A denúncia de um filme antigo

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Por Ulisses Capozzoli, jornalista, Facebook – 

Quase sete décadas depois de ter sido feito, revejo no Netflix o belíssimo “High Noon” (com a tradução simplória de “Matar ou Morrer” por aqui) com Gary Cooper (1901-1961) na pele do xerife Will Kane. O filme marcou época por um conjunto de razões e ainda hoje impressiona pela força psicológica e atualidade.

A história toda gira em torno do que muita gente chamaria de ética, mas que é pura estética, num contraponto à mais desprezível patifaria social. Kane prendera um fora-da-lei, Frank Miller (Ian McDonald) havia um bom tempo que acabou de ser liberado pela Justiça (essa uma das atualidades enquanto omissão da lei). E deve reunir-se com seus antigos parceiros na estação férrea da cidadezinha de Hadleyville para o que o bandido pensa ser um ajuste de contas com o xerife que encerrara seu mandato e aguardava substituto.




O roteiro de “High Noon” “Meio-Dia” é assinado por Carl Foreman (1914-1984) na lista negra de Hollywood nos anos 1950 suspeito de ser “comunista” e “membro do Partido do Partido Comunista” como se fosse crime de lesa-pátria. Daí o clima psicológico, acentuado pela magistral interpretação de Cooper que, aos 51 anos, tinha aparência cansada e envelhecida, em comparação ao semideus que fora pouco antes.

Foreman disse mais de uma vez que seu tema predileto enquanto escritor era o choque entre indivíduo e sociedade, “por uma ou outra razão, hostil”. Aqui é o caso de considerar que High Noon foi filmado durante o Macarthismo, expressão derivada do nome do senador Republicano Joseph MacCarthy para designar supostos ato de subversão/traição. O físico suíço Albert Einstein, de origem alemã, e o ator britânico Charlie Chaplin, o “Carlitos”, foram alguns dos que tiveram problemas com os seguidores do senador MacCarthy e seus fantasmas ao meio dia.

A tragédia (daí, talvez, a razão de os gregos terem fascínio por ela) tem sua manifestação surpreendente. No caso do xerife Kane ela chega no exato dia de seu casamento com a jovem e loira Amy Fowler, vivida por Grace Kally (1929-1982), quase irreconhecível com a beleza refinada dos 23 anos.

A cidade inteira sugere ao xerife que ele vá embora como forma de se livrar de Frank Miller e os membros do seu bando. O xerife aceita a sugestão, coloca as bagagens do casal numa carroça e parte, mas não vai longe. Sua consciência e dever social fazem com que retorne. Em resposta aos que condenam sua decisão, ele diz que para onde for Frank Miller estará em seu encalço. Claro que a frase tem sentido duplo: pode haver uma perseguição física, menos provável, mas haverá sempre uma lembrança, sob a forma de covardia e omissão se ele não se enfrentar com seus perseguidores e assim libertar sua consciência. Humanos que enxergam mais longe têm o privilégio de ver o que ainda não se manifestou à maioria. Mas sofrem o castigo por essa antecipação ousadia.

High Noon, com direção do austríaco naturalizado americano Fred Zinnemann (1907-1997) inspirou uma série de outros westerns, mas não foi poupado pelos puristas, os reacionários de sempre, sem coragem para assumir seus atos. Preferem justificar a omissão por circunstâncias externas, entre elas uma suposta falta de alternativa. Para eles, High Noon traiu a tradição, quando, na realidade, desde que chegou às telas e encantou milhões de cinéfilos pelo mundo, esteve entre os mais belos e corajosos libelos contra a omissão que, eventualmente, pode se apossar de uma sociedade inteira, como ocorreu na pequena Hadleyville onde as pessoas esconderam suas consciências atrás de portas bem trancadas.
Consulto meu “Great Hollywood Westerns”, de Ted Sennet, abordando o que houve de melhor neste gênero em que o herói se mostra na sua grandeza solar enquanto arquétipo na classificação de Joseph Campbell que ensinou e estimulou uma vasta produção no universo fantástico da mitologia.

Em High Noon, em diálogo com um amigo que se recusa a ajuda-lo a enfrentar a ameaça de Frank Miller e seu bando, o xerife Kane diz que “as pessoas se importam com a lei, desde que não precisem fazer nada para isso”, o que significa dizer, completa ele “que talvez não se importem nem um pouco com ela”.
O povo, por mais difícil que seja dizer, na essência é feio, sujo e malvado. Para ascender à dignidade humana necessita de educação e cultura. Por isso essas condições lhes tem sido sistematicamente negadas, ainda que essa negação não tenha como ser completa. Espíritos livres também brotam no terreno bruto do povo. Como oásis que emergem em meio aos desertos. E isso frustra as forças da opressão.

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