À Dona Virgínia, in memorian

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, faz uma homenagem à Dona Virginia, mãe de dois amigos seus de Bangu que faleceu em 02 de fevereiro. Quem de nós não teve amigo cuja mãe nos tratava como… mãe?

O Cesar escreveu esta crônica no dia 03 de novembro, mas não tivemos como publicar antes. Ao César e à família de Dona Virgínia nossas desculpas na demora para entregar esta bela carta. Às vezes, este Correio tarda, mas tenta não falhar.




“Nilópolis, 3 de novembro de 2023.

Será difícil falar dela sem mencionar sua doçura na fala, seus passos lentos, seu cigarrinho ocasional, sua combinação de calças jeans com Havaianas. Como ocorre comigo, ouço a voz dela nos alto-falantes embutidos da memória (“Raul, Raul!”), folheio de cabeça aqui e ali trechos de conversas que tivemos como se eu registrasse tudo em papel passado, eu o escrivão.

Os assuntos não eram para serem registrados em arquivos-vivos, nada do que tinha sido dito ali tinha intenção de posteridade. Era tudo para aquele momento, em resposta a não sei o quê. Contudo, por um motivo que não entendo muito, sedimentou-se na minha memória. Dona Virgínia, confesso, tenho estado muito sentimental.

Receio que, se pudesse, ela não teria morrido no Dia dos Finados. Ela gostava de discrição e neste dia os cemitérios estão abarrotados de gente em visita aos mortos. “Para que tanta pernas, meu Deus?”, indagam-se os mortos. As flores. As lápides. A parafina das velas. As alamedas. Ela não queria dar trabalho para ninguém.


Ela era mãe de Raul e de Ricardo. Ela veio de Portugal ainda criança. Dá para ver no rosto as origens portuguesas. Não é exagero reconhecer que a moça que faz propaganda dos palitos de dentes se parece com ela. Acho é o nome da marca é Gina.


Eu gostava daquela casa na rua Volga onde ela morava. Tenho recordações dela, daquele piso feito de cacos vermelhos, do calor sempre insuportável de Bangu, das festas de aniversário do Raul na casa da rua Volga, com Ziloca e tudo. Tenho saudades da Ziloca. Meu Deus, por onde andará a Ziloca?


Em Bangu, muitas ruas têm nomes de cidades de Segunda Guerra Mundial. Por exemplo, o Raul, que morou na Volga, agora mora na Tóquio mais a Rapha e o Tom. Há também nomes de rua em Bangu relacionados aos trabalhadores da fábrica, que hoje é um shopping center cheio de bossa. Fica muito perto da Cultura Inglesa de Bangu, onde trabalhei por tantos anos. Eu não tenho saudade da Cultura Inglesa. Quase nenhuma. Quase zero. Talvez do zelador Mazinho eu tenha. Sim, do Mazinho, o zelador com peitoril de Nicanor, eu tenho.


Bangu Bangu Bangu. Raul, Ricardo, Maurinho, Júlio, Rogério. Todos são de lá. Todos amigos que cultivo, que cultivei, amigos de ouvir e de calar.


Dona Vírginia disse certa vez que se espantou ao ver um homem negro. Ela, de aldeia, nunca tinha visto sequer um quando morava na aldeia. Será que a viagem de navio de Portugal para cá a espantou?

Não sei, não. Acho que hoje eu irei dar um abraço no Raul e no Rico, palitar meus dentes, me espantar com a beleza dos negros, arrastar minha sandália, pitar um cigarrinho. Amanhã tem decisão da Libertadores.


PS: O Raul não curte futebol. Já o Rico é tricolor de carteirinha.”

Obs do blog: Como sabem, o Fluminense ganhou a Libertadores da America 2023. Onde estiver, Dona Virgínia deve estar feliz com a alegria do filho Rico.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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