A coluna do César nos leva a uma casa no campo nas férias do Bucco

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva de férias para o interior, com o personagem Bucco, para sentirmos o cheiro do verde, o ar puro das montanhas numa casa no campo. Nos leva a Manoel de Barros: “Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão / Antes que das coisas celestiais”.

“O pessoal estranhou quando viu na porta da oficina um aviso escrito com caprichada letra de forma:
“Aviso: Durante as próximas duas semanas estarei de férias. Volto no início de agosto. Ass: Bucco*.”
A assinatura era caprichadíssima.




Férias, pra que te quero! Bucco tirou o Monza Tubarão do saco plástico e foi visitar a parentada em Minas. Não é que o “Tutubarão”, apelido do bólido, não fez feio na estrada? Aquilo que era uma máquina, pensava o velho B. todo orgulho dentro de si enquanto subia a serra.


As crianças acharam esquisito aquele cheiro de mato, talvez estivessem desacostumadas a sentir o ar puro das montanhas. Mas ninguém fechou a janela, Bucco não deixou. Com o tempo, as crianças foram se acostumando ao cheiro que tinha um não sei o quê que se guarda para sempre na memória olfativa. A menina deixou de torcer o nariz para aquele, segundo suas observações, cheiro verde.


Bucco riu para dentro enquanto mantinha os olhos atentos na estrada. Se o cheiro de mato é verde, como a miúda disse, qual seria a cor do cheiro de chuva chegando quando se está em cidade do interior? Qual seria a cor do enxoval de solteirona de cidade do interior?


Quando chegaram foram recebido com pompa. Nos dias seguintes, os Buccos se viram naquela obrigação que não é obrigação nenhuma de dormir em cama de colchão de palha dura como pedra, de almoçar galinha que até de manhã estava viva, de tomar cachacinha antes de almoçar, de comer com pimenta, tomar água da moringa, de comer feijão que tem leve gosto de terra, de testar o ditado segundo o qual velho e panela sempre acabam pelo fundo, de provar mais um cálice de licor, de se fartar com doce de compota em compota de verdade retirada de um móvel chamado cristaleira.


As crianças estavam fascinadas pelo tal do piso de vermelhão encerado. Nossa, como é que pode? Dá pra jogar bola? Não, não, bola é no quintal ou no campo, tem um campo bom, oficial, por perto. Detalhista como é, a mulher de Bucco procurou com os olhos a enceradeira, porque aquele tipo de serviço não era mais para ser feito no braço, aliás, nunca foi; em algum lugar da casa deveria ter uma enceradeira escondida.

E, sim, tinha sinal de Internet, que o lugar não era mais roça como antigamente. E o centro da cidade tinha todas as conveniências de qualquer cidade de médio porte. Ela não tinha mais com o que se preocupar.

Dali em diante o cheiro do piso encerado estranhamente deixou de ser um incômodo.
Na mesa grande, nos bancos compridos que lembravam os bancos de igreja, estava reunida a família mais uma vez, com primos e sobrinhos, cada vez maiores, de nomes altissonantes. E acima deles, uma imagem de Jesus Cristo a abençoar a fartura possível de cada dia.

Bucco ficou pensando na história do retorno do Jesus Cristo à sala do Lula, de toda a polêmica em torno da santa imagem. A volta de Jesus ao Palácio do Planalto era no que ele pensava entre uma garfada e outra. Não se sentiu, entretanto, à vontade para por o assunto em pauta. Não sem antes de certo reconhecimento de terreno, porque, afinal de contas, nunca se sabe, seguro morreu de velho. A prosperidade por vezes parece apagar vestígios de tempos mais difíceis para as pessoas do campo.

Bucco já não lia jornal, mas ali o pessoal, graças a Deus, ainda tinha esse velho hábito dos tempos de antanho, que é ler o jornal em papel mesmo, o jornal físico, excelente para a digestão. Bucco pegou os óculos de aros vermelhos da mulher, os de leitura, e leu mais uma vez notícia do Cristo do Lula com a calma de que dispunha. Leu em suma saboreando cada palavra como quem suga o tutano de um osso.

Foi juntando lê com crê, com calma, com alegria renovada por ter aprendido a ler. A operação de leitura foi lhe dando uma alegria, uma coisa, de tal modo que muito provavelmente os efeitos benéficos da notícia se misturavam aos efeitos benéficos da cachacinha de alambique que, aliás, tinha o nome da família: Bucco!


Estranha coincidência, fazer o quê! Era outra parte da família que era dona da marca e do alambique. Ninguém de lá os conhecia, talvez nem parentes fossem. Mas que a danada da cachaça era boa, boa demais, era.


Ficaram de matar um porco no dia seguinte. O pessoal disse isso com uma naturalidade assustadora para quem compra carne no supermercado. Ninguém do ramo Bucco da cidade gostaria de ver tal acontecimento. De fato, era de embrulhar estômagos de gente sensível que não se dá conta do que a humanidade faz para obter a ração diária de proteína animal.


Tomaram banho de rio, viram um sapo enorme tomar banho de piscina no meio da tarde. O sapo era escafandrista, disse a menina, para o espanto de todos, uma vez que não eram muitos os que sabiam o significado da palavra. Ouviram ao longe o badalar de um sino à tardinha e uma revoada de passarinhos.

As crianças tinham combinado de ir à caça de pirilampos para guardar em potes de compota, como se faz em filmes. Tudo acertado. Só que a missão foi abortada, porque desceu uma serração com tal força que em instantes não se via um palmo diante do nariz, impossibilitando pelo menos momentaneamente as atividades ao ar livre.

Depois ventou, faltou luz. Se a luz não voltasse, contariam histórias de terror à luz de grossas velas ou de lampiões, com as sombras se projetando nas paredes. Pelo menos enquanto não ligassem o gerador, viveriam sob ameaça daquela luz úmida e cinza que já tinha engolido todo o exterior.


Mas depois, depois, poderiam usar as janelas como telas. Um carro em meio a sinuosos recortes de estrada seria um dos desenhos da miúda.”

*Bucco, personagem da coluna, é um “Faz tudo”, que vivia em busca de bicos, mas que arrumou agora um emprego fixo. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.

Foto: Washington Luiz de Araújo

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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