A ciência da cachaça: centro de pesquisas busca aprimorar produção da bebida no Brasil

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Por Felipe Maia, Ópera Mundi – 

O Laboratório de Tecnologia e Qualidade da Cachaça, em Piracicaba, é o mais completo instituto dedicado a estudar a bebida no país; ‘metade das cachaças à venda no Brasil não atende o que pede a legislação’, diz pesquisador

Guilherme Santana / VICE

André Alcarde, doutor e professor pela ESALQ/USP, é um dos coordenadores do Laboratório de Tecnologia e Qualidade da Cachaça

Nas duas vezes que estive em Piracicaba, no interior de São Paulo, fui pela bebida. Na primeira ida, nos meus tempos de faculdade, colei em um desses eventos que se disfarçam de competição esportiva para testar os limites de metabolismo e fígado. Na segunda vez, há alguns dias, estive no Laboratório de Tecnologia e Qualidade da Cachaça: um misto de destilaria industrial, adega de barris e moderno centro de análise química que, digo sobriamente, é a NASA da Cachaça.




Antes de falar sobre a ciência da branquinha, vamos às leis. Segundo a legislação brasileira, a cachaça é uma bebida obtida pela destilação do fermentado de cana com graduação alcoólica entre 38% a 48%. A aguardente pode ter teor alcoólico maior e ser obtida por meio de outros vegetais. Assim, nem toda aguardente é cachaça, mas toda cachaça é aguardente. Você deve estar se perguntando: e a pinga, o que é? O termo pinga, segundo André Alcarde, doutor e professor pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (ESALQ/USP), caiu em desuso no meio científico. Como nossa missão é o estudo, deixaremos de lado essa palavra também.

André coordena, ao lado da doutoranda Aline Bortoletto, o mais completo laboratório do Brasil dedicado a estudar a branquinha, o mé, a água-que-passarinho-não-bebe, aquela-que-matou-o-guarda — ou qualquer outro termo que você queira. “Como a gente está em uma escola de agronomia em um curso de ciência dos alimentos, a gente tem todo o processo de produção”, diz o professor. “Temos matéria-prima, extração, fermentação, destilação, envelhecimento e um laboratório muito bem montado para análise dos componentes da bebida.”

Foto: Guilherme Santana / VICEFazer cachaça por lá é corriqueiro. Em dois dias é possível cortar cana, fermentar o produto, destilar o líquido resultante e ter uma dose novinha em folha. Para envelhecimento, o estoque do laboratório tem quase cem barris que podem armazenar cinco mil litros da bebida. “A gente testa uma nova levedura para fermentar, um novo método de destilação, um envelhecimento nos tonéis”, explicou André. Na análise, valem as regras impostas pelo Ministério da Agricultura aliado à tecnologia. “A gente consegue analisar o que tem em partes por bilhão (ppb) da cachaça.”

Numa recente pesquisa publicada no periódico especializado Food Control, ele e Aline verificaram que, entre 268 cachaças disponíveis no mercado, 134 apresentam substâncias e elementos inadequados ao consumo. “Metade das cachaças à venda no Brasil não atende o que pede a legislação”, disse o pesquisador. “Às vezes elas estão registradas e às vezes não se trata de um composto que traria problema à saúde, mas ele não está dentro da legislação.” Por negligência ou deliberadamente, muitas cachaças brasileiras apresentam substâncias como cobre e éster ou nomes mais complicados como aldeídos, sec-butanol e carbamato de etila — um composto cancerígeno.

Com isso em mente, comecei a temer por todo aquele monte de cachaça em garrafa PET que tinha bebido na minha outra visita a Piracicaba. Era hora de abandonar de vez a juventude manguaceira. Resolvi me bandear para o grupo científico para ver de perto como fazer senão a melhor, a mais estudada cachaça do Brasil.


Aline Bortoletto é doutoranda pela ESALQ/USP e também coordena o laboratório da cachaça

O negócio começa na terra. Ao lado da destilaria principal, alguns metros quadrados dão conta da pequena plantação de cana do laboratório. Uma vez cortada, ela é moída para produção do caldo que bebemos nas feiras. Para virar cachaça, a chamada garapa não pode ter mais de 18% de açúcar em sua composição. “Acerto o teor de açúcar desse caldo, senão a levedura a seguir não consegue realizar a fermentação”, explicou André. “Se estiver acima de 18%, coloco água para tornar o caldo mais diluído e depois mandá-lo para fermentação.”

Segundo o professor, quem trabalha nesse estágio é a Saccharomyces cerevisiae. A espécie de fungo é essencial para seres humanos porque ela também participa da produção do pão e da cerveja, mas ela não é regra para aguardente. “A maioria dos produtores usa a levedura do local, que vem junto com a cana”, disse André. “Se eu deixar o caldo ali parado vai fermentar, mas a levedura varia se estiver chovendo na plantação, se tiver mais terra, etc.” O controle do fungo em ação permite uma fermentação homogênea que consiste num simples processo: o organismo absorve açúcar e produz álcool.

Foto: Guilherme Santana / VICEApós cerca de 24h, o fermentado de cana é transferido para o alambique. Cabe a ele destilar o líquido, aquecendo-o entre 20° e 30° para separar lentamente seus compostos. “Destilação é ferver um líquido e recolher os vapores por condensação. E como o álcool é mais volátil que a água, os vapores desse caldo tem mais álcool que o líquido”, explicou o professor. Uma sequência de canos e cilindros transforma os compostos novamente em líquido que, pingando ou escorrendo, vão para um reservatório como mostrou o professor. “Se eu moo a cana hoje cedo, até amanhã o caldo fermenta e depois destila: tenho a cachaça entre 36 e 48 horas.”

Como um corpo que cai pela torneira, essa primeira cachaça tem cabeça, coração e calda. “A cabeça tem o maior teor de álcool, éster e aldeído e a calda tem muita acidez”, explicou o André. A separação da bebida é manual segundo a quantidade obtida e pelo teor alcoólico medido. Na ESALQ, esse momento é dos mais simples. A produção segue um rígido processo com medições e filtragens constantes. Além disso, também depende de materiais específicos tais quais inox e cobre para alguns dos reservatórios e madeira para o momento de maior paciência: o envelhecimento.

“Aqui temos barris de madeiras tradicionais como carvalhos franceses e americanos”, disse o professor. Também há espaço para madeiras nacionais, como a amburana. Como qualquer destilado é incolor, a madeira e o tempo dão as cores e os aromas à cachaça. Por isso o tempo de repouso de cada amostra varia segundo o produtor ou estudo, no caso do laboratório. O clima fresco, entretanto, não pode mudar no armazém escuro de paredes grossas anexo à destilaria. “Quanto mais quente e seco o clima, mais se perde cachaça”, afirmou o André. “Por isso as adegas de vinho são no subterrâneo.”

Leia a matéria completa no site da Vice Brasil.

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