Muito além de façanhas esportivas, atitude dos atletas transforma o megaevento em uma irresistível pororoca de emoções – o inverso do neurótico e artificial futebol
Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora
Copa do Mundo é prosa
Olimpíada é poesia
Em verdade, vos digo, querides: a Olimpíada dá de 7 a 1 na Copa do Mundo. Goleada de emoção, pororoca de sensações, torrente de humanidade, sorrisos e lágrimas sem ter fim, para fazer renascer esperanças nessa espécie tão equivocada que domina a Terra. A feira esportiva de fugazes 20 dias, exibe, em sua 33ª edição, agora no verão de Paris, todo o encanto da turma que se entrega ao desafio de superar o próprio corpo – mas revela muito mais das almas e dos sentimentos de quem participa, e brilha.
Vai muito além de esporte. A luta por medalhas e recordes, as disputas medidas em segundos (ou décimos ou centésimos ou milésimos), metros (ou centímetros ou milímetros), pontos e notas são a moldura do babado todo. Nos Jogos, vigora um pacto não escrito de entrega e resiliência únicas na aventura humana. Aqui reside toda a preciosidade.
Copa do Mundo é bossa nova
Olimpíada é Carnaval
E a comparação com o outro megaevento esportivo global se consuma em goleada abissal. A Copa é uma reunião de robôs endinheirados e ranzinzas, encastelados em concentrações, na fuga permanente do contato com os mortais. Os boleiros entendem-se vingadores acima do bem e do mal, que não devem satisfações nem cortesia a ninguém. Paranoicos, atravessam a vida farejando detratores e destilando rancor, na tediosa ladainha “contra tudo e contra todos”.
Copa do Mundo é cristã
Olimpíada é pagã
No caminho inverso, os atletas olímpicos permitem-se humanos ao extremo. Nada melhor para decifrar a virtude do que a coleção de imagens e frases da relação entre as duas rainhas da ginástica artística. A brasileira Rebeca Andrade – O maior atleta olímpicO da história brasileira – e a americana Simone Biles protagonizaram, ao longo dos três últimos jogos, a convivência mais delicada e profícua, num respeito exemplar pela outra.
O incentivo permanente para se superar e, assim, fazer da competição a maior história de excelência decifra como os oponentes dependem um do outro para existir. Rebeca e Simone se igualam a Federer e Nadal, Hunt e Lauda, Ali e Frazier, com o bônus da delicadeza, a reverência permanente, o interesse despojado e sincero no bem estar da outra. A americana incentivou a brasileira nas contusões dolorosas; recebeu de volta a solidariedade nos problemas de saúde mental que atravessou.
No duelo final (será??), sorriram, se elogiaram e competiram – até a imagem deslumbrante, Biles se curvando reverente à adversária, mais jovem, que a superou no solo. A atitude (que contou com a cumplicidade de outra americana, Jordan Chiles, igualmente nobre) está no acervo das imagens mais espetaculares de todos os Jogos, de todos os tempos.
Depois, Rebeca desfilou perícia e categoria ao refletir sobre o racismo brasileiro e do esporte que pratica, concebido originalmente em nome do delírio da supremacia branca. Não fugiu, tampouco tergiversou; ao contrário, cravou, como fez no solo, na trave etc. “Os pretos sempre mostraram sua capacidade, mas nessa Olimpíada estamos tendo muito mais visibilidade. Ser mulher preta no Brasil é algo que me orgulha muito, e percebi que as pessoas também sentem isso, independentemente do meu resultado. Vi muitos comentários dizendo que mesmo sem medalha estariam torcendo por mim. Eu me senti orgulhosa simplesmente por vestir meu collant e estar ali representando meu país. Minha cor nunca me impediu de realizar as coisas, mas foi algo que aprendi dentro de casa. Minha mãe é uma mulher branca que criou outros oito filhos pretos. Ela sempre nos ensinou a nunca abaixar a cabeça por causa da nossa cor. Nunca passei por momentos ruins relacionados a minha cor dentro do esporte, mas meus irmãos já passaram. Às vezes, acho que me dói até mais do que se tivesse sido comigo. Mas eles me fizeram ser mais forte”. Rainha demais.
Copa do Mundo é novela
Olimpíada é cinema