Por Salah H. Khaled Jr., publicado em Justificando –
É no mínimo estranho que alguém declare que sente saudades de seus adversários políticos, ou pelo menos, de uma versão intelectualmente mais qualificada deles. Estou ciente disso. A eventual perplexidade do leitor é inteiramente compreensível: por que escrever um texto que enaltece as eventuais qualidades de pessoas que se encontram no lado oposto do espectro político dos autores?
Em certo sentido, é decididamente paradoxal: muitos considerariam que a erosão intelectual dos opositores de algum modo seria até mesmo desejável estrategicamente. Mas infelizmente é justamente o contrário que ocorre: a vulgarização – e até mesmo a falta de sentido – do que passa por discurso de direita nos últimos anos ocorre de forma concomitante ao fenômeno de desinformação em larga escala que é deliberadamente produzido pelos disseminadores dessa forma precária de ideologia.
Não que a difusão do ódio seja exatamente uma novidade em terra brasilis. Ela é verdadeiramente genética e constitutiva da invenção que é o próprio Brasil.[1] Mas o ódio jamais foi sustentado – ou ostentado – com tamanho orgulho – como verdadeiro estandarte poderia se dizer – por uma pseudointelectualidade canalha tão massivamente consumida.
É nesse sentido que falo em saudade: contra um pensamento politicamente coerente e qualificado pelo domínio da literatura que conforma sua tradição, é possível e desejável o debate. Ele é da essência da própria política. Mas como debater com quem veicula discurso de ódio? Como confrontar o que é vendido como expressão da verdade e aceito e incorporado como tal por uma plateia que não percebe o processo de sujeição simbólica a que é submetida? Como conversar com essa espécie tão deplorável e vulgar de fascista?[2]
A degeneração moral (e intelectual!) da direita brasileira é a morte do debate possível. E isso certamente é motivo para lástima. Por incrível que pareça, o sentimento é suficiente forte para causar uma sensação de nostalgia por outros tempos, sejam eles distantes ou relativamente recentes. Não que com isso exista qualquer intenção de manifestar um malfadado lamento pela Ditadura Civil-Militar e seus filhotes. Não tenho a menor intenção de revitalizar moralmente qualquer regime autoritário. A saudade aqui exposta é de outra ordem: é o sentimento de quem conseguia reconhecer no adversário um nível de dignidade e envergadura intelectual que ao menos possibilitava o diálogo, ainda que a concordância fosse uma promessa irrealizável em função da enorme distância.
É precisamente por esse sentimento que fui movido a elaborar este pequeno elogio fúnebre. É quase um lamento, uma forma de honrar aqueles que já morreram e, simultaneamente, manifestar desgosto para com seus autoproclamados sucessores. Não que com isso exista qualquer manifestação de admiração ou louvor a tais figuras de outrora.
Seria inviável desenvolver uma história das ideias que satisfatoriamente contemplasse a trajetória de recepção do liberalismo no Brasil, pelo menos em um texto tão pequeno. Desde os primórdios da existência do país como nação independente sempre houve uma intenção de adaptação do liberalismo e da própria ideia de democracia aos trópicos.[3] E essa adaptação sempre foi utilitária: sempre visou recepcionar o que era “compatível” com uma anatomia política verticalizada – resultado da opção pela manutenção da Monarquia – e com uma sociedade manifestamente excludente, que manteve a escravidão durante praticamente todo o século XIX e fez da própria abolição um processo violento de sujeição do diferente, que somente começa a ser colocado em questão de forma incisiva recentemente.
No entanto, mesmo aquelas elites de outrora tinham uma noção – ainda que evidentemente insuficiente – de alteridade e do esforço que era necessário para preservar a integridade territorial do Brasil recém independente. O depoimento de José Bonifácio de Andrada e Silva é significativo: “[…]é da maior necessidade ir acabando com tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um Todo homogêneo e compacto, que não se esfarele ao pequeno toque de qualquer convulsão política”.[4] As propostas de Bonifácio nesse sentido eram ousadas demais e, logo, não foram executadas, pois não condiziam com os reais objetivos dos protagonistas da separação política do país. Mas o fato é que a intelectualidade da época estava situada no debate: lia e conhecia a literatura e a tradição liberal e temia os “os perigosos ideais revolucionários dos jacobinos franceses”.[5]
De forma semelhante, a República idealizada pelos militares deliberadamente renunciou a qualquer simbologia política vinculada aos ideais revolucionários franceses de liberdade, solidariedade e fraternidade: o lema “Ordem e Progresso” remete diretamente ao pensamento de Augusto Comte, que teve enorme penetração no âmbito do exército e foi decisivo para o término do Império. Embora o projeto liberal não tenha triunfado, o novo formato da anatomia política era condizente com a recepção utilitária do liberalismo pelas elites de então: Como diagnostica Chaui: “Os liberais esperam que a separação entre Estado e sociedade seja, finalmente, conseguida e não lhes interessa considerar a República uma expressão da própria sociedade porque isso poderia estimular a perspectiva intervencionista do Estado”.[6]
Evidentemente, todos esses liberalismos esquizofrênicos e seletivamente recepcionados poderiam ser confrontados com as suas próprias contradições. Mas pelo menos havia um fio condutor que era pautado por uma dada matriz teórica, ainda que importação sempre fosse um processo perverso de reafirmação de uma sociedade excludente.
Nada parece remeter ao vazio teórico que caracteriza a incoerente cacofonia da pseudodireita contemporânea.
A Ditadura Civil-Militar estava assentada na ideologia geopolítica do Brasil Potência 2000. Seu principal expositor foi o general Golbery do Couto e Silva, cujas ideias foram difundidas nas escolas na disciplina de “Educação Moral e Cívica”, na Televisão Educativa, na “Hora do Brasil” e através do Mobral. Contra tal programa de sujeição também era possível o debate, particularmente para quem tinha simpatia pelas ideias de Paulo Freire. Também é possível mencionar Roberto Campos – ironicamente apelidado de Bob Fields – um intelectual que defendia ideias pelas quais certamente não nutro simpatia, mas que efetivamente detinha conhecimento notável de uma tradição que passa por Locke, Adam Smith, John Stuart Mill, John Rawls e tantos outros expoentes que não há como relacionar aqui, até porque isso poderia extrapolaria os propósitos deste texto.
Qual é o ponto? O que passa por direita no Brasil hoje em dia é um discurso que simplesmente não faz sentido e que não dialoga com a própria tradição que supostamente deveria representar. No campo da direita, é uma forma infinitamente mais grosseira do que Hobsbawm acertadamente chamou de marxismo vulgar, que ainda é empregado por certas esquerdas.[7]
Recentemente as redes sociais foram palco de um “debate” entre esses pseudointelectuais que representam o “estado da arte” da nossa direita. A vulgaridade dos termos empregados e o desrespeito entre tais figuras diz muito sobre o “lugar de verdade” que essas pessoas atribuem a si mesmas.
O discurso de raiva travestido de direita é difundido por charlatães sem formação acadêmica ou com formação acadêmica precária, que veiculam sua visão de mundo tacanha e preconceituosa sem qualquer espécie de constrangimento, desconsiderando até mesmo as regras mais básicas da civilidade. Não discutem ideias. Atacam pessoas sem o menor pudor. Elegem os alvos prediletos – tidos como verdadeiros inimigos – e conclamam uma legião de seguidores não pensantes a direcionar as baterias contra eles. E as massas seguem, para desespero de quem chega a sentir saudade de adversários de maior categoria.
Em tempo: a Folha de São Paulo acaba anunciar um novo colunista semanal do seu site. Aparentemente é uma oportunidade para espalhar ainda mais seus ideais. Com certeza será um foro privilegiado para debates qualificados, como se espera na democracia. Ou não. Os próximos capítulos falarão por si mesmos. Que os mortos tenham piedade de nós.
Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e e co-autor, com Alexandre Morais da Rosa, de In dubio pro hell: profanando o sistema penal, Empório do Direito, 2015.
[1] KHALED JR, Salah H. Ordem e progresso: a invenção do Brasil e a gênese do autoritarismo nosso de cada dia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. [2] TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. Rio de Janeiro: Record, 2015. [3] Sérgio Buarque de Holanda cunhou uma frase que se tornou famosa: "a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido". Como ele apontou, ela foi importada por uma aristocracia rural e semifeudal que tratou de acomodá-la aos seus direitos e privilégios. Desse modo, alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos foram incorporados à situação tradicional, ainda que como fachada ou decoração externa. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.160. De qualquer modo, logo após a Independência, a recepção do liberalismo era suficientemente intensa para que D. Pedro abortasse os trabalhos da Assembleia Constituinte, outorgando uma constituição sui generis em 1824. A decomposição dos elementos do texto outorgado por D. Pedro I pode oferecer algumas perspectivas interessantes sobre o país, o que de certa forma já se evidencia pela adoção do voto censitário, cujo sentido consistia na garantia de continuidade de uma hierarquia excludente. A independência devia representar apenas um rompimento com Portugal: de modo algum podia expressar uma oportunidade de rearranjo social. Mas mesmo assim, o texto não deixa de ser surpreendente: jurídica e ideologicamente, a Constituição de 1824 é um verdadeiro amálgama disforme de ideais liberais e absolutistas, como os trechos a seguir claramente indicam: [...] Constituição Política do Império, oferecida e jurada por Sua Majestade o Imperador Dom Pedro Primeiro, por graça de Deus e unânime aclamação dos povos [...] Art. 1º - O Império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos brasileiros [...] Art. 98 – O poder moderador é a chave de toda a organização política [...] Art. 99 – A pessoa do imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a autoridade alguma [...] Art. 179. [...] Nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei [...] a lei será igual para todos, quer proteja quer castigue [...]. KHALED JR, Salah H. Ordem e progresso: a invenção do Brasil e a gênese do autoritarismo nosso de cada dia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. [4] JANCSÓ, István e PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (org). Viagem Incompleta. A experiência brasileira. (1500-2000). Formação: histórias. São Paulo: Senac, 1999.p.173 [5] Em síntese, os vários interesses se configuravam através de grupos políticos que apesar do nome, não tinham a estrutura de partidos. O Partido Português, avesso à independência, como o nome indica, reunia comerciantes interessados no retorno do Pacto Colonial e também militares portugueses e alguns funcionários da Coroa; O Partido Brasileiro, que inclusive incluía alguns portugueses, reunia latifundiários, altos funcionários da burocracia estatal e comerciantes ligados ao comércio inglês ou francês, bem como traficantes de escravos. Desejava o fim definitivo das restrições coloniais, mas definitivamente, não os excessos democráticos do liberalismo. Seu líder era José Bonifácio de Andrada e Silva. Finalmente, os chamados radicais eram compostos por um grupo com influência nos setores médios urbanos: pequenos comerciantes, advogados, padres, professores, farmacêuticos, funcionários públicos de baixo escalão, enfim. Para esse grupo, o modelo era a Independência dos EUA ou a Revolução Francesa. [6] CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e Sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. p.43. [7] HOBSBAWM. Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.