A construção singular do Dicionário de Favelas

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Sonia Fleury, uma das criadoras, expõe duas marcas essenciais da iniciativa — que não para de crescer. Ela oferece narrativas próprias sobre os bairros populares no Brasil, e coloca em raro diálogo autores das comunidades e da academia

Por Sonia Fleury, compartilhado de Outras Palavras
Em entrevista para Marcha|Tradução: Vitor Costa




Dicionário de Favelas “Marielle Franco”, uma iniciativa conjunta da comunidade acadêmica e dos moradores de favelas, é uma plataforma online que busca oferecer outras narrativas sobre os territórios e pessoas que habitam os bairros populares do Brasil, fora do olhar estigmatizante da mídia hegemônica.

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Baseado no formado Wikipedia, o Dicionário foi criado em 2014 para oferece “acesso público para a produção e circulação de conhecimento sobre favelas e periferias”. Produto de uma articulação entre universidades, instituições e grupos organizados dos bairros periféricos do Brasil, o Dicionário busca estimular e permitir a coleta e construção coletiva de conhecimento, com papel preponderante dos moradores das favelas. O site argentino Marcha entrevistou a ideóloga do projeto, Sonia Fleury, doutora em Ciências Sociais, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz e integrante do Conselho Editorial do Dicionário.

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Como surgiu a iniciativa de fazer o Dicionário e o que mudou entre a ideia original de 2014 e sua versão atual?

Sonia Fleury – Eu venho de outra área, minha especialidade é em políticas públicas de saúde e políticas sociais. Me envolvi muito na construção de programas universais de Proteção Social no Brasil e na América Latina. Além disso, estive muito envolvida com a Universidade Nacional de Lanús (UNLa), onde publicamos um artigo sobre o Dicionário na revista Salud Coletiva, publicação científica de acesso aberto editada pelo Instituto de Saúde Coletiva da Faculdade.

O esforço que estávamos fazendo não era ruim, mas era limitado. Era preciso construir um “cidadão”, e não apenas uma construção legal e institucional. Então resolvi entrar mais em contato com as periferias onde percebi, desde o primeiro momento, que havia uma juventude muito mais envolvida em criar coisas, quase uma forma de rebeldia contra a exclusão que sempre viveram. Ao mesmo tempo, aprendi que o conhecimento sobre as favelas era escasso e concentrado na universidade, porque a própria política pública negava a existência desses bairros. Se você olhasse nos mapas do Rio de Janeiro há alguns anos, onde deveriam estar as favelas havia apenas árvores.

Suas lutas, sua resistência, suas lideranças, a história de sua própria cultura política, a organização dos bairros, são temas muito pouco conhecidos. Há o conhecimento da própria comunidade e também de pesquisadores que estudam o assunto, mas que em geral não são tão acessíveis. Além disso, há uma hierarquização entre o saber popular e o universitário. Então, todos esses problemas me estimularam a procurar um instrumento de última geração, uma plataforma wiki. Porque, apesar de usarmos a tecnologia deles, nós não queríamos fazer isso dentro da própria Wikipédia, porque temos princípios políticos diferentes. Na Wikipédia existe um artigo único, o que significa que existe um consenso implícito. Nós sabemos que existem divergências e queríamos expressá-las. Então, se você quiser escrever sobre a história das favelas, pode fazê-lo e todas as opiniões são refletidas, gerando debate.

Um dos problemas que surgiram foi que, inicialmente, a plataforma era apenas para escrever artigos. E as pessoas que vivem nas favelas, embora tenham uma capacidade de reflexão muito aguçada sobre sua realidade e sua situação política, não estão disponíveis para escrever sobre isso. Primeiro, porque a escrita é um habitus de classe, os estudantes universitários são treinados para isso, mas os moradores das favelas não são. Além disso, as organizações de bairro não concebem que os militantes das favelas devem parar sua atividade para escrever. Então tivemos que mudar a plataforma e adicionar outros recursos, principalmente multimídia, e outras formas de expressão típicas dos jovens, como música hip hop, funk, poesia, fotos.

Como a chegada de Jair Bolsonaro à presidência impactou o desenvolvimento do Dicionário?

A chegada de Bolsonaro teve várias implicações. Eu, por exemplo, trabalhei na Fundação Getúlio Vargas, instituição que forma empreendedores. Com um regime mais autoritário no país, as instituições começaram a expulsar pessoas inconvenientes, como eu, que toleravam há 30 anos. De lá fomos para a Fundação Oswaldo Cruz, uma instituição que tem um compromisso social muito mais definido e que tem uma longa relação com as favelas de seu entorno.

Então, por um lado, Bolsonaro era uma ameaça à continuidade do projeto, mas, por outro, acabamos em uma instituição muito mais identificada ideológica, política e socialmente com a proposta. Isso também se refletiu na aceitação do projeto pelas lideranças do bairro. Por ter surgido da Fundação Getúlio Vargas, embora não me identificasse com a ideologia daquela instituição, havia certo receio e desconfiança por parte das lideranças locais por ser uma fundação ligada à direita e aos empresários.

Há problemas que vão além de Bolsonaro. O racismo é um componente estrutural das relações de poder no Brasil. Isso não mudou, não é nem mais nem menos do que antes. Pode ser mais ou menos explícito dependendo do momento político. Se existe um governo misógino, muito próximo das milícias e da polícia, que domina parte do poder institucional no Rio de Janeiro e parte das favelas, é muito mais arriscado para a população desses setores, principalmente as mulheres. Além disso, houve a liberalização da compra de armas pesadas, o que acaba sendo um mecanismo legal para que milicianos e narcotraficantes tenham acesso a essas armas.

Precisamente, falando em violência paramilitar e policial, há indícios claros de que integrantes desses setores tenham participado do feminicídio de Marielle Franco em 2018. Além do fato de ela ter nascido e morado em uma favela, por que a escolheram para nomear o Dicionário?

Inicialmente, o projeto foi chamado de “Dicionário Carioca de Favelas”, e Marielle foi uma das pessoas que apoiou fortemente a ideia desde o início. Quando a convidei para escrever, ela imediatamente deu sua contribuição. Um dos artigos do Dicionário foi iniciado por ela. Após seu assassinato, o grupo político que a acompanhava terminou de escrevê-lo.

Resolvemos homenagear Marielle porque ela representou muito em pouco tempo. Tornou-se um símbolo muito forte da necessidade de novas formas de fazer política e novos slogans. Ela era uma mulher da favela, ela era negra, ela era lésbica. Defendeu todas aquelas populações marginalizadas pelo sistema. Foi votado por muitos dos jovens da cidade, e não apenas das favelas. Quando ela foi morta, houve manifestações por todo o Rio de Janeiro e outras cidades do Brasil. Foi uma pessoa que fez política de cidadania: junto com o povo, junto com os movimentos juvenis. Isso ameaçava os poderes do Estado.

A entrada de mulheres da favela na política é um fenômeno novo. Antes, os movimentos de bairro eram muito antiestatais, como os movimentos sociais em geral. Há uma mudança mais recente no sentido de que passam a disputar essa arena de representação. Mas com um impulso bem diferente, na forma das mandatas, que são grupos em que uma candidata é eleita, mas todas participam da representação. Matar Marielle foi uma tentativa de impedir que aquela voz saísse. Mas aquelas mulheres que eram do seu grupo, que eram negras e das favelas, foram eleitas para o Legislativo para dar continuidade ao seu legado. Houve uma reprodução e aumento da participação desses grupos.

Presumimos que a voz de Marielle não poderia ser silenciada. O Dicionário é um compromisso com sua voz, com suas bandeiras: defendemos o povo das favelas, a população negra, a juventude, o coletivo LGTBIQ+. Abrimos um espaço para que sua voz circule pela cidade. É por isso que o nomeamos em sua homenagem.

No artigo publicado na revista da Universidade Nacional de Lanús vocês afirmam que o Dicionário não é suficiente para gerar uma mudança na subjetividade do sujeito da favela. O que poderia efetivamente ser a força motriz dessa transformação?

Há um autor originário de uma favela de São Paulo, Tiarajú Pablo D’Andrea, que criou um conceito muito interessante que é o de “sujeito periférico”. A discussão do processo de subjetivação dos moradores das favelas está acontecendo; o Dicionário não vai criar isso, somos parte de algo que está em andamento. A proposta do autor é que antes os partidos de esquerda ou grupos eclesiásticos de base iam para esses bairros para organizar as pessoas a partir de um conceito de carência, de necessidades insatisfeitas. O que D’Andrea diz é que esta abordagem não aumenta a autoestima de ninguém: colocar-se como pobre, como carente. No novo processo de subjetivação que está em curso, aquele jovem da favela que antes tinha medo de dizer onde morava quando procurava um emprego ou quando se candidatava, hoje não vive dessa forma. Agora gera para ele um certo orgulho.

É através da cultura, da poesia, da dança, do teatro, da música, como o hip hop ou o funk, que essas pessoas começaram a se manifestar de um lado não da falta, mas do poder. Hoje os jovens são empoderados, como pessoas que possuem uma identidade positiva. Este é um processo muito recente de construção de uma cidadania insurgente e coletiva. Essas novas formas de organização serão um desafio para as eleições presidenciais deste ano, especialmente para Lula. Porque ele se baseava no trabalho formal, organizado, sindical, uma forma mais tradicional. Mas há alguns anos, o Movimento dos Sem Terra ganhou muita força e apareceu como um ator político muito importante. Também o Movimento dos Sem-teto, organizado a partir da falta de moradia popular. São sujeitos políticos com os quais ele precisará se articular para governar.

Mas nas favelas também há grupos muito reacionários ligados a Bolsonaro, os evangélicos/pentecostais, que cresceram enormemente em todas as periferias. Então, você tem aquele grupo de jovens mais insurgente e outro mais tradicionalista, que vê uma proposta religiosa que também os valoriza como pessoas, que tira deles o estigma da marginalidade. Essa vai ser a grande disputa das eleições. Bolsonaro vai ter muito apoio dos chefes dessas igrejas, que são como uma máfia e que têm, no Brasil, um projeto político próprio.

* Especialista em assuntos latino-americanos, foi consultor da CEPAL e assessor estratégico do governo do Chile (2014-2018). Hoje, trabalha em assuntos humanitários para questões de imigração.

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