosse um país estaria dentro do G-20.
Revogar esse passo para a construção de uma democracia social efetiva é o mutirão ao qual se debruçam os ministros interventores do golpe, empenhados em sucessivos anúncios de decapitação de políticas, dissolução de estruturas, extinção de programas, revogação de direitos, depreciação de ganhos e ameaças aos assalariados.
Trata-se de fazer o Brasil novo caber no orçamento velho, desguarnecido da tributação da riqueza corrente e da taxação do privilégio acumulado.
Enquanto o crescimento econômico sustentou a expansão da receita fiscal, foi possível promover uma política de investimentos pesados, com forte geração de empregos e combate às desigualdade, sem atritos virulentos com os interesses cristalizados.
Quando o lubrificante da expansão econômica minguou, a fricção progrediu rapidamente para o conflito aberto –este que catalisou novos e velhos adversários e recuperou bandeiras do senso de oportunidade conservador, empunhadas pelos justiceiros de ocasião.
Quem ouve alarido pelo rádio do carro sente-se conduzido a uma viagem de volta a um futuro que bordeja o clima político de 1964, com direito a pitadas de guerra fria a cargo do ‘chanceler’ José Serra e o seu ‘novo’ Itamaraty — que transita num planeta ‘sem ideologia’, mas declaradamente inspirado nos paradigmas de Macri e Peña Nieto, com pitadas de Guerra Fria.
Sob essa espuma correntezas poderosas arrastam e arrasam a nação em duas frentes indissociáveis.
A mais visível e furiosa, processa a purga ideológica da sociedade e do Estado, cavalgando um revanchismo truculento, que não poupou nem o mordomo preto, petista, há oito anos alocado no Palácio do Planalto.
Média de 100 demissões por dia compõe a contabilidade da caçada a tudo o que se move à esquerda do que hoje se conceitua como sendo a norma, o fim da ideologia, o crepúsculo do gênero, o ‘partidarismo’ etc
Extinguir o Ministério da Cultura –de enorme visibilidade e acanhado orçamento—foi uma ação consciente, informa colunista do jornal Valor, inscrita nas milícias precursoras do golpe.
‘O MinC era um bunker irrecuperável da esquerda’ –foi a avaliação dos que usurparam o lugar da Presidenta mandata por 54 milhões de votos.
Extinga-se.
Revogar 11 mil novas unidades contratadas do Minha Casa, Minha Vida, entidades, foi outro tiro de revanche.
Alvos: o MTST e seu aguerrido dirigente, Guilherme Boulos.
Assim por diante.
Na rotina da extinção em massa de cargos, pastas, conselhos e secretarias identifica-se o claro vezo de interditar as vozes dos pequenos, dos humildes, dos subalternos negros, deficientes, mulheres, jovens, povos indígenas, pequenos agricultores, pescadores, idosos etc que nos últimos anos arejaram um pouco o ambiente político no interior do Estado brasileiro, ampliando o círculo de decisão das políticas sociais e de desenvolvimento.
Mas não é esse –ainda– a correnteza mais truculenta em curso.
Desde a primeira hora do assalto ao mandato da Presidente Dilma Roussef o que se anuncia é que a tesoura –se preciso ancorada no cassetete, no gás pimenta, no lança-bombas, no Estado policial, enfim— será o grande instrumento de política econômica dos interventores.
Os alvos das tesouradas vão do SUS à aposentadoria, do Bolsa Família ao Minha Casa, passando pelo ensino público, tudo convergindo para o grande núcleo dos antagonismos contra os quais se move a retroescavadeira do ajuste de contas golpista.
Ou seja: os direitos universais previstos na Constituição Cidadã de 1988.
‘Em um determinado momento, vamos ter que repactuar, como aconteceu na Grécia’, sinalizou de forma pouco sutil o ministro da Saúde, Ricardo Barros.
Os direitos universais não cabem na contabilidade conferida pela aritmética do golpe, que tem no interesse rentista seu principal fundamento macroeconômico.
‘Hoje, 90% do déficit nominal de R$ 600 bilhões decorre de gastos com juros’, disparou o próprio Serra, dirigindo um tiro de bazuca em Henrique Meirelles, interventor da Fazenda, no lugar de quem gostaria de estar.
Em vez de servir à conspiração, Serra deveria ter organizado o apoio tucano a Dilma em 2013 quando derrubou o juro e quase foi derrubada pela Febraban, o sindicato dos bancos.
Serra e o PSDB são patronos da lógica segundo a qual o SUS terá que diminuir de tamanho, a universidade pública terá que ser paga, os idosos do campo terão que morrer à míngua, os miseráveis do Bolsa Família terão que provar que estão à beira da inanição etc para que a plutocracia local e estrangeira mantenha suas burras em regime de engorda, sem risco.
A purga constitucional, porém, pode levar mais tempo do que o mercado financeiro consente. Razão pela qual o núcleo duro do golpe, composto de seus pares, não hesita: o arrocho entregará este ano números palatáveis espremendo-se a boca do caixa.
Como?
Sem descontar a inflação, nem os investimentos nas metas de superávits em vias de serem anunciadas. Cortes nominais. Amparados em projeções terroristas. Que tomam o pagamento das pedaladas de 2015 como norma, e desenham sua evolução em 2016, ganhando assim a folga para o trunfo da ‘responsabilidade fiscal do golpe’.
O vale tudo inclui, ainda, a alienação de fatias privatizáveis do patrimônio público (bancos estatais, por exemplo) e, claro, a última e mais preciosa joia da coroa: as reservas consolidadas do pré-sal. Pedro Parente, o gerente do apagão tucano de 2001, que custou tres pontos no PIB, assume a Petrobrás para apagar o pré-sal do horizonte das esperanças nacionais.
Não há negociação.
O que se desenha é uma política de ocupação ortodoxa, de dureza cinematográfica –pouco sensível ao impacto repulsivo que a supremacia da ganancia endinheirada causa à nação.
Esses ingredientes ajudam a qualificar a natureza despudoradamente antissocial e antinacional do golpe.
Mas a real extensão do que trincou, caducou e esgotou na vida política vai além disso.
E deve ser encarado de frente. Sob risco de se ordenar uma resistência assentada em agenda e força desprovidas de aderência à efetiva encruzilhada brasileira.
Assim como a suposta frivolidade de Maria Antonieta não informa a composição de estruturas e forças que efetivamente redundaram na Revolução Francesa, ou a hipertrofia de Rasputin na intimidade dos Romanovs, não esclarece o processo revolucionário de 1917, personagens como Temer, Jucá, Serra, Gilmar, Cunha, Moro, Aécio, FH, Alexandre de Moraes e assemelhados sugerem, mas não expressam a essência completa do que se passa no Brasil nesse momento.
Em primeiro lugar, o que esgotou como espaço de negociação foi o sistema político brasileiro, incapaz de oferecer protagonistas, espaços e canais à renovação do pacto do desenvolvimento.
Não basta opor a isso o bordão da reforma política. É preciso qualifica-la e organizar a força capaz de fazer dessa bandeira mais do que uma retórica protelatória.
O golpe institucional deixou definitivamente gravado em pedra e cal: o Congresso brasileiro não é a assembleia da nação.
Não a representa.
Trata-se de um instrumento político da direita, do dinheiro, da vigarice.
Mas não rasga dólares, nem tem tendências suicidas.
Ou seja, esse congresso que não representa da sociedade não tem qualquer interesse em representa-la.
Ao contrário.
Todas as tentativas de se oxigenar a democracia brasileira –facilitar os plebiscitos, romper o oligopólio midiático, favorecer canais ecumênicos de informação e participação etc– foram rechaçados ou adormecem no índex da supremacia parlamentar conservadora.
O golpe em curso é o derradeiro lance na rota de colisão entre uma Constituição socialmente progressista e o paradoxo de um sistema político desenhado para engessa-la.
O que a fusão dos interesses plutocráticos locais e internacionais busca agora é calafetar essa falha.
Ou seja, retificar o flanco que a derrubada da ditadura abriu em meados dos anos 80, quando a ascensão de um movimento de massas vitorioso obrigou a elite a engolir o escopo social vitorioso na Constituinte de 1987.
O interregno neoliberal implantado pelo PSDB nos anos 90 só foi possível dissimulado na catártica operação de guerra de um país unido contra a hiperinflação.
Nunca mais as urnas endossaram o lacto-purga neoliberal, sucessivamente derrotado em 2002, 2006, 2010 e 2014 –quando a coalizão conservadora decidiu-se então pelo golpe.
Curto e grosso: sem um movimento de massa de apelo semelhante ao das mobilizações pela redemocratização, com sua contrapartida constituinte, a marcha regressiva não será revertida de forma suficiente à repactuação de um novo ciclo de desenvolvimento, com reformas que sustentem a democracia social prevista em 1988.
A crise estrutural persistirá enclausurando o país entre o caos econômico e a ditadura política.
Isso é um enunciado geral.
É preciso debulhar seus grãos, sem o que não haverá mingau, só prostração.
Os 180 dias que nos separam da votação final do dito impeachment formam o prazo de capacitação para um outro enredo histórico.
Significa que a agenda dos 180 dias não pode ser apenas exclamativa, protelatória e nem mesmo exclusivamente de mobilizações esparsas.
Ela precisa ser or-ga-ni-za-ti-va e programática.
A frente ampla que Lula acalenta pode ser o ponto de fusão capaz de dar à rua a sua consequência.
Qual?
Ser o chão fértil da semeadura de uma base organizada em Comitês de Resistencia e Luta pelo mandato de Dilma, que desde logo funcionarão como embriões de comitês para as eleições municipais deste ano, sedimentando a pactuação programática para 2018 e para a Constituinte reformuladora do sistema político, tributário e de comunicação.
O Brasil necessita urgentemente viabilizar esse novo braço coletivo. Que seja maior do que a soma das partes, capaz de sacudir o torpor da esquerda, afrontar a soberba da direita e empolgar a sociedade com o poder da democracia de dizer não ao mercado.
O conservadorismo, guardadas as devidas proporções, resolveu reeditar aqui o 1984 inglês.
Aquele que passou à convenção dos valores mercadistas como o ano em que o neoliberalismo veio à luz, graças à derrota sangrenta imposta por Margareth Thatcher à greve de mineiros de carvão.
O desafio da frente ampla progressista é não permitir que 2016 seja o 1984 brasileiro.
Se o golpe destruir o potencial ordenador que a pujança do mercado de massa exerce nas balizas do desenvolvimento, abrem-se as portas para a mexicanização da economia.
A saber: mão de obra barata e pobreza sem fim; abertura comercial desenfreada e desmonte de políticas soberanas de desenvolvimento.
Nem Brics, nem pré-sal, nem integração latino-americana, avisa o ‘chanceler’ do golpe, interventor no Itamaraty, José Serra.
Maquiladoras, Alca, desigualdade, gangues, anomia. Revogada a estaca estruturante da centralidade nos direitos da população, tudo o mais escorre com a água do banho.
Políticas sociais, previdência universal, valorização do salário mínimo, SUS etc
Não há tempo para ingenuidade.
A velocidade espantosa com que as coisas se dão exige respostas de uma prontidão engajada e corajosa.
Lênin classificava esse tipo de ofensiva como ‘formas científicas de extrair o suor ’.
Assim como a reengenharia dos anos 80, o assalto ao suor do povo brasileiro é vendido à opinião púbica como um poderoso impulso ao crescimento e à criação de vagas.
Na verdade, a gigantesca engrenagem supranacional do capital cuida de tomar de volta tudo aquilo que transgrediu os limites da democracia política formal, em direção a uma verdadeira democracia econômica e social, desde 2003.
Preconiza-se em seu lugar um paradigma de eficiência feito de desigualdade ascendente, que condiciona o futuro da sociedade e a abrangência do seu desenvolvimento.
A tensão parece ter chegado ao seu nível máximo.
As ruas e o golpe são a expressão de contradições que já vazaram dos limites da institucionalidade disponível.
Lutar pelo mandato da Presidenta Dilma hoje é reconstruir a agenda do desenvolvimento e da democracia nas ruas. E isso pode ser liderado por Lula –com ou sem direitos políticos.
O resto é arrocho e opressão.