A corrupção do jornalismo e seu ato de força sobre os repórteres

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Por Alvaro Miranda, publicado em Jornal GGN – 

Engana-se quem imagina uma redação de jornalistas como espaço de debate democrático ou expressão de conversas intelectuais travadas entre “pesquisadores sociais”. O fechamento de um jornal é um ato de força.

A corrupção do jornalismo brasileiro dos grandes meios de comunicação pode ser descrita, de forma esquemática e resumida, em duas dimensões. A primeira diz respeito à sua própria natureza capitalista, isto é, os interesses em jogo dos barões da mídia que se fazem passar como representantes da “opinião pública” de toda sociedade. Opinião pública que não existe concretamente – mas sim artifício que direciona opiniões de públicos.

No seu clássico “Mudança estrutural da esfera pública”, Jurgen Habermas definiu opinião pública como o fenômeno surgido nos cafés parisienses do século XVIII, onde se debatia o que os jornais e folhetins da época publicavam.




Essa dimensão vem sendo desmascarada há tempos, como a própria democracia em sua forma liberal capitalista, mas ficou agora numa berlinda vergonhosa com o episódio da Vaza-Jato. Revelou-se tão corrupta como qualquer corrupto de colarinho branco ou do mais baixo clero de políticos que transformam seus mandatos em balcões de negócios.

Tal suposto caráter de “representação da opinião pública” pode ser enquadrada naquilo que o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos chama de “clientelismo concentrado”. Auferem muitos recursos em parceria com determinadas elites políticas e econômicas, distribuindo seus custos, de maneira difusa, para a maioria da sociedade.

Funcionam como partidos políticos sem dizerem que são partidários desse ou daquele interesse. As articulações que fazem com as demais forças hegemônicas, na disputa por resultados de políticas públicas, visa à obtenção, claro, de grande quantidade de recursos públicos (através da publicidade), além dos provenientes das relações comerciais privadas e seus investimentos no mercado financeiro. Obviamente, distribuem seus custos para a maioria da sociedade de forma oculta.

Já a segunda dimensão diz respeito à burocratização da produção da notícia em que os jornalistas fazem parte do jogo como peças reificadas da engrenagem. É uma situação na qual a produção da notícia ocorre num processo complexo e contraditório nas redações de jornais impressos e de emissoras de rádio e televisão. Diretores, editores, subeditores e chefias funcionam como espécie de prepostos dos donos dos meios para impor a ordem burocrática da produção da notícia aos repórteres e profissionais de escalões inferiores. O ambiente descontraído esconde a rigidez da  hierarquia altamente verticalizada.

No caso dos escalões mais altos, são nevrálgicas, muitas vezes, as interfaces, por exemplo, com os setores comercial e financeiro da empresa. Entretanto, ao longo do tempo, esses setores foram  “aglutinando” estratégias e unificando objetivos cotidianos mais como empresa capitalista assemelhada a qualquer outra do que empresa jornalística.

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Uma das armas dessa dominação é a estratificação salarial e, obviamente, a possibilidade de demissão de quem não seguir as regras, como em qualquer empresa privada. A “divisão de classes” nas redações consiste em poucos profissionais no comando ganhando uma fábula de dinheiro – e a grande maioria, sonhadora e idealista, recebendo salários baixos num forte esquema de exploração da carga horária e das energias intelectuais de cada um.

Os repórteres – que fazem o “grosso” do jornalismo –, também com salários bem diferenciados entre si, vão atrás da notícia “conformados” previamente do que se pode noticiar e de que maneira se pode noticiar pelas empresas em que trabalham. Internalizam a “linha editorial” que funciona como bússola no tratamento das notícias. Acabam conformando sua própria visão de mundo.

Engana-se quem imagina uma redação de jornalistas como espaço de debate democrático ou expressão de conversas intelectuais travadas entre “pesquisadores sociais”. O fechamento de um jornal é um ato de força. Tem que ser fechado em determinado momento diário ou semanal, haja ou não notícia. Se não houver, fabrica-se uma ou tira-se alguma pronta da gaveta.

Determinados jornalistas dedicam-se ao que se convencionou chamar, nos últimos anos, de “jornalismo investigativo”, um pleonasmo, pois, na minha época, todo jornalista fazia investigação dos fatos e dos problemas. Investigação jornalística é sinônimo de apuração e reportagem, nunca se confundindo com investigação policial, como bem ensinou Gleen Greenewald aos que o entrevistaram no programa Roda Viva, da TV Cultura.

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Outros são escalados para fazer o dia a dia noticioso, cobrindo e acompanhando o que pode ser objeto de “suíte”, ou seja, aquilo que, como diz o jargão profissional, é o desdobramento da notícia nos dias subsequentes ao primeiro fato noticiado. Suítes de casos rumorosos duram dias e meses, mas outras duram anos, transformando-se em verdadeiras campanhas políticas para conformar e definir a agenda nacional, a exemplo da Lava Jato.

Uma das principais contradições no relacionamento dessas duas dimensões (a capitalista e a burocrático funcional) ocorre por ocasião de fatos impossíveis de serem negados e que podem ferir interesses dos donos dos meios de comunicação.

Exemplo simples: um deputado amigo do dono do jornal flagrado na lei seca. Não há como o jornal deixar de noticiar porque os demais concorrentes também estão em cima do fato. A questão é o tratamento que se dá à notícia. É de se imaginar, pois, essa contradição nos meios de comunicação sócios da Lava Jato diante dos fatos trazidos à tona pelo The Intercept Brasil.

Como se resolve e se processa a contradição? Através de diferentes recursos ditos “jornalísticos”, tais como a manipulação editorial em termos de tempo para essa ou aquela notícia nos meios eletrônicos; o tratamento dos fatos, em termos de linguagem, com mais ou menos ênfase; o silêncio total ou a omissão de partes do fato; a hierarquização editorial e gráfica, com maior ou menor destaque na página impressa ou na tela; a distorção de imagens; o fundo de tela do noticiário televisivo com tubulações de óleo jorrando cédulas de dinheiro; a foto maior ou menor; também o tempo maior ou menor para determinados entrevistados, além de outros tantos artifícios que já fazem parte do processo burocratizado (e escandaloso) da produção diária da notícia.

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A própria burocratização se torna uma espécie de gaiola de ferro, como arma de manipulação, tanto para a produção do objeto como para as injeções de ânimo ideológico de muitos jornalistas. É como se repórteres não tivessem muita margem de manobra, pois sabem tanto o que pode ser publicado e como deve ser publicado.

Evidente que não estou contemporizando, dizendo aqui que jornalistas são coitadinhos manipulados pelos donos dos meios de comunicação através de seus editores quase milionários. Mas sim que, com dezenas de exceções, os próprios profissionais internalizam, através de um processo muitas vezes deliberado, outras vezes inconsciente, os valores dos patrões como sendo os do bom jornalismo. Tornam-se involuntariamente “sócios” de determinados interesses, acreditando em uma suposta missão de opinião pública.

Para encerrar, conto um pequeno episódio sobre situação na qual eu estava como assessor de imprensa de importante autoridade do setor público. O repórter do grande jornal chegou dizendo que queria saber “onde estava a sacanagem”, que ele estava “atrás da sacanagem”. Não queria mais nada, só a “sacanagem”. A autoridade, obviamente, ficou perplexa, não sabendo se o jornalista o presumia como cúmplice da “sacanagem” ou se o repórter já sabia onde estava a tal “sacanagem” e queria apenas confirmá-la.

O fato parece banal e corriqueiro, mas revela a que ponto chegou o espírito do denuncismo na emulação profissional de dar furos jornalísticos. Bem na linha do jornalista que tentou ponderar ao Gleen, no Roda Viva, que se a Lava Jato não vazasse informações, em sua prática destruidora de reputações e de investigações forjadas, a imprensa não teria notícia.

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