A dualidade de Dinho Ouro Preto e do etarismo investigada numa dissertação de mestrado em Minas Gerais
Por Fábio Corrêa, compartilhado de Piauí
De uma hora para a outra, os modelitos de Dinho Ouro Preto viraram assunto na internet. Andrey Raychtock, jornalista, postou no X uma foto em que o vocalista do Capital Inicial aparece vestindo uma camisa roxa e brilhante de cetim, na gravação do disco ao vivo Acústico MTV, em 2000. “O que Dinho fez com essa camisa roxa Pelé não fez no Santos”, escreveu. “A camisa roxa é um charmeeee”, derreteu-se uma internauta, na caixa de comentários de Dinho no Instagram. “Irada, à la Mick Jagger”, disse outro. Achando graça, o cantor gravou um vídeo explicando que não está mais em posse da camisa. Mas pediu aos fãs que, caso tenham notícias do paradeiro de tão cintilante objeto, entrem em contato com sua equipe, para que ele possa voltar a vesti-lo.
Foi uma brincadeira, mas a verdade é que, se quisesse, Dinho poderia mesmo reincorporar a camisa ao guarda-roupa, já que, passados 25 anos daquele show, que resultou no disco mais bem-sucedido do Capital Inicial, o cantor mantém o mesmo peso (75 kg), as mesmas medidas corporais e o mesmo estilo roqueiro extravagante. Algumas coisas mudaram: largou o cigarro há dezoito anos e adotou uma rotina saudável, com idas diárias à academia e algumas meia-maratonas no currículo. No campo das aparências, contudo, Dinho não mudou quase nada. Preservou o visual normalmente associado aos adolescentes: o cabelo despenteado, o tênis de skatista, as camisetas justas, as pulseiras.
A jovialidade de Dinho, que em abril completará 61 anos de idade, é paradigmática. Assim pensa Otávio Zonatto, jornalista paulistano formado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em fevereiro do ano passado, Zonatto apresentou em Belo Horizonte sua dissertação de mestrado pela UFMG, intitulada O adolescente mais velho do Brasil: investigações sobre as representações de Dinho Ouro Preto associadas à juventude. Foi aprovado com encômios e talvez dê prosseguimento à pesquisa numa tese de doutorado.
No trabalho, Zonatto escrutina a persona eternamente jovem do vocalista do Capital Inicial e os mitos e memes que dela derivam. Não é um elogio às brincadeiras. A dissertação defende que, por trás das piadas (que o próprio Dinho costuma levar na esportiva), há pitadas de etarismo – a discriminação por razões etárias. O cantor, na visão de Zonatto, sofre duplamente com o preconceito: é criticado quando exibe boa forma e hábitos joviais (o que alguns consideram inadequado para sua idade) e também quando mostra sinais de envelhecimento.
A dissertação foi gestada no Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade (Gris), que tem as celebridades como um dos focos de estudo. Em 2019, por exemplo, uma mestranda escreveu sobre a modelo e influencer Andressa Urach – mais especificamente, os valores morais abraçados por ela antes e depois de se converter evangélica. Uma outra dissertação tratou de Marcelo Rezende, jornalista que apresentava programas policiais e morreu em 2017.
Zonatto saiu em defesa de Dinho, em parte, porque é seu fã. Tornou-se um admirador da banda brasiliense graças justamente ao Acústico MTV – tinha 10 anos de idade quando o álbum e o DVD foram lançados. Nunca tinha estudado o assunto até que, uns anos atrás, decidiu que queria fazer um mestrado, aprofundando seus conhecimentos de bacharel em jornalismo. “Uma colega comentou que eu deveria estudar algo de que eu gostasse, senão ia pedir arrego. Logo, tinha que ter rock. E pensei, ‘bom, Capital é minha banda favorita’.”
Teve início, em seguida, o processo de elaboração científica. Dinho é o objeto, mas qual é a hipótese de trabalho? “Existe uma cobrança sobre o envelhecimento. Uma pessoa de idade pode parecer mais jovem? Como é isso para o homem, como é isso para a mulher?”, indaga o agora mestre em Comunicação Social, resumindo as questões que nortearam sua investigação. Para respondê-las, Zonatto assistiu a entrevistas de Dinho, escarafunchou letras de músicas em que o vocalista tratou da juventude (Natasha é o exemplo mais famoso) e analisou a reação do público a postagens feitas por ele nas redes sociais.
O ouro, academicamente falando, estava nessa última etapa. Uma única selfie publicada por Dinho em outubro de 2017 poderia render todo um tratado sobre etarismo. Na foto, o cantor revelou ao mundo seu novo visual: o cabelo estava maior do que o habitual, com fios ondulados caindo sobre a testa, e no nariz repousavam óculos de aro grosso. A mudança, embora sutil, foi recebida com provocações nas redes. Um usuário comentou que Dinho mais parecia uma “professora de matemática divorciada”. Vários outros o chamaram de “quarentona” (o músico tinha, na época, 53 anos). Eram os comentários mais curtidos.
Conforme Zonatto escreve na dissertação, as provocações eram uma mistura de etarismo e misoginia. “As respostas revelam preconceitos de ordens distintas desvalorizando as mulheres (alguns comentários se atêm apenas à observação de que ele está parecendo ‘uma mulher’, enquanto outros são ofensas diretas em resposta a mulheres), idosas, ou as professoras, como se fosse incompatível um cantor de sucesso se parecer com uma professora, profissão tão desvalorizada e associada a estereótipos (note-se: a associação é sempre a uma professora, no feminino, nunca a um professor).”
O novo visual não durou muito tempo. Dois meses depois da postagem, Dinho – que, sempre destemido em assuntos capilares, já chegou a fazer dreads – filmou a si mesmo cortando as mechas. “Chega! Não tenho mais saco para esse cabelo”, escreveu nas redes. Como trilha-sonora do vídeo, escolheu Turning into you, música da banda americana The Offspring que diz: I’ve been drowning in a sea/ Of trying to please you/ It’s all I’ll ever be/ It’s all I ever knew/ I try to be me, but I’m turning into you. A mensagem velada, em bom português, dizia basicamente: cansei de tentar agradar vocês.
Para Dinho, tudo não passa de uma patrulha incômoda. “Eu não consigo ver porque eu deveria mudar o meu comportamento, me tornar outra pessoa a essa altura do campeonato. Eu sou o que sou”, disse à piauí, numa conversa por videochamada em dezembro. O Capital Inicial, dotado da energia de um grupo adolescente, tinha acabado de concluir uma série de shows no Sul do Brasil, viajando de cidade em cidade de ônibus durante um mês. Agora, em março, inicia um turnê nacional em comemoração aos 25 anos do Acústico MTV, enquanto prepara um EP no formato unplugged e um novo álbum de inéditas (o último foi lançado no longínquo 2018). “É o que eu faço há mais de quarenta anos. Mas, quando piso no palco, me dá uma descarga de adrenalina muito forte. Até hoje. É isso que faz com que o show seja vigoroso e visceral”, prosseguiu. “Acho que isso contribui, em alguma medida, para a percepção que as pessoas têm de mim.”
Dinho – apelido que ameniza o garboso nome Fernando de Ouro Preto, escolhido por seus pais embaixadores – diz que às vezes é chamado de “senhor”. Costuma acontecer quando lida com prestadores de serviço, o que denota antes hierarquia do que idade. “É normalmente um motorista me levando para um show, e eu peço para me chamar de ‘você’. Duvido que ele saiba quantos anos eu tenho, mas me imagina como um chefe. É desnecessário. No nosso meio todo mundo se refere às pessoas pelo apelido, há uma informalidade muito grande.” O linguajar, conclui Dinho, ajuda a moldar a percepção sobre sua idade. “Por ser mais coloquial, usar gírias, acabo parecendo mais jovem do que sou.”
Parecer jovem é, no senso comum, coisa boa. Mas Zonatto aponta em sua dissertação que, num mundo permeado por filtros de imagem, cirurgias estéticas e constante interação online, pode ser também um fardo. Há críticos de prontidão para reclamar das celebridades que buscam, por meios artificiais, uma aparência jovem; ao mesmo tempo, o outro lado também está armado para criticar aqueles que abraçam a velhice, os cabelos brancos, a decadência natural do corpo. “Evidencia-se, nas críticas, a ideia de que Dinho estaria muito ‘velho’, em termos de idade cronológica, para interpretar esse personagem, não conseguindo ‘enganar’ todo mundo. Soma-se a isso a contradição que envolve um homem responsável, que tanto valoriza a saúde e a família, cantando uma juventude hedonista, como em Natasha, e rebelde, como em A vida é minha (Eu faço o que eu quiser), produzindo uma dupla fraude: não é novo como quer aparentar ser; não leva a vida que elogia em suas canções.”
Dinho não sabia da dissertação. Quando li para ele o título, soltou uma gargalhada. Mas o epíteto “adolescente mais velho do Brasil”, com que Zonatto nomeou a pesquisa, não era uma novidade: foi cunhado por um seguidor de Dinho no Facebook anos atrás e acabou colando. Quando completou cinquenta voltas em torno do Sol, em 2014, o vocalista deu uma entrevista ao Uol em que rebateu a piada. “E se eu gostar de trash cinematográfico, por exemplo, qual é o problema? Se gostar de ficção científica? Por que isso é uma coisa circunscrita à sua adolescência? Eu discordo.” O entrevistador, na ocasião, mencionou ainda outro apelido: “o Peter Pan do rock nacional.”
Quando conversamos, Dinho me mostrou métricas do Spotify segundo as quais somente 4% dos ouvintes de Capital Inicial têm 60 anos ou mais. O grosso do público se concentra nas faixas entre 35 e 44 anos (27%) e entre 28 e 34 anos (24%). Os jovens de 18 a 22 anos formam 7% dos ouvintes, e o restante se espreme entre os 45 e 59 anos. Uma audiência mais jovem do que poderia se supor, considerando que uma pessoa que tinha 18 anos quando o Capital Inicial lançou seu primeiro disco hoje beira a terceira idade. Ou talvez sejam apenas dados enviesados, já que o público do Spotify não é necessariamente uma amostra fiel da população.
AOrganização Mundial da Saúde (OMS) considera que, em países desenvolvidos, idosa é a pessoa que já passou dos 65. Nos países em desenvolvimento, onde a expectativa de vida é menor, caso do Brasil, o sarrafo está nos 60. Há um projeto em tramitação na Câmara dos Deputados que propõe subir a marca para os 65, mas, por ora, segue valendo o Estatuto do Idoso, que segue os parâmetros da OMS. Juridicamente, portanto, Dinho Ouro Preto está no topo da pirâmide etária brasileira. Tem direito a atendimento prioritário em filas de banco e a assentos preferenciais no transporte público.
O cantor pondera, no entanto, que faz parte de uma nova terceira idade. Cita os exemplos de Mick Jagger (81) e Ney Matogrosso (83), ambos na ativa, liderando turnês. “Acho que várias coisas estão erradas no cálculo etário, inclusive o fim da adolescência”, diz Dinho, pai de duas jovens de 27 e 25 anos e um rapaz de 21. “Eu os vejo adolescentes até bem mais tarde. Aos 24 ou 25 anos não me parecem adultos. Acho que ainda têm muito a viver. O adolescente vê a coisa sempre muito amplificada, com uma intensidade muito grande, o que também é uma virtude, mas muitas vezes atrapalha.”
O roqueiro fala por experiência própria. “Sou muito mais calmo do que eu era. Hoje entendo que os altos e baixos da vida são inerentes a qualquer existência.” Essa maturidade, ele diz, se reflete nos versos que compõe, cada vez mais reflexivos. Uma das músicas que está gravando no momento fala sobre a “máquina” dos algoritmos, que faz com que os extremos políticos se pareçam e as pessoas fiquem “cada vez mais iguais, como em uma fábrica”. Uma imagem recorrente no rock ao menos desde The Wall (1979), disco do Pink Floyd.
Dinho teve mesmo altos e baixos, numa trajetória típica de estrelas do rock. Estourou em 1986, com o disco homônimo do Capital Inicial, e deixou a banda em 1993. O grupo vivia, na época, “uma vida de excessos”, conforme diz sua página na Wikipédia. O cantor passou por uma fase destrutiva, regada a drogas, e só retornou ao Capital em 1998, marcando uma nova fase (a melhor) na história da banda. Estabilizou-se, casou com a arquiteta Maria Cattaneo e com ela teve os três filhos. Sofreu um susto enorme em 2009, quando caiu de um palco posicionado a 3 metros do chão em Patos de Minas. O impacto foi tão grande que Dinho teve uma parada cardiorrespiratória. Foi salvo por um bombeiro que estava na plateia.
A queda resultou num traumatismo craniano e na fratura de costelas e vértebras, além de uma infecção generalizada contraída no hospital. Um mês antes, Dinho tinha se recuperado de uma gripe suína. Em 2016, contraiu dengue. Em 2020, tão logo a pandemia chegou ao Brasil, pegou Covid. Sentiu dificuldades para respirar e, uma vez curado, teve de fazer sessões de fonoaudiologia para recuperar a voz. A sequência de infortúnios, à qual se somam ainda duas contraturas na panturrilha, renderam a ele o apelido de highlander nas redes sociais. Mas a morte, afirma Dinho, não lhe aterroriza. “Acredito que nada morre de verdade. O que acontece é que os átomos que nos compõem voltam ao lugar de onde saíram: o cosmo. A longuíssimo prazo, claro. Quanto à nossa consciência, eu acho que ela se vai conosco.”
Nessa fase da vida, Dinho anda se interessando por desvendar o “início de tudo”. Embrenhou-se em livros que, a seu ver, ajudam a compreender a aventura humana na Terra. “Comecei por Homero. Li a Ilíada, depois a Odisseia. Fiquei fascinado de ver como algo tão remoto pode ser tão atual, sabe? Procurei livros até mais velhos. Fui parar no Épico de Gilgamés, o rei de Uruk, 2.800 anos antes de Cristo.” Na sua lista de próximas leituras está O cavalo, a roda e a linguagem, do antropólogo americano David W. Anthony.
Depois que conversamos, em dezembro, perguntei a Dinho se eu poderia passar seu contato para Zonatto. Ele assentiu, e os dois começaram a trocar mensagens. O cantor se mostrou interessado no trabalho acadêmico que lhe diz respeito e, gentilmente, convidou seu autor para o próximo show do Capital Inicial em Belo Horizonte, no dia 6 de abril. Zonatto combinou de entregar a Dinho, no camarim, a dissertação impressa. Está ansioso para conhecer o ídolo.