E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, envia uma carta para um amigo em comum. Gigante do Sul é a expressão utilizada pelo cronista César a respeito do grande cantor e compositor Marco Aurélio, gaúcho dos melhores. Eu, editor Washington, o César e o Marco Aurélio mantemos um grupo de três no WatsApp, no qual trocamos ideias. O nome do grupo é Letreiros.
Beija-Flor, 26 de maio de 2025.
Prezado Gigante, eis que a foto que postaste me fez este rebuliço na alma. Não imaginas quanto eu fiquei feliz com a foto do menino a brincar com a tropa de ossos. Fiquei exultante. Não sei se há cabimento em te fazer uma estranha confidência: meus filhos poucas vezes viram animais da fazenda. Talvez duas vezes apenas. Eu mesmo saí pouco dos campos dos prédios.
Em virtude do que foi dito acima, peço-te perdão de antemão por eventuais escorregões no texto. As lacunas em decorrência da falta de conhecimento são preenchidas pela imaginação, que dão margem a certas liberdades poéticas.
Quase que por derradeiro, digo sem mais delongas que dedico o texto abaixo à tua pessoa, pelo que representas para mim, para o nosso estimado editor, e para muitas pessoas. Se assim me for permitido, gostaria que o texto fosse publicado no Bem Blogado.
Um grande abraço,
Cícero.
Estância da Ferradura
De costas para as lentes do fotógrafo brincava o menino, o estancieiro da Estância da Ferradura. Sua propriedade era cercada por estacas feitas de cabos de vassoura. Em vez de arame farpado, cordas de varal delimitavam a amplidão. E o carrinho de boi estava por perto para qualquer eventualidade.
Eram duas as criações: uma de gado, a outra de ovelhas. Ambas feitas de ossos, devidamente lavados no balde com água de arroio e enxugados um a um com fina estopa. O rebanho era todo branco branquinho, mas o menino ainda assim os distinguia. É o olho do dono que agrada o gado. Bastava um olhar e se viam minúcias. Ali era o Estrela, acolá o Véu de Noiva. Mais adiante a família Coalhada, parentada do Nuvem de Verão. E a turma do Erva-Mate, que o menino batizara por assemelhança. E havia outras, que ele apontava, deduzia. As ovelhinhas eram todas filhas de Deus, todas para sempre tosqueadas, uma vez que a mãe não lhe cedera o algodão para cobri-las. Com esse algodão não se brinca, guri.
Na Ferradura, o chão era de terra batida. Abate, pra quê? Quando no máximo, certo confinamento, limitações impostas pela realidade em diálogo com a imaginação. O menino brincava sozinho. Brincava. Reinava. À sua frente, o prado verde, verdes campos do senhor, de verdade, com estacas e arame farpado.
Todo o rebanho saudável sem afetações de aftsosa. Na brincadeira, o menininho ia se assuntando para quando fosse grande. Mas por enquanto, não. Por enquanto, era época de fiar bem as coisas, de por selas e arreios na criação sem perder as estribeiras.
De longe, a depender da perspectiva, não é que o conjunto parecia gado sossegado? Era assim que a gente fantasiava, retornava à infância, não se perdia, acendia uma vela ao Negrinho do Pastoreiro. Tropinha de ossos, feijão tropeiro, charque, comércios do couro, grandes feiras, grandes silos. Haja roda de carroça, que a gente não usa mais. É como uma marca dos tempos, como a ferradura na porteira da estância.
Presépio, presépio enorme para além das festas natalinas. Guardador de rebanhos, daquela ovelhinhas tiraremos o leite para nosso sustento. Leite, leito, leitor, homem grande de chapéu e especialmente de lenço vermelho no pescoço. Voz boa, autodidata, intuitivo. Muito do que viu se impregnou no pequeno laçador. Reminiscências. Fronteiras. As duas línguas se mesclando. Bueno, bueno.
A vida no campo não é fácil. Mas a vida não é fácil, pirilampo. Alguns trocaram o chimarrão pelo tererê, era o que pai dizia, era o que o menino ouvia. E o que a gente ouve por vezes é mais do que houve, muito do mais. Conversas de tropeiro ao redor do fogo nos dão bons ouvidos, olvidos.
Depois vinha geada, frio de cobrir a terra. O menino então tropeava, se é que isso existe, para dentro de casa. Assoalho, assoar o nariz, menino, por que não te cobres com o ponche? É caldo, beba, menino, daqui a pouco passa.
Depois, mais cedo ou mais tarde, vinha o sol. Era sempre assim, tinha que esperar. Imponente, mas cadê que o amarelo esquentava? Lenha úmida não dá bom fogo. Nem pega, é isso, nem pega. Ainda não, espera mais um pouco, o chão está frio, faz aquela lama lisa escorregadia. Cuidado, menino. Estás vendo aquelas ali? São aves de arribação. Vão se embora, estão chegando. Água fria que nem pedra.
Mas, protegidos de todas as intempéries, está o rebanho da Estância da Ferradura, à espera da morena ou da loura de olhos verdes, que nos cravam os raios de sol dos olhos, que nos submetem a estranhas caiãbras. Guilhermina, Guilermina, eis o nome do amor revelado.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.