A Corte Coruja e os desafios dos movimentos democráticos, sindicais e populares

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Por Luiz Antônio Alves de Azevedo

Em face da derrota do projeto democrático popular de esquerda por um articulado golpe político, consolidado com a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018, ganha importância a necessidade da realização de diálogos e planejamentos estrategicamente articulados em todas as esferas e áreas do movimento social e de esquerda.




É inegável que no campo das articulações houve um avanço significativo na esquerda, que conseguiu reagir e definir suas prioridades frente a um processo político construído nesta última década, acentuadamente a partir de 2011, com apoio estratégico e de infraestrutura internacional. Processo ainda não completamente vitorioso com a vitória de Bolsonaro. Inspirados nos pilares da teoria penal do inimigo buscam eliminar os indesejáveis e, assim, garantir a manutenção de um regime de espoliação, tendo os EUA como pátria mãe.

Na vitória de Trump, na primavera Árabe, no Brexit e nas eleições brasileiras a guerra hibrida foi largamente utilizada. Em um contexto, no qual há uma adesão próxima de 100% às redes, como Facebook e Instagram, dentre outras, e distintos meios de manter as pessoas conectadas, como whatsapp, o poder dos portadores de tecnologia e daqueles que têm capital para comprar seu acesso aos “interesses e ideias” de segmentos da sociedade tornou-se decisivo nas disputas pelo poder.

Neste mundo globalizado domina o “príncipe eletrônico” (Ianni, 1998), autoridade máxima na guerra hibrida, que vive na Corte da Coruja, inicialmente liderada por Eduardo Cunha e que agora recebe novos vilões. Ali, além do Coringa, atualmente cumprindo pena, temos personalidades semelhantes ao Victor Zsasz, o assassino; o professor Pyg, mentalmente perturbado, obcecado por transformações físicas e comandando um exército de “Dollotrons” hipnotizados. Há ainda a Lady Shiva, que vagueia buscando inimigos para derrubar e provar sua força e destreza; e o Ventríloquo, dentre muitos outros, vilões com ideias e práticas diversas, muitas das quais condenadas pelos fiéis que os elegeram. Não exige muito esforço estabelecer conexões entre os vilões da Corte da Coruja e os novos e velhos personagens da atual luta hibrida no Brasil.

O príncipe desta Corte da Coruja, mais conhecida entre nós como Casa Grande, é um serviçal de quem de fato detém o poder, frente ao sistemático enfraquecimento dos Estados Nação. Nesta corte o príncipe é digital e serve a uma fase superior do imperialismo, caracterizada pela imensa concentração bélica, do capital e das riquezas nas mãos dos megagrupos econômicos a quem servem. A cena do candidato Bolsonaro beijando e batendo continência para a bandeira americana é um reflexo disso. Concentrados, mas em uma disputa mais ampla do que a bipolar que a antecedeu. Os BRICS se anunciavam como uma articulação alternativa.

A vitória de um candidato do campo popular de esquerda, o protagonismo exercido por Lula na construção dos BRICS e a descoberta do pré-sal colocou o Brasil no centro de uma guerra que já não é bipolar. É hibrida. Além de muito petróleo, rico em minerais como ferro e nióbio, o Brasil tem uma das maiores reservas de água doce e a maior floresta tropical do planeta. Assim como a Venezuela, que já vem sofrendo ataques sistemáticos há mais tempo, por ser uma das maiores reservas de petróleo do planeta, os ataques à esquerda no Brasil ganharam relevância em 2013, com as manifestações verde e amarelas nas ruas.

Sinto dizer, mas os programas de governo, que retiraram milhares de pessoas da miséria e da fome, e a defesa de direitos humanos foram razões que facilitaram a conquista de adeptos no Brasil à guerra hibrida, hegemonizada pelos americanos. A nossa Casa Grande, com a qual a classe média sempre conviveu, sentiu os espaços de poder político e econômico sendo invadidos pelos de baixo e aproveitou a primeira oportunidade para sair do armário.

Neste novo contexto, os velhos príncipes, o Estado, os partidos e as organizações de representação, foram sistematicamente combatidas em uma guerra hibrida sistemática. E nestas cinzas personagens parecidos com o Coringa foram encarcerados. Cercando os cadáveres e se alimentando como hiena emergiu com apoio americano um novo personagem, que reconstrói a repovoa a Casa da Coruja, com novos vilões.

Utilizando o domínio das informações e das ferramentas de comunicação em rede, como facebook, instagram e whatsapp, fornecidas pelos americanos, o novo personagem e os vilões forjados no movimento pelo impeachment de Dilma Roussef, ganham força e derrotam a esquerda, mas também o PSDB e outros partidos tradicionais. A Casa Grande e os comensais que vivem se suas migalhas festejaram ao lado dos grandes grupos internacionais. Uma nova correlação de forças se estabelece, com uma composição predominantemente de direita no Congresso.

Mas, a guerra hibrida é feita de muitas batalhas. O PT perdeu as eleições, mas não foi exterminado, como pretendiam PSDB, DEM, a Globo, Record, banqueiros e grandes industriais e comerciantes como o dono da Havan. Elegeu quatro governadores e a maior bancada na Câmara dos Deputados. No âmbito internacional a situação ainda é tensa e muitas batalhas serão travadas.

Neste contexto, não basta se limitar a buscar erros e equívocos de partidos e governos democrático populares. Isso é importante, mas secundário no atual contexto. A rede Globo se ajustará ao novo sistema, sustentado pela Record, Bandeirantes e pelo projeto de guerra hibrida em suas próximas batalhas.

O que está no centro das nossas batalhas é mais do que o controle de ferramentas de difusão de informações e opiniões. Trata-se de ter em mãos uma completa radiografia do público que se pretende atingir, com seus desejos, angustias, opiniões e expectativas. E de forma segmentada, para que a disputa incorpore os sentimentos e emoções de cada público. Estas são questões essenciais para qualquer projeto de manutenção ou disputa de poder.

Por seu intermédio circulam pelas redes enorme quantidade de informações, a maioria de baixa qualidade, com a agilidade e baixa previsibilidade dos acontecimentos em um mundo cada vez mais global, desregulado pelos estados, dominado pela incerteza e por regras impostas pelo grande capital, por empresas multinacionais com muito mais poder do que grande parte dos Estados Nacionais.

Nesta nova situação, a reflexão estratégica ganha relevância. É preciso compreender o que se passa no Brasil e no mundo, com profundidade. Sem entender o que permitem as ferramentas largamente utilizadas na guerra hibrida, os movimentos e as ações frente às imposições políticas, ideológicas e econômicas do grande capital permanecerão dominados pela resistência e pelo imediato. E continuará com baixa compreensão do que se passa e fraco poder de fogo frente aos diversos meios de comunicação, controle e formação de vontades e opiniões dos adversários.

A Corte da Coruja, na qual vivem o Príncipe e seus vilões, é o retorno de nossa Casa Grande, tecnologicamente modernizada, em um país que não reconhece os direitos fundamentais do ser humano. O país está muito mais do que dividido. Está profundamente fracionado e milhares de pobres e excluídos passaram a ser considerados indesejáveis.  Passam a ser assim caracterizados aqueles com baixo ou insignificante valor no consumo de mercadorias de interesse da Casa Grande e os considerados como irrelevantes na produção e na composição do exército de reserva de mão de obra.

Neste novo Brasil só há espaço para sindicatos de trabalhadores alinhados com os interesses de uma classe patronal que considera o custo do trabalho sua desvantagem competitiva. E, por isto mesmo, vem aí a quebra da unicidade na forma de uma liberdade sindical canhestra, desatrelada de direitos sindicais elementares, visando única e exclusivamente enfraquecer os já combalidos sindicatos brasileiros.

A classe proprietária predominante e os comensais que vivem a seu redor como defensores de um status quo que não permite aos de baixo ascender aos espaços por eles reservados aos de cima. Este é o país no qual as lutas de classe vão se desenvolver no próximo período. Em uma correlação de forças desfavorável, derivada da pior composição do Congresso Nacional já conhecida, de uma opinião pública desiludida e dominada cada vez mais pelos valores pentecostais, e pelo controle dos grandes grupos sobre as grandes redes, que fornecem aos nossos adversários informações e cadastros de cada segmento social, com seus desejos, angustias e expectativas.

Neste novo contexto, urge que a esquerda e as organizações políticas, sindicais e sociais, estabeleçam diálogos estratégicos em torno de uma agenda de resistência, mas procurando superar as demandas imediatas e as avaliações na base do “eu acho que”. Não bastam planejamentos normativos e isolados da mesma forma que são absolutamente insuficientes as formas de organização presenciais tradicionais. Construir redes em torno de causas (objetivos, problemas ou demandas), nas quais haja interação, com diálogo em diversas direções e em tempo real.

O mundo está em rede e as organizações necessitam definir objetivos estratégicos e situações objetivos considerando esta nova realidade. Fazer a leitura da realidade por meio de outros mecanismos, além dos tradicionalmente utilizados. Os planos derivados deste processo precisam estar alinhados e geridos em um sistema matricial, horizontal e verticalmente construído. Desta forma em cada uma das esferas, nacional, estadual e municipal faz-se o alinhamento horizontal e, em cada âmbito, cadeia de produção, macro setor, ramo, categoria, faz-se o alinhamento vertical.

As metodologias situacionais de planejamentos sempre valorizaram a gestão como um de seus momentos. No PES, planejamento estratégico situacional, a gestão é o momento tático-operacional, quando o cálculo que precede e preside a ação se efetiva na prática. No contexto atual, de alta incerteza, agitado por ações e movimentos de forças em diversas direções,  a gestão estratégica, focada na situação que se pretende construir e nos objetivos que se pretende alcançar ganha enorme relevância, exigindo do evento de planejamento prioridade na análise situacional e nas definições estratégicas.

Os desdobramentos e alinhamentos horizontal e vertical e a gestão dos planos adquirem valor estratégico. Mentes distraídas pelas tempestades deformadas serão incapazes de liderar movimentos com a força necessária. Mais do que uma sala de situação, as organizações precisam de uma direção com domínio de suas causas e projetos e com versatilidade no manejo de ferramentas essenciais na guerra hibrida, enfim, em uma guerra de posições moderna.

É preciso conquistar dirigentes e militantes, especialmente jovens, para esta nova guerra de posições em um ambiente de combate hibrido. Alertando-os sobre a necessidade de agir nestes ambientes orientados por objetivos estratégicos coletivamente construídos a partir de demandas e necessidades reais da classe trabalhadora e do povo oprimido que se busca representar.

Em 1998, Marco Aurélio Nogueira[2], um intelectual orgânico nos movimentos de esquerda, referindo-se ao período do governo FHC,“a época precisa de uma esquerda vigorosa, ciente dos desafios, impregnada de valores e utopias, disposta a resgatar uma combatividade política inteligente, democrática e de massas”. Mais que isso, é preciso “reafirmar a consanguinidade entre reformismo e esquerda e demonstrar que a concepção de reforma que tem a esquerda é a única capaz de se pôr na perspectiva da totalidade dos homens, dos iguais e, particularmente dos desiguais” (NOGUEIRA, 1998, p. 17).

Palavras que devem ser reescritas para o cenário atual. Para conseguir ser aquela esquerda vigorosa citada, nos dias atuais ganha relevância conhecer como se articulam e quais são os interesses da Corte da Coruja, nossa Casa Grande moderna. É necessário que os diálogos estratégicos e os planejamentos que o acompanham sejam produtos de uma profunda compreensão da nova realidade na qual estamos inseridos.

Que considere a guerra de posições em contexto de guerra hibrida. Que as causas estejam conectadas com as mentes e corações de quem se pretende organizar. Neste caminho é imprescindível que a esquerda consiga ser portadora de um projeto capaz de empolgar e mobilizar a classe que vive de seu próprio trabalho, os jovens rurais e urbanos, especialmente das periferias, as classes populares de homens e mulheres pobres.

Não se faz isso reproduzindo ataques de ódio, semelhante aos dos direitistas. Eles fomentam e manobram ódios detectados nas redes, dirigindo-os para os alvos que selecionam. Buscam distrair, desfocar e colocar as classes populares a serviço de seus interesses.

Alinhar os planos de ação de cada organização, seja ela sindicato ou central, diretório ou direção nacional de partidos, entidades e organizações populares de bairros ou nacionais, movimentos ambientais, de gênero, etnia ou em busca de direitos difusos.

Quaisquer que sejam as organizações, por meio de diálogos estratégicos e planejamentos alinhados um grupo selecionado deve trabalhar intensamente para construir uma nova base e os pilares a partir dos quais todos e todas se organizarão para as batalhas, sejam elas de resistência ou movimentos e deslocamentos em direção à situação objetivo. Isto é impossível sem um amplo consenso em torno da nova realidade, das forças adversárias, de suas novas armas e interesses.

Muitos são os caminhos e todos devem ser considerados e discutidos. Mas não se faz isso sem furar a bolha sem que a esquerda tenha uma proposta completa de um novo sistema político de organização e representação popular para apresentar. É preciso superar o desacreditado sistema político que aí está.

Estamos falando de agregar às nossas visões um novo projeto de poder, com narrativas e discursos renovados, com redefinições programáticas e organizativas. Pensar organizações renovadas que efetivamente disputem a hegemonia no campo das ideias e das práticas políticas, reconquistando amplas parcelas da sociedade, para um novo sistema político. Enfim, a partir dos sentimentos, angustias, expectativas reais, detectados em momentos presenciais e pesquisas, mas também por meio de análise de bancos de dados construir causas e disputar mentes e corações.

Em contraposição ao senso comum derivado de sistemática campanha contra a política, os diálogos estratégicos e planos alinhados devem apresentar um sistema renovado, que contemple elementos de democracia que assegurem uma participação efetiva, em diversas mãos, transparente e subordinada aos compromissos assumidos.

Desse ponto de vista, o momento é ótimo para exercícios de planejamento, de probabilidade e de reativação utópica. Ou será que as chances de um futuro melhor aumentarão sem a presença de uma esquerda vigorosa, ciente de si e de suas responsabilidades? (NOGUEIRA, 1998, p. 18)

Enfim, na disputa com o governo Bolsonaro e as forças sociais e políticas que lhe dão sustentação é necessário organizar uma oposição capaz de revelar as contradições, as rupturas de compromissos e de práticas políticas condenadas pelo então candidato.

Imediatamente algumas frentes já se apresentam:

  1. Defesa de direitos, com a reforma de previdência que poderá ser votada ainda este ano de 2018.
  2. Defesa da democracia, do Estado de Direito, da liberdade de expressão e organização e da liberdade de Lula.
  3. Defesa da soberania nacional, de nosso patrimônio e de nossas riquezas. Está aí a seção onerosa do petróleo e de nossos minérios e os projetos de privatização.
  4. Defesa da organização sindical, que será atacada por todos os lados, como pretende o PSL com o projeto de fim da unicidade, que se torna péssimo em um contexto de exceção como o atual.

Ciente de que nossos líderes na CUT, no PT, no PSOL, no MTST, no MST, dentre outras organizações, estão trabalhando e fazendo seus planejamentos minha sugestão é que se busque articular e potencializar os movimentos. Mais que isso, é preciso que alvos e objetivos estratégicos em comum sejam definidos e que haja um esforço comum para acompanhar os movimentos do campo popular e das forças contrarias, fornecendo as bases para o cálculo que as direções devem realizar em suas decisões táticas e operacionais.

[1] Luiz Antonio Alves de Azevedo é sociólogo, sócio da empresa Veredas Inteligência Estratégica (www.veredasie.com.br). Foi Secretario Executivo na Secretaria de Governo, no Ministério das Comunicações, na SRI, dentre outras responsabilidade assumidas em seus 45 anos de trabalho.

[2] Nogueira, Marco Aurélio. As possibilidades da Política, Editora Paz e Terra, 1998, São Paulo.

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