A Cidade que Habito

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Cristiano Lima Beck – Servidor público do Rio Grande do Sul e graduando em Licenciatura em História

O que aconteceu – acontece, na verdade, sem previsão de quando e como irá terminar – em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul não é um acidente qualquer, nem mesmo um muito improvável acidente de avião. A quantidade de erros foi tão grande que equivale a uma frota inteira caindo. Ou, como escreveu o xamã indígena Davi Kopenawa, é o próprio céu caindo sobre nossas cabeças.




Dizem que para cair um avião é necessária uma sequência muito grande de erros e falhas. Talvez por isso tão poucos caiam, e a invenção seja considerada o meio de transporte mais seguro que existe. O risco de um avião cair é, tecnicamente, de um em 1 bilhão, aproximadamente.

Lembrei dessa lógica vendo a pista do Aeroporto Internacional Salgado Filho, recentemente reformado e modernizado pela empresa alemã Fraport (para quem não sabe, o nome é uma abreviação de “Frankfurt Airport Services Worldwide”), inundada há uma semana com quase 2 m de altura de água e lama e sem perspectiva de voos até, no mínimo, o final de maio. O mesmo acontece, por exemplo, com os estádios de Inter e Grêmio, que até onde sei têm sistemas modernos e eficazes de drenagem da chuva justamente para manter o gramado apto para o jogo mesmo em condições climáticas muito adversas.

Estamos presenciando nesses dias em Porto Alegre algo nunca visto (como a metáfora dos indígenas que avistaram pela primeira vez as caravelas dos europeus): a cidade já está há uma semana embaixo d’água e, no momento em que escrevo esse texto, sem perspectiva nenhuma de recuo, pelo contrário, institutos de meteorologia preveem com alto grau de certeza que, devido a mais chuva que vem aí, o nível de água deve bater um novo recorde. Percebem a sutileza e a gravidade implícitas nessa informação?

O Guaíba, que demorou 85 anos para bater a marca histórica da enchente de 1941, em apenas uma semana vai bater novo recorde, que terá durado não mais do que poucos dias.

Isso sem falar na devastação que ocorre – outra vez – em praticamente todo o RS.

Existe maior indicador de que a conta chegou? De que não se aplica mais a palavra “futuro” quando o tema estiver em debate (inclusive, perdoem-me os mais otimistas, pode nem mesmo que este “futuro” chegue, de fato), porque o colapso climático é aqui e agora?

O que acontece no Rio Grande do Sul – e em particular Porto Alegre, cidade que moro -, não é resultado apenas de uma chuva sem precedentes ou de um conjunto de fatores ou circunstâncias infelizes. Essa frase fica muito bem nos discursos e narrativas de políticos de jaleco, não no campo dos fatos e da verdade científica.

Ora, como uma metrópole de mais de 250 anos, localizada à beira de um lago, apenas 10 metros acima do nível do mar, em pleno ano de 2024, com tanto conhecimento científico disponível e recursos tecnológicos e financeiros, chegou nesse ponto? Exceto derrubar árvores e asfaltar e concretar tudo que pode (e até o que não pode), não lembro agora de ações do atual prefeito em prol do meio ambiente.

Não falta dinheiro, falta consciência e noção de urgência. Uma Porto Alegre das maiores e melhores universidades do país, importantes Ongs, institutos, centros de pesquisa, entidades empresariais, etc; como que no auge das mudanças climáticas e dos eventos extremos, a capital do Rio Grande do Sul, sede dos Três Poderes do Estado, foi pega “de surpresa” a ponto de toda a região próxima ao Guaíba, dezenas de bairros, 100% do Centro Histórico – que, aliás, vem sendo revitalizado há 3 anos, muito provavelmente sem nenhum projeto para lidar com cheias – submergir completamente?

Aliás, aqui é preciso ser justo. Existe um plano. Quando a água começa a invadir a cidade, prontamente aparecem brutamontes carregando pesados sacos de areia para, provavelmente apostando em algum tipo de milagre, mas certamente desconhecendo a física de colégio e as leis básicas da natureza, empilhar heroicamente esses sacos, enquanto a água, essa danada, atravessa pelos lados, por baixo e por cima, e segue solenemente seu fluxo natural e devastador.

Nosso sistema de defesa contra cheias são estruturas do século passado ultrapassadas e sem manutenção e sacos de areia empilhados, colocados curiosamente a metros de distância da área da cidade onde há alguns anos festeja-se uma das maiores feiras de tecnologia do mundo, o “South Summit Brazil”. É de uma ironia cruel, torpe e fatal.

Tem se dito desde o início da tragédia que não se deve procurar culpados ou politizar a calamidade, mas cada vez mais fica escancarado que a dimensão e a proporção do estrago e do prejuízo são predominantemente políticos, fruto de escolhas, decisões, omissões, prioridades, visões de mundo e farta incompetência. E, claro, o sempre ilustre convidado de toda tragédia, o apetite voraz e insaciável do “mercado”.

Legislações foram afrouxadas, estruturas e programas de prevenção esvaziados ou extintos, avisos, gritos, berros em uníssono dos cientistas ignorados. Os avisos vindos direto do próprio planeta desconsiderados, e pior, usados como ocasião e palanque para projeção de alguns em nome de ambições pessoais. Ou há melhor imagem de um político “jovem e promissor” (créditos da definição do governador Eduardo Leite para revista Veja) para lacrar nas redes sociais do que despido do protocolar terno e gravata e entronizado em um colete da Defesa Civil, andar decidido, olhar firme, voz postada, liderando com coragem a defesa do povo ao qual jurou servir contra os eventos climáticos extremos que mais uma vez (quarta em oito meses) o pega “de surpresa”?

“Esse é o homem que precisamos para nos governar”, pensa o cidadão, sem saber que grande parte da responsabilidade da dimensão da tragédia – e do número de mortos – está exatamente ali, no herói que agora o defende. Enquanto deveria estar trabalhando para encontrar meios de reduzir ou minimizar os efeitos das enxurradas, estava justamente articulando entre os corredores palacianos na direção contrária, já sem o colete e sem o mesmo destemor e espírito público.

O país e o mundo observam atônitos uma das principais capitais brasileiras, uma das cidades mais importantes do país e da América do Sul de joelhos, subjugada à água da chuva e ao esgoto que brota dos seus subterrâneos, junto com ratos, cobras e até jacarés, além de uma quantidade assombrosa de lixo descartado irresponsavelmente pela população, que, tentemos ser justos aqui, tem sua cota no pacote da desgraça. Ou quem atira um sofá dentro de um rio pensa que o móvel irá virar ração para os peixes?

O que aconteceu – acontece, na verdade, sem previsão de quando e como irá terminar – em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul não é um acidente qualquer, nem mesmo um muito improvável acidente de avião. A quantidade de erros foi tão grande que equivale a uma frota inteira caindo. Ou, como escreveu o xamã indígena Davi Kopenawa, é o próprio céu caindo sobre nossas cabeças.

Foto: Porto Alegre alagada pelo rio Guaíba, autor Giulian Serafim – Prefeitura de Porto Alegre/Divulgação

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