O Ministério Público que nasceu da Constituinte de 1988, comprometido com os direitos difusos da população, não mais há.
Por Luis Nassif, compartilhado de seu Blog
Na Sala do Estudante, procuradores e representantes de movimentos sociais discutem os rumos do Ministério Público.
Há um amplo clima de desencanto no ar. O Ministério Público que nasceu da Constituinte de 1988, comprometido com os direitos difusos da população, não mais há. Transformou-se em uma organização punitivista, investindo preferencialmente contra pretos e pobres, endossando as arbitrariedades policiais, sendo cúmplice da pequena política municipal ou estadual.
Não é por outro motivo que diariamente chegam inúmeros processos no Supremo Tribunal Federal, da brava Defensoria Pública, pedindo habeas corpus para os chamados crimes de bagatela – a mãe que roubou o filé para os filhos, que levou fraldas ou desodorantes. Qualquer coisa que afronte o conceito de direito de propriedade é transformado em prisão. E, por trás de cada prisão, há um promotor punitivista.
Pior ainda é o jogo de cena para ocultar as chacinas da Polícia Militar. Ou alguém ainda acredita que o trabalho do Ministério Público paulista para apurar as chacinas de Guarujá levará a algum resultado concreto? Vai apurar da mesma maneira que apurou as chacinas do Castelinho e de maio de 2006 – em uma Secretaria de Segurança comandada por um procurador estadual, Saulo de Castro Abreu. Ambas as investigações não deram em nada.
Em quê a escolha de um Procurador Geral mudará esse quadro?
A Lava Jato promoveu mudanças curiosas na opinião pública. No auge, procuradores inescrupulosos, juízes sem discernimento, Ministros do Supremo deslumbrados, julgaram que, em uma democracia, todo poder emana dos tribunais. Tudo passou a ser possível ao poder judiciário, inclusive derrubar governos legitimamente eleitos pelo voto.
Depois, houve a volta do pêndulo e a constatação dos desequilíbrios promovidos na vida institucional do país. Por paradoxal que seja, o pesadelo Bolsonaro abriu os olhos da opinião pública para o macarthismo que imperou do mensalão às eleições de 2018. O período 2010-2018 foi muito mais macarthista que o período bolsonarista.
Essa revisão passa pelo fim da Lava Jato e, principalmente, do protagonismo político da Justiça e das corporações. E aí, os sacrifícios de Dilma e Lula beneficiaram Bolsonaro. Seria função do novo Procurador Geral desmontar o lavajatismo, dobrando o corporativismo, acabar com a intromissão dos procuradores no jogo político e recuperar o papel do MP de defensor dos direitos difusos.
Por não ser proveniente dos grupos corporativistas do MInistério Público Federal, o Procurador Geral Augusto Aras poderia ter sido um divisor de águas. Logrou desmontar o lavajatismo, o corporativismo e o golpismo que grassavam na instituição. Foi um trabalho relevante, sim.
Mas levou ao extremo o terceiro movimento – o de não se intrometer no jogo político – justamente no período em que o Executivo, nas mãos tresloucadas de Jair Bolsonaro, cometeu os mais graves crimes políticos e penais desde a ditadura. Em muitos momentos, exerceu um papel moderador ao avanço dos poderes do Supremo, que pareciam abusivos. Mas quando o risco Bolsonaro tornou-se concreto, ainda na pandemia, não poderia ter faltado ao seu dever de defensor da democracia e da segurança da população.
Acabou perdendo-se também na submissão às pautas morais do bolsonarismo, deixando de lado o maior fator de legitimidade do MPF: a defesa dos direitos sociais.
O ponto de não retorno foi o espaço aberto, na área de direitos humanos, ao ultradireitista Ailton Benedito, procurador de Goiás, defensor da ditadura militar. Ainda no período Raquel Dodge, a implacável Ministra Damares Alves quis colocar Ailton na Comissão de Mortos e Desaparecidos. Foi salva por um movimento que levou até à reunião do Conselho Nacional do MInistério Público um neto de desaparecido político.
Empossado, Aras indicou Ailton como representante da PGR no Conselho Nacional de Direitos Humanos, substituindo Deborah Duprat, um dos nomes referenciais do MPF. Depois, nomeou Ailton Benedito Secretário de Direitos Humanos da PGR. Impediu todos os cursos sugeridos pelos grupos de trabalho, sobre feminismo, LGBT+M. E organizou curso de direitos humanos, presencial, presidido pelo próprio Ailton Benedito.
Ailton não é pouca coisa. Entre outros feitos, propagou a existência de virus chinês do coronavirus, de lobby para dar privilégios a transgêneros, queria obrigar todas as prefeituras de Goiás a distribuir cloroquina, e quase criou um conflito diplomático, intimando o Itamaraty a investigar denúncias de que a Venezuela estava cooptando jovens brasileiros para trabalhos de informática. E era apenas um programa de informática para jovens da Vila Brasil, em Caracas.
E, agora, como recuperar a mística da Constituinte? Mesmo entre os críticos da Lava Jato, há quem advogue a escolha pela lista tríplice. Argumentam que, quando Dilma escolheu Rodrigo Janot para PGR, a lista tríplice havia proporcionado a alternativa Ella Wiekko. Agora, ao lado de lavajatistas raiz, como Luiza Frischeisen, há críticos das 10 Medidas, como Mario Luiz Bonsaglia. Sustentam que a melhor fórmula para a recuperação do MPF seria alguém independente do governo, comprometido com a democracia e os direitos, mas com diálogo com a corporação.
Por outro lado, os críticos sustentam que a lista tríplice, por melhor que possam ser os membros eleitos, sempre reforçará o lado corporativista do MPF. A própria Associação dos Delegados da Polícia Federal, que recentemente emitiu uma nota defendendo a operação que levou ao suicídio do reitor da Univcersidade Federal de Santa Catarina, defendeu sua lista tríplice e o direito de indicar o diretor-geral da instituição.
Tem-se, hoje em dia, as três organizações armadas tomadas pelo corporativismo mais nefasto: Forças Armadas, Polícia Militar e Polícia Federal. Como responsável pela fiscalização das polícias, o Ministério Público tem um papel essencial na garantia da democracia.