Por Leonardo Avritzer, publicado em Jornal GGN –
Ambos os países passaram por um ciclo econômico expansivo na década passada ligado ao boom das commodities, mas associado também a fortes políticas de proteção social e ampliação do mercado interno introduzidas por governos de esquerda.
O resultado as eleições primárias (paso) na Argentina na semana passada associadas a perspectiva de volta da recessão no Brasil abriram novamente um debate que necessita ser realizado com urgência nos dois principais países da América do Sul acerca da incapacidade dos liberais de administrarem exitosamente a economia da região. Voltemos aos fenômenos mais básicos: Brasil e Argentina passam por crises econômicas acentuadas com forte relação com problemas políticos. Ambos os países passaram por um ciclo econômico expansivo na década passada ligado ao boom das commodities, mas associado também a fortes políticas de proteção social e ampliação do mercado interno introduzidas por governos de esquerda. Estas políticas chegaram ao fim por uma associação entre o fim do ciclo das commodities e mudanças políticas. No caso argentino, estas mudanças vieram pela via eleitoral com a eleição de Maurício Macri e no caso brasileiro vieram por meio de um impeachment com fortes problemas legais e um conjunto de ações do poder judiciário que influenciaram a eleição possibilitando a vitória de Jair Bolsonaro.
A forte derrota eleitoral de Macri nas primárias do domingo passado aponta para o encerramento de mais um ciclo liberal não exitoso na Argentina e indica a incapacidade dos liberais de colocarem a economia do país em um ciclo de crescimento. O piloto automático do grito populismo, autoritarismo já é ouvido em ambos os países, especialmente por jornalistas econômicos e cientistas políticos. No caso brasileiro, a corifeu dos jornalistas econômicos mal informados, Mirian Leitão, disparou o grito anti-populista no Globo de domingo. Segundo ela, “em qualquer democracia há alternância de tendências políticas no poder. O risco vem do autoritarismo e do populismo. Eles produzem crises econômicas, ameaçam instituições, emburrecem o debate…O governo Macri anunciou que corrigiria o que Cristina fez no índice [de inflação]. Cumpriu a promessa. Mas foi incompetente para reduzir a inflação e recorreu a uma arma velha dos populistas, o congelamento de preços.” (O Globo, 18 de agosto). Duas questões chamam a atenção na análise de Leitão: a primeira delas é que ela se exime de analisar o governo Macri pelo que ele foi e culpa pelo seu fracasso econômico uma medida desesperada tomada quando o cambio e a inflação já estavam fora de controle. Típico do liberalismo sul americano. Ele nunca tem responsabilidade pelo fracasso das suas políticas. Se Miriam Leitão tivesse informação, ela analisaria o governo Macri e suas políticas nos seus três primeiros anos e abordaria a sério porque que ele não conseguiu destravar economicamente a Argentina com a suas medidas liberais. Por fim, é importante mencionar que a crise do governo Macri foi precipitada em 2018 pelo mercado financeiro que resolveu se dissociar do gradualismo macrista. Todas as outras medidas que Leitão condena foram consequência. Assim, se formos discutir a sério liberalismo e economia na Argentina e no Brasil temos que discutir a financeirização das duas economias e a hegemonia não produtiva que o mercado financeiro estabelece na região que parece incapaz de gerar crescimento econômico e que é tangenciada pelos jornalistas econômicos.
O cientista político e colunista da Folha Marcus André Melo também discutiu a Argentina nesta segunda feira. De forma ainda mais precária que Miriam Leitão, Melo demonstrou a falta absoluta de conhecimento do país ou falta de seriedade analítica completa (o que não parece constituir novidade no caso dele) ao achar que uma citação fora de contexto do cientista político Guillermo O´Donnell seria capaz de explicar o problema atual da Argentina. Segundo Melo citando O´Donnell, o problema da Argentina seria um jogo impossível “…entre militares, justicialistas e os partidos de oposição…o cálculo é que se os peronistas ganharem as eleições não respeitarão a institucionalidade democrática. E que se a oposição tiver sucesso os peronistas não a deixarão governar.” (Folha de São Paulo, 19/08/2019). Surpreende a baixa familiaridade de Melo com a Argentina pós transição onde, diferentemente do Brasil, os militares depois de um curto período de resistência deixaram a arena política e não são atores relevantes no jogo democrático. Não por acaso no mesmo dia em que Melo assinou sua coluna temporalmente e analiticamente equivocada na Folha, o candidato favorito a Procurador Geral da República no Brasil anunciou que contava com o apoio dos militares, mostrando que o país no qual existe o problema da intervenção dos militares na política é o Brasil e não a Argentina.
O segundo erro de Melo é ainda mais crasso e sugere forte incapacidade analítica e baixo conhecimento da realidade sobre a qual ele escreve. Ele supõe automaticamente uma política de geração da ingovernabilidade pelo peronismo como se estivéssemos na década de 90, sem perceber que o peronismo se dividiu fortemente em relação ao governo Macri que governou com maioria confortável nos seus três primeiros anos. Até mesmo o acordo com os chamados “fundos abutres” um dos principais pontos de honra do Kirchnerismo foi aprovado por Macri com maioria confortável de quase dois terços na câmara dos deputados. Assim, temos em relação ao macrismo uma diferenciação no interior do peronismo que pode significar o início de um novo jogo político na Argentina. Os peronistas se dividem sim pelo menos desde a década passada e quando eles se dividem eles perdem eleições, tal como ocorreu em 2015 quando Macri foi eleito. Mas os peronistas também se juntam e percebem que tem que fazer política para além da dinâmica amigo versus inimigo. Quando o fazem ganham eleições. Assim, ao invés da continuação de uma lógica destrutiva entre peronismo e anti-peronismo o que temos é uma lógica diferenciada. Quando o peronismo se divide, a oposição tem chances e quando o peronismo se une ela não tem. Só assim é possível entender a candidatura de Alberto Fernandez que não parecia ser a majoritária no interior do peronismo, mas se tornou por meio de uma composição com Cristina Kirchner. Assim, antes de reduzir a chapa Fernandez e Fernandez a mais do mesmo, caberia aos analistas entender a nova dinâmica que perpassa a política Argentina, uma dinâmica que pode dizer muito para o Brasil nos próximos os anos.
Aliás, falando do nosso liberalismo tupiniquim que os dois analistas consideram muito superior ao argentino, vale a pena mencionar um certo desespero que se abateu entre alguns liberais honestos (vale dizer que sobraram poucos no país) na última semana. O Brasil encontra-se prestes a completar cinco anos de uma crise que destruiu uma porção considerável da indústria local e que os liberais brasileiros diagnosticam como uma crise do estado produzida por um governo de esquerda. No entanto, todas as receitas ortodoxas bastante simplistas baseada no teto de gastos ou em reforma trabalhista banal falharam. Não vemos entre os liberais no Brasil nenhum comentário sobre as taxas de juro real durante o ajuste ou sobre a incapacidade de uma retomada de uma economia que parece paralisada. O que temos assistido são afirmações risíveis que supõem efeitos temporais pouco críveis das políticas dos governos de esquerda que podem ter efeito midiático, mas sinalizam, ao mesmo tempo, que o debate econômico continua raso. Que não se enganem os liberais brasileiros. Não vai adiantar gritar populismo para que a o liberalismo econômico se firme. O liberalismo terá que mostrar que tem uma proposta além de queimar matas, cortar árvores e re-implantar relações de trabalho do século XIX. Se ele não o fizer, a crise do macrismo e do liberalismo ortodoxo na Argentina será o canto do galo portenho, anunciando a crise do liberalismo ortodoxo no Brasil.