Em livro, professora da UFRJ descreve que avanço científico não pode ser analisado de forma desconectada da sociedade e que mesmo o negacionismo precisa ser abordado pelo seu contexto político, e não como mera ignorância
Por Edison Veiga, compartilhado de DW
Coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a matemática Tatiana Roque defende que o conhecimento científico não pode ser analisado de forma desconectada da sociedade. É assim, por exemplo, que ela enxerga o negacionismo contemporâneo: não como um produto da ignorância humana, mas resultado de um contexto sociopolítico.
“Justamente por isso a gente vê que no Brasil alguns negacionismos pegam mais e outros que pegam menos. Enquanto o mundo todo é antivacina, o Brasil tem uma postura bastante favorável às vacinas”, comenta ela. “Já no caso do tal tratamento precoce, um tratamento sem eficácia comprovada [contra a covid-19], foi bastante negacionista a postura de boa parte da população brasileira.”
Roque é professora de matemática, história das ciências e filosofia na UFRJ e está lançando o livro “O dia em que voltamos de Marte”, que propõe um mergulho pela história do conhecimento científico nos últimos quatro séculos.
Não é uma história que só evolui positivamente, como ela mesma ressalta. “Eu sou otimista quanto ao avanço da ciência. O que não sou otimista é sobre o fato de esse avanço necessariamente estar nos levando para um mundo melhor, sempre”, diz a professora, que conversou com a DW Brasil.
DW Brasil: Seu livro mostra o contraste entre aclamados cientistas homens brancos, como Jean D’Alembert (1717-1783), e cientistas mulheres “apagadas”, como Dorothy Hoover (1918-2000) que, aliás, era negra. A senhora acredita que a ciência contemporânea ainda seja racista e machista?
Tatiana Roque: Sim, a ciência contemporânea ainda é racista e machista e acho que isso não é só uma questão de representatividade, mas isso causa também um viés epistemológico: é importante que a gente enxergue o quanto a própria produção do conhecimento é impactada por esse privilégio branco, eurocêntrico, na criação científica propriamente dita.
Ao propor um mergulho nos últimos 400 anos de história da ciência, como a senhora vê a atual onda negacionista, escancarada em tempos de covid-19?
Ao abordar os avanços científico junto com o contexto social, preocupo-me justamente em não entendermos o negacionismo como uma questão cognitiva, relacionada à ignorância das pessoas. Esta é uma questão que tem a ver com o contexto social e político. Justamente por isso a gente vê que no Brasil alguns negacionismos pegam mais e outros que pegam menos.
Enquanto o mundo todo é antivacina, o Brasil tem uma postura bastante favorável às vacinas. Já no caso do tal tratamento precoce, um tratamento sem eficácia comprovada [contra a covid-19], foi bastante negacionista a postura de boa parte da população brasileira. Por isso é preciso que a gente realmente entenda a questão a partir do contexto social e político.
Neste sentido, qual o papel dos líderes políticos?
O problema é político. E no Brasil isso ficou muito claro. [O presidente Jair] Bolsonaro e seus apoiadores difundiram o tratamento precoce porque isso era a maneira de contrariar tanto o uso de máscaras quanto o distanciamento social, medidas ideologicamente incompatíveis com esse governo por dois motivos.
Primeiro porque demandam uma certa regulação do Estado, e a ideologia ultraliberal deste governo é contra isso; segundo porque de acordo com a visão econômica deste governo tais medidas contrariavam a possibilidade de a economia continuar funcionando. Isso fez com que o tratamento precoce, uma medida completamente negacionista, fosse defendido, divulgado, propagandeado pelo governo, pelo Ministério da Saúde e por muitos apoiadores.
Por falar em negacionismo, qual o papel dele no aquecimento global?
A partir dos anos 1990, quando as [pesquisas sobre] mudanças climáticas se tornaram mais difundidas, houve uma série de reações contra tais descobertas científicas. Aí que surgiu o movimento negacionista [contemporâneo], para tentar fazer com que tais descobertas não tivessem o impacto social que deveriam ter.
As mudanças climáticas começaram a se tornar consenso e aí os movimentos negacionistas passaram a pintar esse consenso como se fosse uma polêmica, como se fosse uma controvérsia. Ou seja: semeando a dúvida sobre algo que era um consenso científico. Isso mostra muito bem como a relação entre ciência e política é determinante. Fica evidente.
Quando correlaciona o avanço da ciência aos contextos socioculturais, a senhora diz que nem sempre isso é sinônimo de progresso. É uma visão pessimista?
Eu sou otimista quanto ao avanço da ciência. O que não sou otimista é sobre o fato de esse avanço necessariamente estar nos levando para um mundo melhor, sempre. Existem avanços que podem nos levar para um mundo melhor, outros que não necessariamente. É provável que se vá a Marte no futuro, porque governos de alguns países estão investindo pesadamente nisso. Mas não sei se isso deveria ser prioridade.
[…] A gente precisa pensar em mudanças climáticas, em aquecimento global, não em colonizar outros planetas. E uma das motivações dessa volta da corrida espacial é, além do turismo espacial e eventualmente colonizar outros planetas, também extrair recursos naturais de outros planetas. […] A disponibilidade de água na Terra está ameaçada e já há alguns projetos de tentar extrair esses recursos de outros planetas, o que é uma coisa insana: a solução deveria ser fazer desde já o necessário para que tais recursos não se esgotem na Terra.