Por José Carlos Peliano, Carta Maior –
Acredito que os governos de 2003 para cá abriram as portas para as manifestações populares, sejam elas quais forem.
De entusiasmada e vibrante memória, o bordão “a esperança vai vencer o medo” seguiu por toda a campanha até a vitória final de Lula nas eleições de 2002 em direção ao seu primeiro mandato.
Não filiado ao partido, mas militante, participei da maioria das manifestações, comícios e shows da campanha juntamente com outros milhares de aguerridos amigos, companheiros, conhecidos e desconhecidos vestidos de vermelho.
De fato, queríamos todos os eleitores um Brasil melhor, longe do autoritarismo ainda presente e arraigado na época, travestido nas instituições e seus representantes, seguidores de ordens e progressos pré-estabelecidos pela ortodoxia dos mandamentos, cargos e funções.
Esse pano de fundo, “positivo e operante”, imprimia país afora uma meritocracia, um preconceito e uma hierarquia política, social e econômica, vindas das capitanias hereditárias, da aristocracia portuguesa e dos donos do poder, salve Faoro!
Em particular e especialmente, ao longo de todos os governos, vindas também do bando de invisíveis beneficiários das benesses, privilégios e vantagens distribuídas nos interstícios escusos e escondidos da república tardia. Áulicos da corrupção.
Infelizmente a meritocracia, o preconceito e a hierarquia não deixaram de mandar nos pensamentos, atos e omissões dos poderes constituídos. Exemplos são inúmeros, circunstâncias também, momentos nem se fala.
Evidente que na vida moderna, predominantemente urbana e globalizada, as leis são necessárias e oportunas. Mas, cabe uma indagação, a dita democracia, governo do povo, pelo povo, para o povo, precisa se escudar em leis que protejam, por exemplo, as minorias? Não são elas habitantes do mesmo país e, por definição, não teriam de ter os mesmos direitos e deveres da restante maioria?
Mas esse não é o ponto principal aqui. Ele é importante sim, pois filho da meritocracia, do preconceito e da hierarquia. A questão é o império abusivo da legislação. Ela limita, boicota e reduz as relações humanas na sociedade. Quanto mais impedimentos legais, quanto menos as pessoas se aproximam, se acordam, se superam em promover a convivência, a civilidade, o bem comum.
Acredito que os governos de 2003 para cá abriram as portas para as manifestações populares, sejam elas quais forem. As bandeiras, entre outras, de combate à fome, moradia para todos, acesso garantido ao ensino superior, ampliação do ensino técnico-profissional e as bolsas família, são alguns dos sinais evidentes de que a esperança venceu o medo!
Não só venceu o medo, quanto alimentou a desobediência civil, tão cara a Thoreau e Gandi. Diziam eles que o clamor do povo vem à tona quando a sociedade organizada limita os espaços de liberdade. Todos têm o direito de exporem e manifestarem suas ideias e ideias, mesmo que eventualmente insurjam contra a ordem estabelecida.
Foram, então, as cadeiras a mais postas à mesa farta do país pelos três últimos governos que ensejaram o reconhecimento e a acolhida dos cidadãos então esquecidos, relegados a seus próprios meios e fins.
Desempregados, pobres, sem instrução, de um lado, e homo-afetivos, negros, índios, deficientes, de outro lado, entre outros, puderam finalmente ter vez, voz e lugar nas políticas públicas e nas instituições urbanas e rurais.
Até mesmo a melhoria da economia levou milhões de brasileiros a entrarem no mercado e ampliarem o consumo e o investimento. Aeroportos cheios, supermercados e shoppings com maiores clientelas, enxurrada de carros novos nas ruas, maior produção da construção civil, foram as marcas indeléveis do nascimento de um país capitalista novo e moderno, mas distributivo.
Essa a esperança que venceu o medo. Essa a ousadia de um governo que deu asas ao povo. Essa a provocação que ainda irrita jornalistas de um olho só, juristas encastelados, parlamentares de salto alto, pastores ilusionistas e cientistas sociais sem sociedade.
A corrupção? Ela é típica da nação do compadrio. Ela não tem cor, nem nacionalidade, nem filiação partidária, nem lugar e hora. Fruto da lei de Gérson, de tirar vantagem de tudo e por tudo.
Infelizmente houve gente do PT envolvida, embora mal julgada e mal condenada. Juristas ilustres estão aí para confirmarem. O tempo e os tribunais multilaterais ainda hão de provar a arbitrariedade, irmã do preconceito e da meritocracia, que imperou nos julgamentos.
As manifestações originais, não as preparadas pela oposição, são sinais positivos da esperança. A luta por uma tarifa justa de ônibus trouxe às ruas paulistas jovens de todas as idades para levarem à frente suas reivindicações. Agora, mais recentemente, as ocupações das escolas públicas paulistas seguem no mesmo rumo e bandeira.
Salve a democracia, mesmo que tardia. A espontaneidade desses dois movimentos em São Paulo traz a pureza e a determinação de gente que se vê livre para protestar e defender seus direitos. Mesmo que o poder público tente cercear. Mas como ir contra jovens do ensino fundamental que querem estudar para ser alguém na vida? Por que e como retirá-los das escolas?
Essa a esperança de mudança que venceu o medo. Essa a semente plantada e que dá e promete mais frutos. A despeito de falsas e rasas análises feitas aqui e ali que buscam estigmatizar um partido, que, bem ou mal, abriu as portas da rebeldia e da desobediência civil. Poderia ser melhor, sim, do mesmo jeito que a avaliação dos governos petistas entregues hoje à sanha dos indignados por não mais estarem no poder.
Essa indignação doentia da oposição aliada à parcialidade de membros da Justiça e à sanha destrutiva da mídia provocaram uma balbúrdia na vida política nacional. O recuo do governo com seus poderes sem força e ameaçados piora o quadro geral.
Mas o povo sabe hoje melhor do que ontem quem é quem, de fato, a comandar o triste espetáculo. O medo já não existe mais, apenas a perigosa falta de perspectiva. Legado infeliz dos meritocratas, preconceituosos e hierarquizados.
*colaborador da Carta Maior
Créditos da foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula