A cidade dos piratas, o filme

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E a coluna “A César o que é de Cícero” nos leva ao cinema. Veja a dica do nosso doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista.

“Tá certo que o filme “A Cidade dos piratas” (direção de Otto Guerra, 2018) é animação, isto é, desenho animado, e que tem gente que não suporta ver desenhos animados adultos, ainda mais amalucados e brasileiros, baseados em quadrinhos. Eu mesmo não conheço muito o tema. Não é que eu nem goste, não fluiu na minha adolescência tal gosto. Mas vi arte por ali, nos desenhos, nos argumentos das histórias etc.




E vejo Laerte, que transcende a discussão sobre a qualidade do filme e que nos propõe um olhar mais engajado para a transexualidade. Laerte tem um traço genial enquanto artista. E fez da sua vida pessoal, de sua decisão em se assumir trans, um dos seus inúmeros veios criativos.

Isto posto, vale a pena conferir “A cidade dos piratas”. Eu me liguei no filme todo, por ser boa diversão. Mas o trecho que realmente me interessou, que me fez me perguntar se eu sou neguinha ou não, é o do labirinto do Minotauro.

Basicamente, o trecho cruza a história de um político de ultradireita que quer eliminar o Minotauro com a de um homem de meia idade que se veste de mulher e vai para as ruas fazer programas.

Basicamente isso, só que contado com a maestria de que Laerte é capaz. Não sei se foi ele quem desenhou tudo, mas os traços são seus.

Um depoimento seu, incluído no filme, ressoa em meus ouvidos. Não sei que consigo reproduzi-lo fielmente, mas a ideia e de que o Brasil é um país que curte muito travestis e que ao mesmo tempo é recordista em mortes de travestis. Isto é, há o desejo de ir pra cama com travestis e também de eliminar travestis, de rigorosamente se recorrer à violência.

Eu tinha uns 17, 18. Era uma festa de final de pré-vestibular em um clube lá pras bandas da Barra da Tijuca. Havia uma travesti entre os pré-vestibulandos. Ninguém a destratou e tal, mas creio que tenha sido eu o único a ir jogar basquete com ela.

Sim, eu joguei basquete com um travesti. Ouvi piadinhas, obviamente, acerca da minha masculinidade, por parte dos colegas de turma mais chegados. Coisas do tipo “tá pisando na chapinha”, que era uma senha para homossexual do tipo bicha.

Eram outros tempos. Era o tempo em que alguns pais de família podiam dizer abertamente que, para eles, o filho poderia ser até bandido, mas não bicha. Porra, um bandido bicha deveria ser o topo da montanha, castigo reservado a quem jogou pedra na cruz.

A moça tinha um anel, uma aliança, dada pelo pai. E gostaria de fazer medicina. Será que ela conseguiu? Será que vibrou com a eleição de Dani Balbi para deputada estadual?

O labirinto é o lugar onde o desejo pode se realizar. E o Minotauro é a personificação do próprio desejo. Gosto dessa coisa, parece a seta do anjo, o desejo é mais irreprimível do que controlável e pouco se importa para coisas como ética e tal.

E qual a diferença entre o bem e o mal desejo? Pergunta difícil, hein? O desejo mal é aquele que visa à destruição acima de tudo, inclusive de si mesmo. E o desejo bom é criador acima de tudo e quer mais do que a si mesmo.

“You can´t always get what you want”, já diziam os Rolling Stones. Ainda bem. É por isso que a gente se reprime, pô. Ninguém é puro, a pureza é um mito.

Vejam que eu não discuti nem o fato de a “cidade dos piratas” ser São Paulo e fazer referência aos “Piratas do Tietê”, criações de Laerte.

Tá lá na mostra Itaú Cultural Play. O último a ver é mulher do padre.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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