Publicado em Carta Capital –
Jotabê Medeiros comenta a classificação para 18 anos do filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, não por acaso, cineasta que se manifestou contra o golpe no Brasil
Há 30 anos, acontecia a última estrepitosa censura do Estado brasileiro a uma obra de arte. Tratava-se, naquela ocasião, do filme Je Vous Salue, Marie, do francês Jean Luc Godard, e a censura tinha substrato religioso: o carola governo José Sarney, pressionado por grupos religiosos, interditara a exibição do filme alegando “respeito à fé”.
Três exatas décadas depois, outro filme reencontra em terras brasileiras uma barreira censória proveniente do Estado, dessa vez uma ação velada, oculta, subliminar, escondida sob uma rede de cinismo e escamoteação. Trata-se deAquarius (curiosamente, o primeiro filme a representar o Brasil em Cannes em oito anos), de Kleber Mendonça Filho.
Desde que seus atores subiram ao tapete vermelho de Cannes com faixas de protesto contra a situação política no Brasil, o governo interino do país declarou guerra à produção pernambucana que tem Sonia Braga como estrela principal. Começou com um desabafo do atual ministro da Cultura em exercício, Marcelo Calero, contra o protesto dos atores em Cannes:
— Acho ruim, em nome de um posicionamento político pessoal, causar prejuízos à reputação e à imagem do Brasil.
Calero também classificou como “uma irresponsabilidade quase infantil” comparar o atual momento político do país com o do golpe de 1964.
Calero parece não ter digerido bem a descompostura. Como não pode simplesmente banir o filme, o governo interino resolveu torpedeá-lo de maneiras indiretas. Até agora, como é hábito em regimes antidemocráticos, foram dois golpes baixos. O primeiro foi manobrar para dificultar que Aquarius alcance outra grande tribuna internacional e prossiga com sua denúncia. Como fazer isso? Simples: por exemplo, evitando que a produção figure entre a seleção dos filmes brasileiros candidatos à 89ª cerimônia do Oscar, prêmio da indústria de cinema norte-americana.O ministro que ama selfies com gatinhos afirmando que Sonia Braga, a própria representação da personalidade e da afirmação do Brasil no Exterior, conspiraria contra sua própria imagem? Equívoco abissal: não por acaso, a atriz é a principal homenageada, nesta semana, pelo Festival de Gramado, o maior do país. Mas Sonia não se avexou e enquadrou o ministro com a classe costumeira. “Como pode um ministro dizer que um ato democrático como o nosso é a representação de um país inteiro? Isso é desconhecimento do que significa plena democracia. Se estivéssemos falando em nome de todos não precisaríamos, evidentemente, fazer o ato”, ela explicou, didaticamente, para finalizar: “O ministro da Cultura ofendendo artistas é inadmissível. O senhor está nesse cargo para dialogar, para nos ajudar, para fazer a ponte com quem nos explora”.
Acontece que tudo que tem essa disposição meio cavalar não é exatamente revestido de sutileza. O jornal Folha de São Paulo notou que, entre os nove jurados escolhidos pelo atual Ministério da Cultura, figurava um notório detrator da produção, alguém que em oito ocasiões gabara-se de detestar o filme sem tê-lo assistido (o clássico “não vi e não gostei”). Mais grave: segundo o cineasta Mendonça Filho, o jurado em questão também espalhara a acusação, nas redes sociais, de que a equipe do filme, cerca de 30 profissionais, teria ido a Cannes num trem da alegria financiado pelo dinheiro público, gastando 500 euros cada um por dia.
Kleber Mendonça desmontou a acusação. ”Para que fique claro, com a exceção da minha pessoa e Sonia Braga (despesas pagas pelos coprodutores franceses) e três apoios publicados em Diário Oficial da Agência Nacional de Cinema (previsto, reconhecido, oficializado para profissionais brasileiros a trabalho em grandes festivais internacionais de cinema) para integrantes da nossa equipe de produção, as mais de 30 pessoas da equipe (demais atores, técnicos, produtores) usaram seu próprio dinheiro, parcelando passagens aéreas e dividindo hospedagem”, esclareceu.
O diretor aponta uma estratégia teleguiada que se destina a sabotar o filme (a presença de um detrator militante no júri do Oscar, além da suspeição natural, seria uma escolha deliberada). Apartado do mundo artístico de excelência, o governo interino estaria aprofundando seu perfil alexandrefrotista, recrutando entre arrivistas e oportunistas de ocasião os aríetes de seu macarthismo temporão – com zero preocupação na qualidade da argumentação e capacidade intelectual.
O segundo golpe baixo contra Aquarius veio agora de outra instância governamental, o Ministério da Justiça. O filme, que estreia no dia 1º de setembro e pleiteava uma classificação indicativa de 16 anos, foi considerado proibitivo para menores de 18 anos por causa de cenas com “drogas” e “sexo complexo”, conforme a justificativa.
A produtora Silvia Cruz, da Vitrine Filmes, recebeu com surpresa a decisão: “Eles alegam cenas de sexo e drogas, mas são cenas curtas e que não deveriam ganhar uma classificação de 18 anos. Chegamos a comparar com outros filmes, como Tatuagem (2013) e Boi Neon (2015), que possuem cenas semelhantes e foram classificados como 16 anos. No nosso caso, eles foram irredutíveis”.
Aquarius tem três cenas de sexo de menos de 30 segundos, duas delas com nus frontais (masculino e feminino). Personagens fumam cigarros artesanais, mas não é possível determinar se são de maconha ou não.
O caso de Aquarius prenuncia uma nova escalada autoritária contra o mundo cultural. Poucos artistas têm se dado conta dessa ameaça crescente, e o filme teve dois ou três defensores solitários, incluindo o próprio cineasta, a reivindicar os clássicos direitos da livre expressão e da isonomia no cenário artístico nacional. Como é uma perseguição não declarada, talvez a sociedade brasileira só note que o ovo da serpente já foi botado quando for tarde demais para conter a peçonha generalizada.No caso do filme de Jean-Luc Goddard, há 30 anos, a chamada opinião pública do País não engoliu a arbitrariedade calada. Houve protestos, manifestações, pressões (o próprio ministro da Justiça da época, Fernando Lyra, mostrou-se publicamente contrariado com a censura). O barulho ajudou a sepultar um espectro: a sociedade não parecia disposta a presenciar o retorno a uma época sombria de proibições, cortes e perseguições. No carnaval do ano seguinte, 1986, o combativo bloco de rua Pacotão, de Brasília, foi às ruas municiado da marchinha “Je Vous Salue, Marly”, fazendo alusão à mulher do presidente, dona Marly Sarney.
Veja o trailer oficial do filme Aquarius: