Por Gustavo Conde, publicado em Jornal GGN –
As mulheres brasileiras vão impondo uma lógica de resistência e luta sem precedentes no cenário das democracias assediadas mundo afora. O expurgo de uma mulher de fibra do mais alto cargo do país adensou o traço histórico da resiliência feminina, que faz qualquer homem gemer no plano de sua covardia misógina interna e atávica.
Se o enunciado “ser homem” fizer algum sentido hoje, é apenas dentro de um escopo do auto monitoramento: ser homem é tomar o devido cuidado para não dizer besteiras a respeito de uma mulher. É pouco, mas é suficiente para que se não caia no ridículo diário do machismo golpista, tão associados ficaram essas duas dimensões da natureza política no Brasil: machismo e golpismo.
Para celebrar essa conquista histórica necessária, que é o protagonismo da mulher diante de um mundo masculinizante e, por isso mesmo, brochante, nada melhor do que falar da própria mulher e de seus talentos múltiplos no universo da canção popular.
A voz entoada da mulher sempre foi um fetiche estético para os ouvidos masculinizados do mercado da canção. No Brasil, isso e até mais profundo, uma vez que as mulheres dão voz ao discurso produzido no cancioneiro autoral que é um pouco mais masculino que feminino, se ainda a descrição biológica fizer algum sentido (faz, porque o mundo anda literal demais).
Elis Regina, Gal Costa, Leila Pinheiro, Maysa, Maria Bethânia, Simone, Nana Caymmi, Fátima Guedes, tantas e tantas cantoras construíram uma narrativa passional e política dos anos de chumbo e dos anos de glória de um país sempre interrompido por sua elite igualmente interrompida.
No fulcro de um novo golpe e de uma nova realidade política que induz reações estéticas e culturais, surge uma geração de artistas talvez mais impactante do que aquela que marcou o nosso longo e desacelerado processo de redemocratização.
Há talentos para todos os gostos e credos, mas o que parece brotar desse tecido político conflagrado é uma resposta acima de tudo democrática, inovadora e ousada, em todos os sentidos.
Tomo a liberdade de apontar uma dessas delícias sonoras que irrompem a mesmice fonográfica-digital e invadem a percepção viciada como um antídoto estético e político. Falo de Ana Decker.
Trata-se de uma cantora que impõe um modelo novo de microtons à percepção. Afinadíssima, ela brinca com as transições melódicas, fazendo uma nota se ‘aproximar’ da outra em diálogo com as sobreposições – técnica apuradíssima, pouco comum e que exige muita disciplina vocal.
Das cantoras com essa característica, poder-se-ia citar Ná Ozzetti e Titane, cada uma das três um mundo próprio, com incríveis personalidades e idiossincrasias.
O que chama a atenção em Ana Decker em seu trabalho mais intimista, no entanto, é a densidade da interpretação: ela modula e afirma o timbre belíssimo, levemente etéreo, com frequências nasais e sopros internos de sustentação que colorem todo o tecido vocal. Os finais frasais metálicos e de cifras graves arrebatam, dentro da delicadeza e da contenção gerenciadas com inteligência e lirismo. Cantora solar, ela produz imagens com a voz.
O nome da canção que segue no vídeo – como amostra e como ‘refresco’ para a devastação diária de nossa soberania política- é “Cartaz de Procura-se”, de Troy Rossilho, Thadeu Wojciechowski e Luiz Felipe Leprevost.
A canção é também muito de Ana, uma vez que ela se apodera do sentido e das palavras com sua densidade e dicção. A letra é favorável a todas essas características vocais descritas acima e deixa espaço para a delicada ‘improvisação interna’ que brota naturalmente de sua voz.
É muito possível, portanto, celebrar a vida cultural que vai sendo gestada no país em meio a um golpe brutalizado. A torcida é para que ele não dure, como a ditadura, que produziu uma geração de grandes artistas. Mas, se esse golpe se prolongar, a resposta certamente virá da cultura e da canção popular.
Esperemos todos que não – e que a voz de tantas outras cantoras como Ana Decker ecoem livremente no tecido cancional de um país que volta a querer respirar liberdade.
A ousadia política só dará as caras quando a ousadia estética perturbar o establishment cultural. É dali que nascem os anjos revolucionários.