À descoberta do mundo, à professora Silvia!

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos traz a meiga e profunda escritora Clarice Lispector. Dona da frase “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome”, Clarice é abordada aqui num texto com o belo estilo César de ser livre.

Veja depois do belo texto de Cícero César, vídeo com Caetano Veloso e Maria Bethânia abordando a escritora e a música “Clarice”, de Caetano e Capinam.




Vamos à Clarice de César!

“Você já viu “Clarice Lispector – A descoberta do Mundo” (Dir. Taciana Oliveira, 2021)? Tá lá no Sesc Digital.

– – – – – Quando terminei de vê-lo, disse a mim mesmo: “Mesmo tendo partes pouco convencionais, não dá conta da complexidade da vida e da obra de Clarice”. Mas não seria exigir demais de alguém dar conta da vida de outro alguém? O que se procurou fazer no filme foi uma aproximação, uma costura entre vida e obra da escritora e imagens, o que fez emergir um pouco de sua complexidade.

Descobri Clarice Lispector nas aulas de teoria da literatura da graduação, onde me deparei tanto com a obra quanto com os retratos de Clarice, impressos na capa, cujas poses me pareciam enigmáticas. Foi só com o tempo, com o ruminar de episódios da vida, com outras peripécias com as quais me envolvi ou imaginei de passagem, que me dei conta que as pessoas têm abismos, que só mostram um pouco de si até mesmo para si mesmas.


Em suma, nos textos e nos retratos, Clarice Lispector conseguia trazer à tona algo como o seu magma. De certa forma, todos nós pertencemos ao Círculo de Fogo.


Na época da graduação, comecei a correr sebos para comprar livros e discos. Comprei muito livro caindo aos pedaços, criadouros de traças, em flagrante desrespeito ao critério de conservação.
Destes tantos exemplares, comprei uma seleta de cronistas, livrinho de capa branca admirável de outro tempo. Mesmo ali diante de tantas feras, Clarice tinha algo misterioso que me cativou.


Talvez eu não tenha percebido à época que aquelas histórias se situavam em um país pré-Brasília, com muitos dos problemas que iriam se metamorfosear sem sair do centro das preocupações de um país que quisesse realmente ser moderno: dar qualidade de vida à maioria de sua população, erradicar a fome, o analfabetismo, a violência, a gritante desigualdade.


Quando dei por mim, eu tinha alguns livros de Clarice Lispector na minha humilde biblioteca pessoal. Alguns destes livros atualmente estão alojados nas estantes da humilde biblioteca pública de uma escola onde trabalho. Acho que os doei, não sei, não me doeu. Eu já não lia mais Clarice Lispector.

E, cá entre nós, o livro de que gostava, que era o livro de entrevistas, foi preservado. As entrevistas com Chico Buarque (com um poeminha bem bonitinho para ela), com Vinicius de Moraes (será que é nesta que Vinicius de Moraes afirma que tinha muita ternura pelas mãos de Clarice, mãos que foram queimadas durante um incêndio?), com Pablo Neruda (“Eu tenho poucos cabelos, mas muitos chapéus”, não foi algo assim que o poeta afirmou bem-humoradamente?).


Eu choro muito, em especial em filmes. Já se tornou folclore. Sou capaz de chorar até em comercial de pastilhas. Minha mulher que o diga. Por vezes, ela fica só esperando uma cena comovente. Então, em vez de olhar para o filme, ela olha para mim e aguarda o meu verter de lágrimas.


Chorei quando terminei de ler “A hora da Estrela”. Não sei se chorei na versão do filme, acho que não, mas achei comovente a atriz que fez a Macabea, filme que vi muitos anos depois de terminada a leitura.

Eu escrevi um trabalho final sobre “A hora da Estrela” para uma das tais teorias da literatura. A professora se chamava Sílvia, não me lembro do sobrenome. Pois bem, eu atrasei o trabalho, e tive a cara de pau de ligar para ela pedindo um prazinho a mais, o que ela me concedeu.


Fiz um trabalho maluco, mais voltado para o espírito do livro de Clarice do que propriamente para a análise. Escrevi prosa poética, em vez de um ensaio, de uma leitura da vida e da obra, dos elementos simbólicos, dos pressupostos do livro, de como manda o figurino etc.


Ainda inventei uma personagem chamada “Maria Luna”, que dava conta das agruras de ser uma jovem estudante de Letras, pouco experimentada em literatura. E fiz uma capa especialmente audaciosa em que se lia: “Será que se eu colocar umas florezinhas, a professora me dá dez?”.


Sílvia me deu nove. E ainda teve a audácia de escrever na capa que teria me dado dez se eu tivesse colocado as florezinhas. Tudo bem, um nove não é tão ruim assim. Em compensação, ela me pediu uma cópia do trabalho, me dizendo que estava muito bom. E isso é glorioso.


Certa vez, eu a encontrei no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) aqui do Rio de Janeiro. Vou mentir: foi em uma exposição sobre as pinturas de Clarice. Não falei com ela por pura timidez. Quase mudei de calçada. Eu não me entendo: eu posso ser expansivo e brincalhão, mas também posso ficar paralisado de vergonha em outras ocasiões.


Depois de ter assistido a este documentário, eu deveria procurar a professora Sílvia para entregar-lhe em mãos esta missiva com um ramalhete de flores, rogando-lhe para que ela me perdoasse pela indelicadeza de tempos idos. Eu já não espero um dez. o que eu espero ainda não tem nem número nem nome.”

Imagem da postagem: estátua de Clarice Lispector, Praia do Leme-RJ, próximo onde ela morava e passeava com sue cachorro Ulisses.

Caetano e Bethânia falam sobre Clarice Lispector.

Música “Clarice”, Caetano Veloso e Capinam

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