Por Ligia Guimarães, compartilhado de BBC News –
Já se foram mais de seis anos desde a última vez em que a jovem Isis Bueno de Camargo lembra de ter tido um emprego fixo com carteira assinada. Na época, ela tinha 16 anos e trabalhava como assistente administrativa de um banco. Hoje, aos 22, ela dá expediente em um hostel em São Paulo, em troca de moradia.
Não consegue estudar por não ter remuneração alguma, e a família dela vive em Mauá (SP). Conta as moedinhas todos os dias para conseguir almoçar. “Pior é quando não tenho nem R$ 1. Daí tenho que pedir marmita que os outros dão”.
O alagoano Lenine de Melo Galvão, desempregado há dois anos, viaja quase todos os dias de São Caetano, onde vive, para conseguir almoço mais barato em São Paulo. Não paga transporte porque tem o benefício da gratuidade, por ser portador de necessidades especiais. “Dá 20 minutos, é perto”.
Perdeu o apartamento depois que uma laje do prédio desabou e ele foi removido para uma pensão social paga pela prefeitura, até que uma nova moradia seja providenciada. Aos 55 anos, diz que sai todos os dias de casa em busca de emprego. Recentemente cobriu férias de um balconista de supermercado no Capão Redondo (SP), mas não foi efetivado. A ex-mulher morreu de câncer há sete anos, e ele hoje mora sozinho. “Tive responsabilidade muito cedo na vida, estudei só até o segundo ano primário. Não virei bandido”.
Evandro, artesão que há três anos mudou-se de Paraty (RJ) para São Paulo para cursar Psicologia, afirma que não sabe o que vai fazer a partir da semana que vem, quando acabam oficialmente todos os R$ 40 mil em reservas que ele trouxe, na época, para sobreviver na capital paulista. Tem tentado vender seus produtos, como mandalas e flores de lótus, mas a concorrência dos ambulantes de rua torna a atividade inviável. “Cheguei no limite de não conseguir pensar mais nada. Não sei mais o que fazer, tenho dinheiro para mais uma semana”.null.
Na terça-feira (19), mais de 30 pessoas aguardavam na fila por volta das 10h20, antes mesmo da abertura da unidade dos Campos Elíseos do Bom Prato, na rua General, Júlio Marcondes Salgado. O local abre às 10h30, o almoço custa R$ 1. O programa, criado pelo governo do Estado em 2000 para oferecer refeições saudáveis à população de baixa renda, virou uma alternativa também para os desempregados desde a recessão econômica.
Dados da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social apontam que, de 2018 para 2019, aumentou em 250% no número de pessoas que frequentam o Bom Prato e declararam ter renda zero; em 224% a fatia que declarou ganhar até meio salário mínimo por mês; e em 221% a quantidade de pessoas que afirmaram não ter renda fixa.
Em 2018, o país tinha 13,5 milhões pessoas com renda mensal per capita inferior a R$ 145, ou US$ 1,9 por dia, critério adotado pelo Banco Mundial para identificar a condição de extrema pobreza. Esse número é superior às populações de países como Bolívia ou Portugal. 52,5 milhões de pessoas, ou um quarto da população do país, vivia com menos de R$ 420 per capita por mês, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Lá em 2000, quando o programa foi criado, se pensava mais em alimentar morador de rua, que era o principal problema na época”, explica a diretora do Bom Prato na Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social de São Paulo, Thêmis Kleiber. “Notamos que em 2016, 2017 e 2018 registramos aumento da procura de pessoas que se dizem desempregadas, famílias de baixa renda ou mesmo em subemprego. Se valem do programa, que tem alimentação de qualidade, e economizam para colocar comida em casa”, diz.
No Estado de São Paulo, o Bom Prato atende diariamente mais de 93 mil refeições e tem 57 unidades em funcionamento, sendo 22 localizadas na capital, 11 na Grande São Paulo, 7 no litoral e 17 no interior.
A BBC News Brasil acompanhou por dois dias o atendimento no Bom Prato na unidade de Campos Elíseos, bairro da região central de São Paulo, na hora do almoço. Na fila, observou uma pequena multidão formada por uma maioria de homens, muitos aposentados e desempregados, misturados a trabalhadores da região, moradores de rua, funcionários da limpeza urbana, jovens em busca de emprego e trabalhadores do bairro. Muitos não querem mostrar o rosto, nem divulgar o nome completo. Mas, nos depoimentos, um aspecto é unânime: sem a comida barata e de qualidade do restaurante, a alternativa de muitos que estão ali seria a fome.
‘É o jeito’
Sentado à mesa que divide com outros seis clientes, o gaúcho Ricardo (nome fictício) parece não ser louco de amores pela comida do Bom Prato. Naquele dia, o cardápio era arroz, beterraba, salada, pão, guaraná e pêssego de sobremesa, menu selecionado e supervisionado por uma nutricionista. “A comida é boa, dá para comer, se alimentar. Mas a gente não aguenta comer todo dia, enjoa. Eu estava acostumado de outra forma”, lamenta.
“Se eu não comer aqui preciso comer em algum lugar, mas o prato feito sai R$ 12, no mínimo”. Nascido em uma família de agricultores em Constantina, no Rio Grande do Sul, precisou abandonar a profissão quando uma hérnia de disco o impediu de dar conta da rotina pesada do trabalho com a terra. “Lá eu mexia com agricultura, aqui eu só mexo com o ramo de churrascaria. Eu não posso mais erguer produtos agrícolas para fazer o plantio. Tive que alugar a terra para o meu irmão e vim para cá”.
Arrumar emprego fixo no ramo das churrascarias de São Paulo, no entanto, tem se mostrado cada vez mais difícil. Muitas fecharam durante a crise, especialmente no centro da cidade e nas marginais Tietê e Pinheiros, diz. Todas as manhãs, ele sai bem arrumado da casa onde mora, em Santana, e bate de porta em porta pelos restaurantes da cidade. “Prefiro ir pessoalmente, porque converso com os gerentes, para mim funciona assim”, diz. “Não deixo currículo por que às vezes nem chega no gerente, eles deixam lá. Mas o pessoal fala que o movimento está fraco”.
Conta que, antigamente, o ramo de churrascarias era bom. Trabalhou em nomes famosos do ramo. Hoje sabe que, mesmo se conseguir trabalho, será por salários bem menores do que eram nos bons tempos. “Já tem uns dez anos que o salário está tabelado em praticamente todas as churrascarias. As pequenas praticamente não pagam mais que R$ 1.600. As maiores em torno de R$ 2.600, R$ 3 mil”.
Por enquanto, tem contado com a ajuda da família, que mora no Sul, para pagar os R$ 600 do aluguel em Santana. Precisa também pagar o custo do transporte diário para distribuir currículos.
Arrumou um trabalho como freelancer até o dia 23 de dezembro; depois, não sabe o que será. “Estou correndo atrás”.
Amigos de mesa e paz vigiada
O vendedor Bruno Cerveira, 36 anos, está desempregado há um ano. Ele vai ao Bom Prato todos os dias, e procura sempre dividir a mesma mesa com a amiga Ivanilda Pereira Cunha, 68 anos, que ele conheceu no Bom Prato. “Eu sou a chefe da quadrilha”, ri Ivanilda, 68, que passa os dias vendendo Yakult pelos Campos Elíseos em um carrinho que ela estaciona na frente do restaurante enquanto almoça. “Vendo R$ 100 por dia, R$ 130 no máximo”.
Bruno diz que a comida do Bom Prato é boa, e que a convivência com os amigos também. Já foi outras vezes ao restaurante nos últimos seis anos, mas só o frequenta quando não está trabalhando. “É tranquilo. Só às vezes que sai alguma briga”, diz.
Os tumultos eram mais frequentes quando o restaurante dos Campos Elíseos ficava no Largo Coração de Jesus, mais perto da região da Cracolândia. De lá para cá, a vida de Aramis Vieira de Almeida, que faz a segurança do restaurante há 17 anos, melhorou muito. “Os usuários da Cracolândia ficavam tudo na porta, para controlar ali era só Deus para me ajudar. Lá quando eles começavam a bagunçar a polícia vinha, soltava umas bombas.”
Um senhor que entra pela porta da frente do restaurante ouve a conversa de Aramis com a reportagem e confirma que a rotina do segurança era mais perigosa. “Ele deu sorte. Todo dia os clientes puxavam a faca para matar ele. Eu cheguei a colocar a cadeira na minha cara para não ver ele morrer.”
A missão diária de Aramis é garantir que 1.900 refeições sejam servidas, a cota diária, e fechar a porta quando a comida acabar. Sobram pessoas para fora principalmente às quartas e sábados, quando o prato principal é feijoada e a procura aumenta. Aramis é simpático, sorridente e muito demandado pelos clientes, mas reconhece que o trabalho é pesado. Enquanto a reportagem acompanhava, ele se manteve sorridente enquanto um homem brincava de lhe dar tapinhas, e outro cantarolava a letra inteira da canção Andança para atrair a atenção do segurança.
“Eu já tenho amizade, eles têm consideração comigo”.
‘Se tivesse no país todo, lotariam todos’
Na fila antes de o restaurante abrir, às 10h20 da terça-feira, o funcionário público Francisco Carvalho, 59 anos, conta que costuma almoçar e tomar café da manhã no Bom Prato todos os dias. “Eu trabalho na República, mas meu salário é baixo”, diz, fazendo um gesto de pequeno com as mãos. “Se não viesse aqui ia comer só lanche. À noite eu não janto, só tomo café. Aqui é bom, tem que rezar para não faltar. Senão teria mais dificuldades”.
Enquanto a reportagem conversa com Francisco, um homem apontado pelos colegas de fila como morador de rua, vai interrompendo a entrevista aos gritos. “O povo está na miséria, o sistema faliu, o Brasil faliu”, diz. “Já foi para São Bernardo, Santo André? Todas as fábricas lá fecharam. Acabou tudo”. Quando a reportagem pergunta seu nome, ele diz que não tem. “Se abrisse Bom Prato em todo o país, todos iam ficar lotados. O povo está na merda.”
Lenine, 55, reclama que às vezes os clientes são tratados com menos gentileza do que merecem. Principalmente quando as portas fecham sem que todos tenham comido. “Eu venho aqui por necessidade. A maioria das pessoas vem aqui por necessidade, porque está desempregado. Ser esnobado? Isso acontece de sábado e domingo, que vem muito mais gente”.
Evandro, que estuda psicologia, explica que as pessoas que frequentam o Bom Prato se sentem vulneráveis ou um pouco humilhadas por recorrerem ao serviço, associado à população de rua. Diz que reclamou com a gerência quando não gostou do atendimento, e o serviço melhorou.
Erivaldo Alves de Araújo, 60 anos, já trabalha há décadas como autônomo, mas diz que seu sonho ainda é um emprego com carteira assinada. “Meu último emprego foi com eletrônica, só que os eletrônicos se tornaram-se descartáveis e esse ramo ficou ruim. Hoje faço o que aparece para fazer”. Sobre o Bom Prato, diz que “não existe uma ajuda melhor do que essa”. Ele paga aluguel e pensão para o filho, e mora com a esposa, que é dona de casa. “Se eu não comesse aqui eu ia comer em casa, e muitas vezes em casa não tem”