A cultura como alvo, por Marcello Rollemberg

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Compartilhado de Jornal GGN

Diante dos últimos acontecimentos e declarações, professores da USP discutem a atual situação da cultura no Brasil

Arte sobre foto 123RF – Thais H. Santos

do Jornal da USP

por Marcello Rollemberg

Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”, bradava o tribuno e orador Marco Túlio Cícero ao senador Lucio Sergio Catilina. Até quando ele abusaria da paciência dos romanos com suas ideias retrógradas e perigosas? E até quando se abusará, no Brasil, da paciência daqueles que prezam os bens culturais, que valorizam a cultura, que veem na música, no teatro, no cinema, nas artes plásticas livres de grilhões verdadeiros formadores de uma identidade nacional, de uma cidadania? Porque, para muitos, essa tal paciência está sendo colocada à prova diariamente. “Há uma guerra não declarada contra a inteligência”, afirma o professor da Escola de Comunicações e Artes da USP Carlos Augusto Calil, ex-secretário de Cultura da cidade de São Paulo. E essa guerra tem várias faces. As mais visíveis talvez sejam as recentes nomeações para a área cultural do governo federal – isso sem falar na transferência da secretaria especial de Cultura para a pasta do Turismo. Piada pronta? Não necessariamente. Porque até a galhofa deve ter limites. Coisa para a qual o novo presidente da Funarte, o maestro e youtuber – uma combinação pós-moderna, digamos – Dante Mantovani não pareceu atentar. “O rock ativa a droga que ativa o sexo que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto por sua vez alimenta uma coisa muito mais pesada que é o satanismo”, afirmou ele, num silogismo que coloca no bolso aquele que diz que “madeira boia, pato boia. Logo, pato é feito de madeira”. A declaração de Mantovani está mais próxima de uma versão roqueira (e alucinada) da terra plana.




Mas de uma coisa não se pode acusar o maestro-youtuber: de infidelidade ao mestre. Ao afirmar em outra postagem em seu canal do Youtube que “os Beatles colocaram em prática as ideias da Escola de Frankfurt , querendo destruir a cultura ocidental”, ele nada mais faz do que servir de caixa de ressonância às “ideias” do dublê de astrólogo-“pensador contemporâneo”-guru conservador Olavo de Carvalho, que desde seu autoexílio na Virgínia fica dando pitacos nas coisas brasileiras. Foi Olavo quem disse que as músicas do Beatles haviam sido compostas por Theodor Adorno, o filósofo da comunicação e um dos criadores da Escola de Frankfurt. Olavista convicto, Mantovani repetiu a fala, sem parar para pensar no absurdo embutido nela. Mas a postura de Dante Mantovani é apenas uma das várias pontas do iceberg extremista à deriva que teima em se movimentar em direção ao transatlântico multifacetado da cultura nacional. E a colisão parece inevitável – se é que já não aconteceu. Desde a transferência da Secretaria Especial de Cultura para o Ministério do Turismo até as recentes nomeações para cargos-chave da área cultural, tudo leva a um franzir preocupado de sobrolho, para se dizer o mínimo. “Isso tudo evidencia, na verdade, algo muito mais grave. Tudo indica que há uma intenção de fundo, que não é só de expatriação mas também de apagamento, processo iniciado durante a campanha eleitoral por forças aliadas ao atual governo, em particular ligadas a um falso moralismo que se mostram hoje claramente favoráveis à censura”, afirma o professor da Escola de Comunicações e Artes Martin Grossmann, ex-diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP, o MAC, e colunista da Rádio USP.

Por mais estapafúrdias e incoerentes que pareçam as declarações e ações de membros do atual governo com relação à cultura no Brasil – e vamos falar só da parte cultural, sem outras considerações, como as recentes ilações à pirotecnia de Leonardo Di Caprio –, elas são muito sérias. Parecem risíveis, mas não são. A questão cultural é muito séria e precisa ser tratada desta forma. Declarações como a do novo presidente da Fundação Palmares, o jornalista Sérgio Nascimento de Camargo, afirmando que “o Dia da Consciência Negra é uma vergonha e precisa ser combatido” ou que “a escravidão no Brasil fez bem aos negros” são muito mais do que frases aleatórias de alguém que parece desconectado com a presente e o passado – e que põe em risco o futuro. Camargo, que em seu perfil no Facebook se identifica como “negro de direita, contrário ao vitimismo e ao politicamente correto”, teve sua nomeação barrada por uma Ação Popular, mas o governo pode recorrer da decisão.

“Estamos vivendo o desmonte total das instituições da cultura”, afirma a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, coordenadora do Escritório USP Mulheres e pró-reitora de Cultura da USP entre os anos de 2010 e 2015. “Quando você transforma a cultura em um instrumento que é de fundamentalismo ou de visões preconceituosas, você está destruindo a cultura”, garante ela, se referindo à postura do atual governo em taxar, por exemplo, de “marxismo cultural” a utilização da Lei Rouanet e às nomeações de Katiane de Fátima Gouvêa, integrante da Cúpula Conservadora das Américas, para secretária de Audiovisual e do pastor e colunista social Edilásio Barra – que atende pelo apelido de Tutuca – para assumir a Superintendência de Desenvolvimento Econômico da Ancine, a Agência Nacional de Cinema.

“200 versículos da Bíblia”

Como todos sabem – ou deveriam saber –, o Brasil é um estado laico. Está lá, na Constituição: Igreja e Estado estão apartados formalmente. Mas isso não parece importar muito para alguns. O problema é que esses “alguns” são os que dão as cartas atualmente no País. E nada escapa desse afã religioso, nem a Justiça – lembram da possível escolha de um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF? –, nem a cultura. Em agosto, o presidente da República disse que sua intenção era nomear para dirigir a Ancine “alguém que soubesse pelo menos 200 versículos da Bíblia e que tivesse os joelhos machucados de tanto ajoelhar para rezar”. Saber a Bíblia de cor e rezar são ações louváveis, mas não necessariamente deveriam ter algo a ver com a direção de um órgão que trata da produção audiovisual do País, do fomento à cultura. A própria Katiane Gouvêa, a nova titular da Secretaria de Audiovisual – que tem funções correlatas à Ancine, mas que não são interdependentes –, não tem qualquer ligação com o cinema ou a TV, mas é evangélica.

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“As pessoas têm o direito a ter suas religiões, mas o estado democrático representa todas as tendências”, afirma a socióloga Maria Arminda. Além do mais, acredita-se que a questão de fé não deveria ser pré-requisito para assumir um cargo público.

Coincidentemente (ou não), Katiane fez parte de um comitê que, meses atrás, sugeriu à Presidência a extinção da Ancine. Em um site, ela publicou, antes de ser nomeada, “que o audiovisual e o cinema não sejam plataformas para difundir e promover os valores que denigrem a nossa imagem como indivíduo, sociedade e indústria produtiva”.

Essa questão tem um fundo que precisa ser ainda mais discutido. “No atual contexto de animosidade crescente, partidos políticos radicalizados consideram, mais que os outros, que o Estado lhes pertence e que a eles, e ao País, irão impor suas ideias, tão curtas que não chegam à esquina”, declarou, em depoimento ao Jornal da USP, o professor aposentado da ECA José Teixeira Coelho, ex-diretor do MAC e ex-curador-coordenador do Museu de Arte de São Paulo (Masp). O problema, para ele, é a dependência que se tem das ações provenientes do Estado. Segundo ele, isso é um erro. “A sociedade assiste, passiva, a esse balé de irrelevâncias. Do Estado espera-se tudo. Só que quando se espera que a cultura venha do Estado ou fique forte graças ao Estado ou sobreviva por favor do Estado, dramas como os atuais só se repetem.  A sociedade tem de fortalecer-se frente ao Estado e encontrar o caminho para libertar-se dessa tutela”, acredita ele, que também foi colaborador da Cátedra Unesco de Política Cultural da Universidad de Girona, na Espanha.

Já para a artista plástica e professora Giselle Beiguelman, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e também colunista da Rádio USP, a questão ideológica acaba permeando atualmente toda a discussão sobre políticas públicas culturais no Brasil. “Não é possível que um governo de direita ou de esquerda decida apoiar apenas projetos que digam respeito a suas prerrogativas ideológicas. As políticas públicas têm um compromisso com o País e não com os partidos. É preciso respeitar a pluralidade de visões”, afirma ela. Carlos Augusto Calil, da ECA, vai mais além: “Há um sentimento antielitista envenenando o ar que respiramos. Enfrentamos uma guerra não declarada contra a inteligência, a tolerância, o patrimônio simbólico nacional. Contra os princípios da democracia”.

Turismo e Cultura; Alvim e Fernanda

Esse embate ao qual se refere o ex-secretário de Cultura da cidade de São Paulo teve um de seus pontos fulcrais na transferência da Secretaria Especial de Cultura do Ministério da Cidadania para o Ministério do Turismo, no começo de novembro. Por mais que o turismo cultural seja uma prática costumeira mundo afora – Roma e Paris que o digam –, muitos viram essa transferência como uma diminuição da Cultura, um rebaixamento. E não necessariamente sem razão. “Não entendo essa relação entre Cultura e Turismo. Ainda que haja uma relação possível do ponto de vista de entender que o Turismo hoje é parte da Cultura, efetivamente a Cultura como espaço de reflexão e política não tem conexão com o Turismo”, acredita a professora Maria Arminda, da FFLCH. “Parece que as artes e as culturas para o atual governo se mostram um estorvo, e melhor seria se fossem eliminadas de cena”, avança o colunista da Rádio USP e ex-vice-diretor do MAC Martin Grossmann.

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Já o professor Carlos Augusto Calil faz uma reflexão mais ampla sobre a própria criação do Ministério da Cultura, que mostra reflexos até hoje. “O Ministério da Cultura, desde a sua criação, foi politicamente irrelevante. Na verdade, foi um erro levar as instituições culturais federais para Brasília. Funarte, Embrafilme, Serviço Nacional de Teatro etc. estavam consolidados no Rio de Janeiro e não se curvavam ao governo militar. Antes, a ele resistiam de dentro da própria estrutura do Estado. A criação do Ministério da Cultura atendeu a uma dimensão da pequena política e teve um papel disruptivo na evolução das instituições. Foi um erro centralizar a política cultural oficial em Brasília”, acredita Calil. “Agregar a cultura e a arte a um ministério social não era má ideia. Mas a questão não é conceitual, é política. Atualmente, as políticas públicas em benefício da arte e da cultura estão sendo castigadas, por seu suposto elitismo e viés ideológico. A transferência da Secretaria de Cultura para o Ministério do Turismo soa como rebaixamento, desprestígio, humilhação. Não porque sejam incompatíveis”, afirma.

Para além da mudança de endereço da Cultura em Brasília, outro fator de tensão foi a nomeação do novo secretário especial da pasta: o diretor de teatro Roberto Alvim, o mesmo que há alguns meses atacou Fernanda Montenegro pelas redes sociais. “Então, acuso Fernanda (Montenegro) de mentirosa, além de expor meu desprezo por ela, oriundo de sua deliberada distorção abjeta dos fatos”, escreveu Alvim. “A foto da sórdida Fernanda Montenegro como bruxa sendo queimada em fogueira de livros, publicada hoje na capa de uma revista esquerdista, mostra muito bem a canalhice abissal dessas pessoas, continuou ele, referindo-se a uma foto de divulgação da revista literária 451. Esses ataques foram feitos quando Alvim ainda era diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte.”

Mas a mudança de cargo não arrefeceu sua verve. Em novembro, em Paris, ele afirmou, para espanto da plateia presente na reunião anual da Unesco, que “a arte brasileira transformou-se em um meio para escravizar a mentalidade do povo em nome de um violento projeto de poder esquerdista”. Não satisfeito, prosseguiu com seu corolário, prometendo criar “uma nova geração de artistas” e que o atual governo retomaria “a beleza” nas obras de arte, seja lá o que for isso. “Mas o que é a definição de belo?”, questiona Maria Arminda. “A noção do belo é histórica, é social e se transforma”, completa. E Calil finaliza, ao falar sobre a desvalorização da cultura no País: “O Brasil perde substância, sentido de coesão social, relevância política, capacidade de atrair investimento material e simbólico. Há uma generalizada atração pela cultura brasileira no exterior, a que nós não temos sabido corresponder”.

Com reportagens de Cláudia Costa e Leila Kiyomura

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