O mito da alegria nacional, o marketing agressivo e o lento e doloroso processo de rompimento com as origens africanas
Por Luiz Antonio Simas, compartilhado de Projeto Colabora
Cust’odio – Porto da Pedra
Se o morro vive de samba, de samba eu vivo e morro. Esta foi uma das várias frases estampadas em garrafas que uma das marcas de cerveja mais vendidas do país lançou em 2016, numa edição especial com motivos relacionados ao samba e ao carnaval. A diretora de marketing da cervejaria declarou a intenção de eternizar nas garrafas a reconhecida paixão dos brasileiros pelo ritmo.
O samba é o perfil sombrio da senzala… O samba não é nosso, ele veio da Costa do Marfim, da Cubata de Luanda e da Selva Senegalesa… A expressão do povo é a Pátria, e não o Morro do Salgueiro… Não somos o Haiti ou a Libéria
Pedro CalmonDiretor da Faculdade Nacional de Direito
Um breve mergulho na história do samba, todavia, é suficiente para que o mito da unanimidade nacional do gênero se esfarele. O consenso que as comemorações do centenário de Pelo Telefone – a música que Donga e Mauro de Almeida lançaram para o Carnaval de 1917 – sugere nos nossos dias, esconde um embate mais feroz do que aquilo que as imagens sorridentes vinculadas ao samba permitem supor.
Em 1939, por exemplo, o jornal O Estado da Bahia abria espaço para um debate entre Pedro Calmon – diretor da Faculdade Nacional de Direito – e o escritor José Lins do Rego. Em artigo publicado no dia 15 de julho daquele ano, chamado de “O Sr. José Lins é a favor do samba”, Calmon desancava o gênero com sentenças como “o samba é o perfil sombrio da senzala”; “o samba não é nosso, ele veio da Costa do Marfim, da Cubata de Luanda e da Selva Senegalesa”; “a expressão do povo é a Pátria, e não o Morro do Salgueiro” e “não somos o Haiti ou a Libéria”.
Para Calmon, o Brasil deveria se assumir como um país “formado por portugueses da casa-grande, angolas do eito e índios da selva, mas em que prevaleceu a cultura euro-americana”.
A defesa de José Lins do Rego também não era destituída de preconceito. O autor de Fogo Morto achava que o samba era coisa nossa, ao contrário do que insistia Calmon, mas deveria ser “refinado e sofisticado” pela influência de intelectuais e artistas mais elaborados, como Villa-Lobos.
Pouco depois da polêmica entre Calmon e Zé Lins, o crítico literário Berilo Neves resolveu empunhar a caneta como uma espada afiada e analisar o que era o samba na Revista da Semana, publicada no Rio de Janeiro. Afirmando que tinha, inclusive, se disposto ao sacrifício de escutar os batuques, o crítico concluía:
“O samba é uma reminiscência afro-melódica dos tempos coloniais. Não é a expressão musical de um povo: é o prurido eczematoso do morro. É o irmão gêmeo destas entidades abstrusas que se chamam Suor, Jogo do Bicho e Malandragem”.
Em 1942, o jornalista Sylvio Moreaux mostrou-se, em artigo no Jornal do Brasil, favorável ao carnaval e ao samba, contanto que fossem censurados “assuntos apologistas de baixezas, como as macumbas e as malandragens”. O samba poderia “livrar o nosso povo das ideias africanistas que lhe são impingidas pelos maestrecos e poetaços do chamado morro”. O samba, com indiscutível origem rítmica africana, deveria, segundo Moreaux, simplesmente nos livrar das ideias africanistas.
Outro exemplo, este mais famoso, de inimiga do samba é o da crítica de rádio Magdala de Oliveira, titular de uma coluna no Diário de Notícias. Dona Mag, era assim que ela assinava seus arrazoados, atacava sistematicamente a música popular, especialmente o samba e os sambistas, e defendia valores civilizatórios europeus.
Para responder aos ataques de Magdala, Janet de Almeida e Haroldo Barbosa compuseram, em 1941, o samba “Pra que discutir com Madame”, só gravado em 1956. A música fez sucesso, mas Mag também não saiu da história com uma mão na frente e outra atrás: apesar de sonhar com um Brasil europeu, virou nome de praça em Campo Grande, no Rio de Janeiro.
Os exemplos mencionados acima sugerem duas constatações. A primeira é a de que os detratores do samba, com pequenas variações, usavam o mesmo argumento: a origem africana do gênero nos remetia a um Brasil que deveria ser superado para que o país adquirisse um status civilizatório digno. Bárbaro filho das senzalas, o samba era o testemunho de um primitivismo que deveria ser varrido da cultura brasileira.
O samba é uma reminiscência afro-melódica dos tempos coloniais. Não é a expressão musical de um povo: é o prurido eczematoso do morro. É o irmão gêmeo destas entidades abstrusas que se chamam Suor, Jogo do Bicho e Malandragem
Berilo NevesCrítico literário
A segunda constatação: alguns defensores do samba, como é o caso de José Lins do Rego, usavam argumentos que, paradoxalmente, concordavam com a aversão aos africanismos denunciados pelos detratores. Para ser utilizado como um elemento de construção de um projeto de identidade nacional pelo Estado, e para ser incorporado à indústria fonográfica como uma música de consumo acessível, o samba precisava ser domesticado, desafricanizado e desmacumbado.
O projeto de domesticação do samba, em larga medida, com tensões e contrapontos potentes como os de Candeia, Clementina de Jesus, Nei Lopes, Wilson Moreira e outros, se consolidou. Desvinculado de suas ligações mais fortes com as áfricas e as macumbas, o samba aliou-se no imaginário popular a uma mítica alegria brasileira e funciona, as garrafas estão aí para provar, como elemento estimulador da inclusão pelo consumo de bens. É neste sentido que o mercado publicitário o retrata, limitado ao território estreito e fabular onde mora a alegria e o consenso social e onde o racismo estrutural brasileiro parece ser só uma história da Carochinha.
Recentemente, a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia organizou inúmeras atividades em Salvador para comemorar o centenário do samba. O orgão público responsável pela organização das homenagens na capital baiana foi a fundação que homenageia em seu nome Pedro Calmon, o homem que definiu o ritmo como “o perfil sombrio da senzala”. Fica a dúvida: o samba engoliu o doutor ou o doutor engoliu o samba?