Entrevista com Larissa Packer, sobre o agronegócio e a crise ambiental
Por Fernanda Alcântara, compartilhado de MST
“Os países precisam sair desse ciclo vicioso de destinar o orçamento público, terras e subsídios para financiar os agentes que provocam a crise [climática]”. A frase de Larissa Packer é o guia para esta segunda parte da entrevista exclusiva com a advogada socioambiental que, a partir de pesquisas e números, traz discussões de como a fome virou um negócio na América Latina e como muitos projetos e investimentos considerados “verdes” acabam beneficiando as corporações que contribuíram para a crise ambiental e climática.
Enquanto na primeira parte da entrevista a advogada socioambiental discute a economia verde, que transforma bens comuns em ativos financeiros, nesta segunda parte Packer se concentra em aprofundar a reflexão na perspectiva latino-americana, apontando que a crise não se limita à alimentação ou ao clima, mas é uma crise civilizacional gerada pelo modo de produção e consumo inserido no capitalismo.
Confira:
Parte significativa da economia na América do Sul é tomada por conglomerados agroalimentares. Vemos que metade das terras na América Latina está nas mãos de 1% de grandes e médios proprietários rurais, grande parte delas terras públicas destinadas e apropriadas indevidamente.
Esses conglomerados agroalimentares, na realidade, são grandes obras públicas. Desde os anos 60, naquilo que se conformou chamar de “guerra contra a fome”, os Estados Unidos investiram muitos recursos públicos, retirando inclusive os subsídios aos farmers — pequenos agricultores — para construir aquilo que seriam hoje essas grandes transnacionais alimentares, como Monsanto, ADM, Cargill, e empresas que financiaram o deslocamento dessas empresas para países que teoricamente precisariam de ajuda humanitária, “as nações famintas”.
Então a solução “para aplacar a fome”, mas ao mesmo tempo realizar um controle hemisférico dos Estados Unidos sobre a América Latina, passava justamente pela exportação de capitais e a exportação das suas empresas – que se tornariam grandes conglomerados agrícolas – para as ditaduras latino-americanas, à custa do endividamento desses países. Orçamento público acabou financiando a entrada dessas empresas e dos seus produtos na região. E isso acaba levando a que, historicamente, os Estados da América Latina e Caribe conduzem uma política fundiária, cambial, tributária e trabalhista orientada aos interesses dessas indústrias.
Há também uma histórica desvalorização das moedas dos países para estimular a exportação dos produtos da indústria extrativa, minerária e agroalimentar. Compensa muito mais você plantar monocultivo de poucas espécies e poucas variedades e consumir os insumos desses conglomerados. São sementes transgênicas de soja, milho, algodão, agrotóxicos como glifosato, fertilizantes. A América Latina importa 85% de fertilizantes, o que faz com que o faturamento desses conglomerados dependa do mercado consumidor e agrícola da América Latina, principalmente aqui.
No Brasil, o faturamento dessas corporações do agronegócio aumentou em quase 35% em 2021, o maior incremento do setor, principalmente de agrotóxicos e insumos. Na época, o governo Bolsonaro liberou mais de 2.000 agrotóxicos nos quatro anos de governo, um recorde histórico“.
Isso também não mudou muito no governo Lula. Além disso, há os subsídios e baixos impostos sobre as commodities, como a Lei Kandir, que não incide imposto sobre a exportação dos produtos minerários e agrícolas e, assim, constrói-se, a partir do orçamento público dos países, sistemas alimentares completamente dominados por essas corporações agroalimentares. De um lado, na compra de insumos e fertilizantes, maquinários, sementes com suas patentes, que também controlam a hegemonia desse mercado, e, de outro, as empresas que compram os grãos e trabalham com a logística de exportação, formando um oligopólio que controla esse mercado em torno de quatro corporações. Isso acaba impondo e achatando os preços dos produtores, garantindo a exploração dos produtores por esses conglomerados, incentivado pelos governos da região.
A América Latina é a maior região exportadora de soja, milho, carne bovina e de aves do mundo, duplicou seu número de pessoas com fome, segundo levantamento da FAO, em 2022.
No início dos anos 80, eram empresas familiares de sementes que trabalhavam com a seleção e o comércio das mesmas. Elas não dominavam nem 1% do mercado mundial. Agora, com o controle da propriedade intelectual dessas sementes e agrotóxicos associados a elas e a compra da indústria de sementes pela indústria química, de agrotóxicos e farmacêutica, você tem hoje um panorama em que metade das sementes comerciais do mundo e 75% do mercado de agrotóxicos em 2022 são controlados pelo que chamamos de as “quatro gordas”, ou seja, as quatro grandes corporações de sementes e agrotóxicos: Bayer, que hoje detém a Monsanto, de origem alemã; Syngenta, detida pela China; Corteva, fusão da Dow com a Dupont nos Estados Unidos; e BASF, também alemã.
Além disso, esses fundos financeiros que gestionam ativos têm uma participação importante nessas corporações agroalimentares, visando os interesses das corporações e a necessidade de rentabilidade e distribuição dos lucros para os acionistas. Cerca de 12% da Syngenta e 32% da Dupont são detidas pela BlackRock, Vanguard, State Street Corporation e Fidelity, esses grupos que eu falei anteriormente.
Com isso, temos um oligopólio e uma financeirização em torno dessas empresas, o que faz com que a América Latina seja, por um lado, a maior região exportadora de alimentos do mundo, o Brasil um dos maiores exportadores de soja, milho, carne e frango, mas, ao mesmo tempo, mais da metade da população brasileira estava com algum grau de insegurança alimentar, e 33 milhões de pessoas passando fome, em 2022.
Isso provoca uma transformação nos sistemas alimentares em um negócio da fome, com a desculpa de acabar com a fome, com imensos subsídios dos estados, tanto ao entregar terras como ao entregar o orçamento público em subsídios, crédito e ausência de taxação de impostos para essas corporações, tanto as de sementes, agrotóxicos, fertilizantes, maquinários, quanto as compradoras de grãos e supermercados que controlam cada etapa da cadeia.
E tudo isso está relacionado com a crise climática?
Exatamente. Os solos, a água e o orçamento de toda a população são capturados por essas empresas, não para produzir alimentos, mas commodities agrícolas com grande impacto ambiental e climático. Essa concentração e controle das terras e dos recursos para a produção de commodities e sua exportação geram um grande impacto, não só gerando insegurança alimentar e nutricional para as populações nos países, mas também aprofundando uma crise climática global, já que essa cadeia agroalimentar concentrada e petrodependente é um dos principais fatores que provoca a crise climática.
Nas contas do Grain, mais ou menos de 15 a 18% dessas emissões de gases do efeito estufa viriam das mudanças de uso do solo e do desmatamento, justamente para ampliação da pecuária e para ampliação dos monocultivo de produtos primários, como a soja, o milho. A agricultura em si seria responsável de 11 a 15% dessas emissões; a parte de transporte, processamento, empacotamento e a parte dos supermercados seria responsável de 15 a 20% das emissões; e o lixo, o desperdício ao longo da cadeia seria responsável de 3 a 4% dessas emissões. O IPCC fala em até 8% das emissões vindas desse desperdício dos alimentos.
No Brasil, dois terços do total das emissões vêm do setor agrícola, sendo 27% da produção em si e 46% das mudanças no uso do solo, onde está inserido o desmatamento. Cerca de 65% vêm da fermentação do gado; 29% da gestão do solo, como por exemplo, a aplicação de cal e 18% vêm dos fertilizantes sintéticos.
Isso porque o país tinha uma meta voluntária no Acordo de Paris para 2020, de reduzir em até 80% a média das emissões na Amazônia entre 1996 e 2005, o que daria menos de 4 mil quilômetros quadrados. Em 2020, o Brasil fechou o ano 180% acima dessa meta, com mais de 11 mil km quadrados de desmatamento.
Outra meta seria que mais de 35 milhões de hectares agrícolas deveriam incorporar algumas das técnicas de mitigação na agricultura. Segundo a Embrapa, no Brasil, já são mais de 90 milhões de hectares com alguma dessas técnicas de mitigação, mas dentro dessas técnicas na agricultura, que são tidas como práticas regenerativas elegíveis para geração de créditos de carbono, inclui-se a recuperação de pastagens degradadas.
O problema é que isso inclui a utilização de calcário e fertilizantes para recuperar as pastagens e transformá-las em cultivos agrícolas e a recuperação de áreas degradadas para o plantio, por exemplo, de monocultivo de soja e milho, é tida como uma prática de recuperação de pastagem degradada, que pode utilizar um sistema de plantio direto. Embora possa ser usado para diminuir as emissões, porque não é necessário revolver o solo, você simplesmente semeia na própria palha, você precisa aumentar o uso de um dessecante, sendo o mais usado o glifosato.
Então, se, por um lado, existem algumas práticas elegíveis que reduziriam as emissões, como o sistema de plantio direto, por outro lado, você tem um aumento explosivo do uso de glifosato. Os monocultivos de soja, milho, cana-de-açúcar, pastagens com braquiárias são tidos como bioinsumos. Ou seja, são espécies que fazem a fixação biológica de nitrogênio o que diminuiria o uso de fertilizante sintético, que é um dos grandes responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa. Mas isso, aumentando a incorporação de milhares de hectares à estes monocultivos e ampliando os impactos ecológicos e sociais.
Isso apenas para dar um exemplo de que, na realidade, embora muitos projetos e investimentos são tidos como “verdes”, acabam introduzindo um novo pacote tecnológico, com propriedade intelectual, para beneficiar novamente as corporações que produziram essa crise ambiental e climática.
Os países precisam sair desse ciclo vicioso de destinar o orçamento público, terras e subsídios para financiar os agentes que provocam a crise, sair da subordinação dessas trocas desiguais que nos colocam de novo em uma situação colonial, excluindo a população do acesso aos bens comuns e introduzindo os recursos naturais, as terras, os bens comuns do povo, beneficiando essas corporações, colocando as riquezas nacionais e as riquezas da população nas mãos do lucro de poucas corporações, o que vai aprofundar a crise climática.
A crise não é apenas alimentar, não é apenas climática. É uma crise civilizacional, gerada pelo modo de produção e consumo inserido no capitalismo, é uma crise deste sistema agroindustrial global, altamente concentrado, financeirizado e ultraespecializado“.
*Editado por Wesley Lima