Por Cynara Menezes, Socialista Morena –
Como quase toda mulher, tenho uma história traumática para contar. Quando eu tinha 5 anos de idade, fui a um terreno baldio ao lado da casa onde morávamos, junto com meu irmão mais velho e um grupo de garotos da idade dele (7 anos) ou um pouco maiores. Os meninos abaixaram a minha calcinha. Voltei para casa chorando e… fui castigada por ter ido lá. Doeu mais ter sido considerada culpada pelo abuso do que o abuso em si.
Aquilo foi um divisor de águas para mim. Até então, eu me considerava igual a meu irmão. Podia jogar bolinha de gude que nem ele, podia correr que nem ele, podia explorar territórios desconhecidos que nem ele. A partir dali, vi que não, não éramos iguais. Eu não podia fazer certas coisas ou ir a determinados lugares porque era menina. E ele podia fazer certas coisas e ir a determinados lugares porque era menino. Se eu ultrapassasse estes limites, seria castigada. Lembro de quantas vezes desejei ter nascido homem…
A culpabilização da mulher pela violência sexual começa desde a mais tenra infância. A maneira como você se veste, fala ou se comporta é considerada crucial para “evitar” ser abusada pelos homens. Veja bem: não são os homens que são criados para saber que não podem dispor do corpo de uma mulher. É a mulher a orientada a “se conter” de todas as maneiras possíveis para não “dar motivo” para que um homem a violente sexualmente. Como se o nosso próprio corpo não nos pertencesse e pudesse nos ser tirado a qualquer momento se não nos “comportarmos bem”.
Passamos os dias nos policiando sobre nossa roupa, nosso jeito de ser, de sentar, de agir, as palavras que usamos. Como se a mulher precisasse se tornar invisível para não ser estuprada. Não à toa, é justamente essa invisibilidade que os machistas sempre desejaram para nós. Quando despontamos, nos destacamos e aparecemos de forma independente deles, somos atacadas de forma vil, e inevitavelmente com “argumentos” que envolvem gênero. Nos julgam por nossa aparência, pela forma como nos vestimos e nossas escolhas sexuais. Ainda que não nos toquem, nos estupram cotidianamente ditando regras sobre como devemos nos comportar e nos insultando quando nos recusamos a segui-las.
Um homem nunca saberá como é limitador, para a mulher, o medo do estupro. Por causa dele, deixamos de ir a lugares e de fazer coisas. Ir nadar sozinha num lago, por exemplo, pode não ser perigoso para um homem, mas para uma mulher, é. Andar sozinha à noite pode não ser perigoso para um homem; para uma mulher, é. Um mero convite para jantar com o chefe pode não ser perigoso para um homem; para uma mulher, é. Tomar um porre numa boate pode não ser perigoso para um homem; para uma mulher, é. Não se trata de “vitimismo”. É assim.
Para começo de conversa, nós, mulheres, não possuímos em nosso corpo um órgão contundente, que perfura e fere; os homens, sim. E eles não são ensinados a ter o menor controle sobre esta “arma”, ao contrário. Os homens são ensinados a “pensar com o pau”. Muitos inclusive se divertem com a ideia de que a “cabeça” do homem está no pau. Na sociedade falocrata em que vivemos, o pau é que manda. E assim os meninos vão crescendo, como se o pau deles mandasse até mesmo no corpo das mulheres.
Eu vi o vídeo da menina de 16 anos que foi estuprada por 33 homens e não consigo tirá-lo da mente. Percebi que ela tinha um lindo corpo e que gostava de mostrá-lo. Só quem é mulher é capaz de entender o prazer que outra sente ao poder exibir livremente seu corpo, sem se preocupar com o que os outros pensam nem muito menos sentir que “corre risco” por isso. Quantas vezes não escondemos nossos corpos, desde pequenas, para fugir ao pavor de sermos atacadas por um desconhecido? Vocês sabem o que é viver assim?
Como um homem pode se dizer Homem, com H maiúsculo, e ser capaz de ter relações sexuais com uma menina desacordada? Como um homem pode se dizer Homem, com H maiúsculo, e achar normal compartilhar nas redes sociais a imagem de uma mulher desmaiada e, pior, exibir as partes íntimas dela, machucadas após um estupro coletivo? Como um “formador de opinião” pode estimular seus milhões de seguidores a transar com meninas embriagadas?
Neste momento, a menina que foi estuprada está sendo julgada por seu comportamento, como se isto justificasse ser violentada por um bando de anormais. Mais uma vez, a “culpa” é da mulher. Se ela “se comportasse bem”, nada disso aconteceria. Um homem chegou a escrever que se a menina “ficasse em casa lavando prato” não teria sido estuprada. Como se estivesse nela o problema e não em homens que agem como se fossem animais –com perdão aos animais. A mensagem é: “mulher, fique NO SEU LUGAR ou será estuprada”. Vivemos na barbárie, é isso?
Não há absolutamente nada de errado com uma mulher que usa roupa curta e decotada. (É paradoxal, porque quem diz isso também adora repetir que “o que é bonito é para ser mostrado”… Como se a “mulher ideal” fosse “bela, recatada e do lar”, para ser exibida à sociedade e fazer o homem ainda mais admirado, e ao mesmo tempo invisível e muda.) Há algo errado, sim, com homens que se acham no direito de poder tocar o corpo de outro ser humano sem permissão, como se este corpo estivesse aí para isso, como se o corpo de uma mulher existisse com a única finalidade de servir aos homens.
A dor dessa menina dói em mim. De angústia, impotência, raiva. A dor dessa menina é a dor de toda mulher que sabe que nunca será igual ao homem enquanto for parte da cultura de um país achar que a vítima de um estupro foi a “provocadora” da violência sofrida.
Nunca seremos iguais enquanto nós sentirmos medo de vocês. Nunca seremos iguais enquanto nós desejarmos ser vocês para sermos LIVRES.